Essa publicação faz parte da coleção Revista Brasileira
Editorial
Rosiska Darcy de Oliveira
Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras.
A Academia Brasileira de Letras reabre suas portas e a Revista Brasileira, suas páginas. Ambas mais que centenárias, um patrimônio que trans- mite sua mensagem civilizatória por um fio invisível que, de geração em geração, nos preserva da corrosão do tempo.
Depois de dois anos de pandemia, das cortinas cerradas, distância, ameaças e lutos, de tantas cadeiras vazias, medos e despedidas; depois do ataque a tudo que aspire a ser parte da criação artística ou cientifica; do apedrejamento pelo obscu- rantismo desse imenso vitral da criação em que todos nós, artistas e cientistas, vimos depositar, como um ínfimo fragmento, nossas obras e mistérios; depois de tantos obstáculos enfrentados e superados, vamos retomar o que se manteve intacto: nossa confiança no futuro.
Inauguramos nesse número a fase X da Revista Brasileira. Incontornável e simbólico, o tema das Amazônias se impõe como ilustração do que preten- demos: contemporaneidade, relevân- cia, diversidade de opiniões, respeito pela memória ancestral e anúncio do que está por vir.
Poesia e prosa guardam seu lugar de nobreza. As páginas se abrem agora para a fotografia, o cinema, o palco, a música, as artes plásticas, as novas linguagens e os movimentos culturais. A ciência e a tecnologia vêm juntar-se a todas as artes na tessitura de um mundo surpreendente. Elas estarão presentes aqui, como tudo mais que favoreça a travessia e a supe- ração da perplexidade diante de uma investida obscurantista que se espalha em nosso país e no mundo, orgulhosa de sua nefasta ignorância.
Essa revista é brasileira. Em sua sede, poucos sabem, foi fundada a Academia Brasileira de Letras. Entranhada em nossa história, teve Machado de Assis como colaborador. Registrou por mais de um século os debates literários e os sobressaltos do pensamento que alimentam a vida intelectual. Trouxe até nós, como herança, a memória da inteligência de nosso país. Estimulou no passado, como faz agora, a interlocução com os desafios que nos cabe viver.
Nosso tempo é incerto e perigoso. Disritmia das estações, chuva assassina, flo- restas amputadas, deriva dos polos. Guerras, ruínas, êxodos, ameaças à democra- cia. Errância de indivíduos deixados ao relento pela falência de dogmas e certezas, confrontados com a autoria de si mesmos. Medos e ressentimentos escondidos nas trevas do rancor. Convivência com a barbárie, mal-estar na civilização.
Nas páginas da Revista Brasileira, o pensamento é convocado a interpretar esse mundo à deriva, tendo como norte a fidelidade ao humanismo e à liberdade.
A literatura é nosso ofício. A língua portuguesa, nosso instrumento. Poetas, romancistas, ensaístas pisam aqui um chão bem conhecido. A Revista Brasileira vai buscar também seus leitores e colaboradores nos diferentes campos da cultura e da ciência, nas universidades, nos centros culturais e de pesquisa, nas academias de letras e de ciências, nos museus e bibliotecas, na mídia, onde quer que mulhe- res e homens estejam pensando, debatendo e agindo para refundar o país.
Nosso tempo pede uma ética do debate em que prime o argumento, a troca de opiniões, a aceitação da complexidade dos problemas. O contrário do anátema, da proibição e da censura.
O Brasil tem na cultura sua maior riqueza. Irrigada por três cosmogonias, estra- nhas umas às outras, elas vêm negociando essa estranheza ao longo dos séculos com um sentimento de incompletude, buscando umas nas outras aquilo que não são e contribuindo assim para uma identidade que é um paradoxo: diversidade que se faz identidade. Nós, os brasileiros.
Nossos escritores, poetas, compositores, cientistas mesclam-se em um processo originalíssimo, ao mesmo tempo intérpretes e criadores dessa cultura e dessa iden- tidade em construção. É dessa construção que a Revista Brasileira, na esteira de sua história, se quer protagonista.