Unanimidade para a hegemonia
A Câmara Americana, por quase dois terços dos seus votos, aprovou projeto de lei que consagra o que Bush pediu a Deus para de vez instalar o reino da hegemonia no país dos direitos humanos. Não foram só os republicanos que optaram pela nova proposta legal, que permite a espionagem indefinida dos telefones americanos, as torturas por imersão, ou levam a penas, até de morte, acusados de terrorismo, sem conhecimento do libelo, nem efetivo direito de defesa. O projeto vencedor, por enquanto, consagra a norma inédita de que caberá apenas ao presidente discernir o que seja tortura grave ou branda. E bane de vez o respeito às Convenções de Genebra, ao que seja o tratamento de prisioneiros quando considerados como insurgentes e não como membros de exércitos regulares. Consagra, a reboque da nova legislação, a permanência indefinida, pois, de Guantánamo, tal como considera como definitivas as confissões obtidas declaradamente sob tortura até 2005. A senadora Hilary Clinton votou com os republicanos, assim como boa parte de seus colegas de partido. A decisão veio a toque de caixa, com vistas às eleições estaduais. E o que importa é o quanto cada partido se tornasse mais duro frente aos eleitores, diante da convicção de estar o país ameaçado pelo terrorismo e possíveis novas catástrofes no território americano. Desapareceu toda a expectativa de que a clássica oposição entre duros e brandos na condução da potência hegemônica obedecesse ainda à clivagem clássica entre o partido de Roosevelt e Kennedy ou de Nixon e Bush. O que estarrece é o quanto, na perspectiva da afirmação das garantias de um estado de direito e do país arcano das liberdades, o arreganho eleitoral imediatista confunde de vez a imagem histórica do país e da sua confiabilidade a largo prazo pela plataforma de direitos humanos nascida com Jefferson, Lincoln e Roosevelt. Não importa esteja Bush no nadir hoje de sua popularidade, aos 28%, quando tinha quase 90% ao caírem as torres do World Trade Center. Se se tacha hoje o presidente de incompetência, nada se tira da dominância nova da política americana de aceitar as regras do jogo e, de vez, da "civilização do medo". O próprio Partido Republicano e figuras-chave dos antigos falcões, como os senadores Warner e McCain, refugaram a liberação ostensiva do regime das torturas como o caminho mais direto ao recrudescimento do terrorismo. Arrefeceram as suas vozes, inclusive de heróis de guerra e torturados no Vietnã, quanto à catástrofe que representaria hoje, em torno de escalada a longo prazo, a violação repetida e crescente dos direitos humanos para intimidar terroristas. O que se vê instalada é, de vez, a "civilização do medo", eliminando-se qualquer calendário de retirada das tropas americanas no Oriente Médio, redobrando-se a convocação de reservistas e trazendo-se agora a sétima frota americana para cercar os portos do Golfo Pérsico. O choque, de que não ouvimos ainda o troar, é dessa maioria no Congresso americano, para além das bandeiras partidárias, que quer de vez criar o fato consumado do país hegemônico, à margem por inteiro do regime internacional de proteção das garantias básicas dos direitos humanos, refratário a que as Nações Unidas se imiscuam em qualquer questão de etnocídios ou de genocídios que decorram da "civilização do medo". Passa a viger a garantir suprema e estrita da segurança nacional americana e a total inviabilidade de que se possa dar qualquer habeas corpus para a salvaguarda da Convenção de Genebra quanto ao respeito aos prisioneiros. Inaugura-se, sim, a figura do combatente inimigo, sem recursos, voz e defesa, jogados no vácuo do arbítrio presidencial, para saber até onde possam ser objeto de estupro, experimentos biológicos e tratamento cruel e desumano. Não está mais em causa a opção feita por Bush quanto ao que dele pensarão no futuro os antigos presidentes de perfil esculpido para sempre no Monte Rushmore. Claro, aí fica de novo a Suprema Corte diante da aliança do Executivo e da legislatura no caminho de opção sem volta oferecida ao eleitorado. Na mesma onda, submerge de vez uma candidatura Clinton, a se manter uma alternativa. O país que irá ao Supremo não sabe ainda quem serão os seus líderes à altura de novos Roosevelts ou Jeffersons.