O Globo levou toda a riqueza da nossa intelectualidade a manifestar-se sobre questão-chave do presente momento político brasileiro. A que vai a exigência ética, e de como se vence o bordão para reclamá-la? Neste momento de transformação da sociedade brasileira quais seus imperativos prioritários? O impacto crítico do governo que ora disputa a reeleição foi infundir à massa mais desvalida de seus eleitores a idéia de que saímos da inércia social, e de que existe poder político tocado pelo país do outro lado.
O peso da votação de Lula não é, desarmando o elitismo mais sofisticado, ou o mais impenitente, põe em causa o problema fundamental de se saber até onde a ética coletiva é a simples soma ou projeção do dever particular. Ou de ficarmos na efetiva boa consciência para responder a tarefas de mudança, apertada contra prazos históricos sem retorno.
A vitória de Lula não é, contra o arrebitamento de narizes da elite enjoada, a desgraça do peso do voto do Brasil desinformado ou de baixa extração social. Traduz esta consciência primeira dos rumos elementares do para onde vamos se, de fato, quisermos sair do ganho perpétuo de poucos para vencer uma inércia social, a que tantas vezes serviu o horizonte do país instalado. É dela a crença ingênua da fatalidade do progressismo e do sucesso do governo dos impolutos e dos valores de caráter.
Dentro da ética coletiva definem-se as prioridades de tarefa política, por fora da estrita épura do sucesso dos puros. São o dever da realpolitik, seus riscos calculados, que constituem demissões da moralidade, mas respostas à garantia das vigências da mudança. Está-se diante, quase, de um estado de necessidade social, pondo em causa a sobrevivência de uma coletividade, de fato nacional, e capaz de superar a injustiça modular de sua concentração de renda.
O último surto do denuncismo brasileiro teve a virtude da “virada de página” e de levar à percepção de macro e da microética social, do que seja, nos seus reptos, a prática possível da transformação coletiva. Não se cogita do melhor dos mundos, mas do aliciamento das vontades, para confiarmos na saída do país da pobreza, de sua qualidade de vida e de esperança.
O ganho da melhor consciência social que é o da verdade desta opção – só é possível a quem sofre a marginalidade radical, para apontar a sua superação. No quadro do subdesenvolvimento, o povo como povo é melhor que a elite como elite, lembrava San Tiago Dantas, quando abraçou, vindo do estrato mais sofisticado do país, a candidatura de Getúlio Vargas em 1950.
A vitória de Lula, agora, livre da classe média e do “país bem” e seus desalentos, repõe em seu lugar o questionamento da ética na potência como rescaldo do status quo. Só faltaria saber-se o quão rápido nos abriremos ao país de todos e ao que-fazer imediato para lográ-lo.
O Globo (Rio de Janeiro) 18/09/2006