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Dom Luciano, confessor da esperança

 

Arremataram-se em Mariana as vigílias e as procissões que levaram, desde o falecimento do arcebispo, a 27 de agosto, ao clamor da permanência de sua presença pastoral. "Dom Luciano vivo", era o grito repetido do seu povo, reboando na praça central da segunda mais antiga Arquidiocese do Brasil. Fica a vinheta do povo-povo, desfilando diante de seu caixão, a flor depositada, o bilhetinho de oração e, sobretudo, o pedido de toque da carteira de identidade junto ao corpo de Dom Luciano. Dia e noite, sem madrugada de ausência, em São Paulo e, a seguir, em Mariana.



Desde a Catedral da Sé, era como uma onda mobilizada, no misto entre a perda e a saudade, e o que o Arcebispo ensinava, sobretudo, à sua gente. Não há exílio, nem adeus, mas, sim, a irradiação de uma presença, que responda ao que foi o seu último recado ao receber o "honoris causa" da Universidade Católica de Belo Horizonte.



"Não me lembro de um dia sem felicidade", no que a preocupação com o outro se transformou na sua efetiva "segunda natureza", e na vigília sem cansaço, nem distração do que seja o entregar-se. "Sábio e santo", repetiam os pastores, remetendo a lembrança de Dom Luciano a dois dos seus antecessores, Dom Silvério, o erudito, membro da Academia Brasileira de Letras, e Dom Viçoso, o reformador do clero da Arquidiocese, e o primeiro defensor dos carentes à sua volta, em meados do século XIX.



Impossível trazer a marca da dedicação do Arcebispo, entre tantas maneiras e formas de estar à disposição do outro. Seja ele o menino de rua de São Paulo, o ancião privado da última ternura dos seus, sejam os próprios sacerdotes, ou, sobretudo, os desmunidos, tratados eufemisticamente, de pobres. Esse trabalho múltiplo surgia na meditação e no serviço da Companhia de Jesus, que fez de Luciano seu primeiro Bispo, após a grande Renovação Conciliar do Vaticano II. E a idéia mesmo desse trabalho de entrega começaria em torno dos seus próprios irmãos do clero. Não houve mais retiros pregados nessas últimas décadas que os de Dom Luciano aos bispos e padres, à intimidade da abertura dos corações, que foram o seu tom e sua capacidade de desarme, diante da fé maior.



Militância que vinha para Dom Luciano deste o cuidado dos companheiros de Santo Inácio com o agir à sua volta, com o romper inércias da fé e, sobretudo, vir às brechas do testemunho, dentro do rigor da meditação interior. Ainda na Companhia de Jesus, fora Reitor do Colégio Apostólico, Diretor da Faculdade de Teologia e Vice-Provincial Geral dos Jesuítas. Mas, sobretudo, Mestre da 3ª provação, que é a vocação especial, da ascese e da graça que reclama o aperfeiçoamento espiritual, o teste final para a plenitude inaciana. Resulta do implacável exame de consciência em trinta dias, de reexame da vida e de busca, de fato, do segredo e das expectativas da última doação.



Talvez por essa exigência de militância, Dom Luciano tenha, no seu ministério, se dedicado, sobretudo, a um sacramento deixado quase fora da vida cristã, qual o da confirmação ou do crisma. Morreu na alegria de ter efetuado, ao longo da sua vida de bispo, mais de 100 mil unções à testa dos fiéis. E quantos, nas praças de Ouro Preto e de Mariana, agora, levantavam a mão, rememorando este momento de encontro, que Dom Luciano soube despertar irremissivelmente em suas vidas. Quantos padres foram ordenados, o último, há um mês em Dores do Turvo, em saída de horas, do Arcebispo, do Hospital de Belo Horizonte.



Repetiram-se as presenças públicas, ao lado de Dom Luciano, nas exéquias finais. Tanto pode Aécio Neves falar da têmpera e da ternura de Dom Luciano, quanto Lula, deste dom da esperança, a confessá-la a qualquer classe, à abertura de qualquer diálogo, no desarme de qualquer desconfiança. Um Brasil que se faz - repetiu o Presidente - à imagem do Prelado de Mariana - não encontraria segmento, grupo político, bancada, que não se abrisse à interpelação ou ao pedido do Arcebispo.



Bandeiras dos Sem-Terra na Praça da Matriz; da "vida pela vida"; da "via campesina"; flâmulas de tantos movimentos sociais, ao lado do que o povo "Kranaque" lhe trouxe de cânticos ao lado do caixão. Presença junto aos índios; junto aos quilombos; à pobreza envergonhada, junto aos deficientes físicos e mentais, nos dias de esperança do Hospital das Clínicas, em São Paulo, e do Bispo na UTI, a suscitar as missas e os rosários nos seus corredores.



Nos tempos de uma "civilização do medo" era a própria recuperação do movimento ecumênico que se reunia em volta ao caixão de Dom Luciano. E não foi outro que o risco do genocídio no Líbano, que marcou os seus últimos artigos, inclusive o deixado interrompido, à hora em que saiu do quarto para as terapias de urgência.



Todo o episcopado brasileiro fez de Dom Luciano o mais votado entre os escolhidos para a Comissão Permanente dos novos Sínodos que começa Bento XVI. E o Papa, no Vaticano, no dia de seu enterro, diante do retrato e da notícia, num frêmito de comoção, repetiu "Santo Bispo, de Deus e da Igreja".



Nos momentos de secularização que vivemos - tão atrasados estamos, na "cultura da paz" e do desarme dos corações - o recado de Dom Luciano nos deu no coração do religioso de Minas, o recado de que participa todo o País. Não há gentios para o seu sorriso, nem prontidão ou desconfiança da alma diante de quem perguntou, por mais de seis décadas: "Que posso fazer?".


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 01/09/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 01/09/2006