Do livro Meridiano celeste & bestiário
Rio de Janeiro, Record, 2006
Bem sei que as partes
que me cercam
não me atendem
que me debato
num exílio
de fontes e cuidados
que sonho a cada instante
um vento que me leve
para outro mundo
esse outro cada vez
mais outro
e mais distante
sei que me esperas
junto ao nada
onde fundaste
uma demanda
de torrentes e de espinhos
mas como aderir
às rochas nuas
e às estrelas frias
de teu mundo
que segue além
desse meu vasto
desamparo?
trago um deserto de pedra
e areia dentro de mim
e é quanto me basta
vivo as noites
sem luar de meu país
e suas províncias
não aspiram senão
à paz romana
diante dos conflitos
que me arrastam
levo em silêncio
um pacto
de armistício
às jovens cidades
que moram
nos ermos de mim
e tramam rudes sedições
o meu país se move
entre esperança
e desencanto
algo que procuro
e de súbito abandono
arco
e
flecha
pedra
e
nuvem
não espero e nem desejo
a secessão de meus estados
mas a beleza da mulher
que me beije nos lábios como um deus
*
“Formas intangíveis”
Formas intangíveis
para as quais
se volta
essa imprecisa
fome de beleza
*
Niseana (II)
Suas mãos
regem
um concerto invisível
a chama do inefável
e o fogo que separa
o silêncio da palavra
um vaso de flores
sobre a mesa
nuvens carregadas de chuva e assombro
toda a substância é
necessariamente
infinita
Deus
ou por outras palavras
a substância que consta
de infinitos
atributos existe necessariamente
ou ainda
e com maior fervor
entre chávenas ardentes
e o azul de sua voz
da natureza divina
devem resultar coisas infinitas
em número infinito
flores sobre
a mesa
e o vapor do chá formando
elipses
que nos levam
às coisas
mais tangíveis e amadas
os olhos felinos de Leo
bebem o silêncio de Deus
*
“A noite é fria”
A noite é fria
e as estrelas
brilham ao longe
é preciso sofrer
a vastidão
como quem se entrega
ao sacrifício de um deus
passei da insônia
escura
ao candor
da Via-Láctea
são tantas e tão diversas
as formas
de sondar a beleza
o Cão Maior
e a estrela Sirius
a mais brilhante de todo
firmamento
Antares
rival
de Marte sendo outro
seu vermelho quase
tão forte e vivaz
Sagitário
com seu arco
esplendoroso
e as vastas nebulosas
que se adensam
da cauda do Escorpião
aos braços
do arqueiro
a nebulosa da Lagoa
a Trífida a Ferradura
e outras muitas
como a M 55
meu sono químico
se perde no silêncio
em que ressoa a mais profunda paz
e vem
antes que Lúcifer desponte
rompendo a escuridão
com a força de seus raios
antes que Lia
volte a perseguir
com seus latidos
gatos mariposas
hei de voltar sereno
aos braços da manhã
para caçar as formas
da beleza
mais funda e mais severa
*
“Para Antonio Carlos Villaça”
Como dizer Villaça
os medos
que devastavam teu coração?
o mosteiro errante
ao qual pertencias
e para o qual não sabias voltar
monge sem mosteiro
saltimbanco de um
circo místico
o perene abandono
de deus
e dos homens
sob cuja
sombra inquieto
te guardavas
esse crepúsculo de amores
não vividos
e tua anfíbia
condição de céu
e terra pecado
e salvação
essa memória
impenitente
era teu inefável luminoso labirinto
a luz
de que surgiam
os mortos
para tomar café
todas as tardes
na praia do flamengo
teu coração
feroz
e compassivo
e os mortos devastados
redivivos pelo deus cruel
e solitário da memória
das sentenças
de Abelardo aos livros
de Gilberto Amado
das cartas de Alceu
aos poemas
de Drummond
um deus que não sabia
nada de si mesmo
preso às teias de um fatal esquecimento
a tirania sagrada
que impuseste para esconder
as formas frágeis de teu rosto
tuas palavras tendiam
ao silêncio transformadas
de há muito em estrelas
e um anjo precisaria
arrancá-las de teus olhos
antes que se dissolvessem
na luz
das coisas
fundas que alcançavas
mas ele não veio
e te salvaste apenas
das atrocidades do mundo
não do abismo
de tua vasta
mortal delicada inocência
*
“Autopoema”
Marco lucchesi
é o nome
de uma nuvem
árdua pluriforme
ligeira
e imperscrutável
que se desmancha
na medida
em que se mostra
tão maleável
como
um serafim
tão
orgulhoso
como um paquiderme
um poço
estranho
mudo
e longilíneo
o medo para
fora e o grito
para dentro
marco lucchesi
nuvem
paquiderme
fera abismo
sem fundo
anjo da terra
monstro de
cega e cabal
contradição
*
“Vestígios de mar”
Vestígios de mar
na cerração do hospital
vejo as costas de Benin e
Moçambique
sou um navio
desapossado
preso a liames
e cordoalhas
içam
da garganta
a âncora
que baixaram de madrugada
a voz
do médico
ao longe
você sabe
onde está?
claro que sim
estou
em mar português
e o Patriarca de Lisboa
manda lembranças
ao Samorim
para Marcos Mendonça
*
Irrompem sediciosas
as palavras
olhos e crinas
varridos ao vento
tão ávidas
palavras
que se agitam
nos látegos
de sombra e rebeldia
galopam
sobre o casco
dos sentidos
e acorrem
à planície
amanhecida
inarrestáveis
como se buscassem
o deus
inacessível
dos cavalos
*
Preguiça
vagarosa e paulatina
presa
de um sonho
líquido e fugaz
como quem sabe
a queda dos impérios
e seu botim
de espuma e de aguarrás
*
Girafa
Passeia
nas páginas
do alcorão sagrado
em
lindos
tanques
em
verdes
prados
sufi pernalta
mudo minarete
bebe os versos do
profeta
em vertigem
de ascensão
*
Pulga
a fome
infinda
em rubros campos
pasce
nas órbitas vazias
Antares
reponta
iridescente
e os vivos
temporais das nuvens
de Magalhães
*
Gato
lambe
com olhos
lânguidos
as províncias
do sono
e as feras fulvas
que assomam
no palácio
entressonhado de Dario
*
Vagalume
sábio
alquimista
do ouro das estrelas
teóforo
da escuridão
prepara
na vigília do graal
a insurgente
epifania da aurora
*
Besouro
zumbe
com malhos
e martelos
contra
as vespas
otomanas
protomártir
das cinzas
de Bizâncio
de cuja
queda
não tem notícia
*
Abelha
derramam
as abelhas
seus tesouros
assim como eu
derramo solitário
as vozes
agridoces
que me assaltam
nessa colméia
de palavras
e zangões
*
Jararaca
surge
um poema
em forma de serpente
no fundo
de uma selva escura
insone
e sonda
o veneno
do silêncio
e morde
vorazmente
a própria cauda
nas entranhas
sensíveis da palavra
surge um poema
em forma
de serpente
*
Hipopótamo
bfftug ñtrund
rduff
thvusff
ngwu trkt
bfftug ñtrund
sbruh
trkt
thvusff
trkt
ndpufffffffffff
*
Formiga
avançam na conquista
das nações
fileiras de saúvas
sob a cruz de Malta
morrem buscando
espessos
montes de açúcar
e nessa química
dominação dos povos
dom Manuel
de antenas
venturoso e sábio
Do livro Sphera
Rio de Janeiro, Record, 2003.
*
Um laço misterioso en
laça e desenlaça
umas às outras as palavras
atiça e des
atina
o silêncio
das florestas
move e dis
persa os pássaros in
visíveis que regem
o sentido das coisas
*
E brilham ácidos
e sais borbulham pedras
ressoam e morrem
palavras no antro
escuro
do alquimista
ampolas e bacias
o verbo
esplende em mar filosofal
*
Abeira-se
do abismo
com seus olhos
líquidos para saber
onde repousa
o nada
e sempre esse desvão
essa caçada
que o aprisiona em
quedas imortais
*
E quando
a noite baixa
sublime e irrefletida
não sei mais
prorrogar
a força que me aterra
Shiraz, 2001
*
Teu rosto
acende meus sonhos
de reparação
algo me atinge me confunde e me arrebata
*
Averróis
Me afogo
no mar
da divindade
sem nome
sem
rosto
e quantidade
*
escrevo sem
deixar vestígios
enquanto busco teus
sinais
ambíguos
*
Prepara atentamente o magistério,
em fontes, pelicanos e atanores,
e acede cuidadoso ao ministério
com ácidos, solventes e liquores.
Vigia bem teu sublimado império
de líquidas fronteiras, e os amores
de reis e de rainhas, no mistério
de cópulas ardentes e vapores.
Aos poucos se revela no tugúrio,
erguendo o poderoso caduceu,
a fúlgida presença de Mercúrio.
E sob as nuvens químicas do céu,
na superfície desse mar sulfúreo,
emerge luminoso o próprio eu.
*
Todas as coisas
fogem
de tudo eternamente
e apenas sobre-
vive o risco da distância
*
E a soma das distâncias
que me ferem
mal
se compara ao
silêncio
que
me assalta
*
Como arrancar
do nada a pele
do silêncio
o verbo i-
material levado
por demônios mais sutis?
*
Não se move
e avança
não começa
e termina
o seu pensar consiste
em não pensar
está em toda
a parte mas não
está
em parte alguma
é visível e não
se mostra
seu remédio não
cura
seu fogo
não arde
em toda a sua
medida a desmedida
*
Não há segredo
algum no corpo da
palavra
ou antes
ao combiná-la com verbos
e liquores
ao dissolvê-la em
serpes
e dragões
ao sublimá-la
em vivos
atanores
transmuta-se a
palavra
no rebis misterioso
*
Deus
e a crisálida
amores
lepidópteros
habitam o amanhã
*
A vida toda e a pedra
que não tive
quem sabe
a pedra
que perdi
foi sublimada
e assim me trans
formei na coisa amada
*
Não és
o rio mas seu estado
peregrino
não és
o vento mas
os lábios que o resfriam
não és a
estrela mas o
vazio em que
desaba a escuridão...
(e sendo assim
antes de
tudo não és
nada)
*
Nas águas claras, longe da nascente,
pressinto uma palavra despojada...
mas ela, cristalina e transparente,
se perde na corrente entressonhada.
De todo desvestido e impenitente,
eu busco essa palavra sussurrada,
em sonho, apenas, quase reticente,
onde se aclara a forma inesperada.
Mas vive em suavíssima aparência
o verbo suspirado e pressentido,
na pálida nudez da própria ausência.
Assim, neste silêncio desmedido,
já se percebe a líquida consciência
de um deus inarrestável e indefinido.
*
E salvo
pelo nada
que me assombra
me
entrego
aos veios
límpidos da noite
*
Diferencial
Uma teia de números vertiginosa
insubmissa e que não cede
ao horizonte exacerbado de silêncio
Centelha que esplandece
aos olhos do futuro
E tudo que não diz
é como se dissesse
(Sobre a ambiciosa dromologia do cálculo. Os dois últimos versos são de Antonio Ramos Rosa.)
*
A + ib
O vento esfuma os rumos da distância
Flores reversas nuas invisíveis
No sono das antigas profundezas
um maço de infrangíveis temporais
*
Nascita di Venere
Tua nudez em raios de incisiva luz
em sonhos decomposta
números figuras
Nas úmidas meninas dos teus olhos
ó Aφrodite
eu pouso meu ardor
Corpo sem véu
espuma
assombro negação
*
Indecisão
studio la matematica o lascio le donne ?