Senhor Acadêmico Marco Lucchesi,
Olhar e rosto constituem palavras-chave de vosso itinerário. Empreendestes um vôo de largo fôlego entre os dois conceitos, configurando um percurso lítero-metafísico raramente encontradiço na cultura brasileira.
Após haverdes singrado múltiplos mares bravios, estais ancorando maviosamente no porto mítico da nossa cultura, a Academia Brasileira de Letras. Depois de um trilhar fecundo pela diversidade de planos de atuação cultural, bem assim pela acuidade e criatividade de vossos escritos ingressais em nosso recinto acolhedor. Vossa incorporação aos quadros da ABL traduz a sinalização em se beneficiar a Casa de Machado de Assis da aragem da juventude, identificada com as marcas da modernidade. A propósito não seria desarrazoado relembrar a palavra prudente e mesmo sábia de Romano Guardini: “a idade avançada só alcançará um sentido positivo na medida em que o homem tenha assumido nos anos anteriores uma atitude diante da morte que não seja um mero desviar de olhos”.
Despertartes para o mundo em 1963 como filho único de pais italianos oriundos de Massarosa, província de Lucca, na Toscana. O sobrenome de vossa mãe, Dati, é originário de uma nobre família florentina de escritores e jaz imorredouro no inferno de Dante. A cidade de Lucca por igual frequenta as páginas da Divina Comédia. O estabelecimento de vossa família no Brasil se prendeu ao conhecimento de vosso pai com Assis Chateaubriand e ao trabalho marcante por ele desenvolvido na história da radiodifusão no Brasil. A mudança do Rio para Niterói ocorreu quando tínheis apenas oito anos.
Antes dos 12, iniciastes os estudos de piano com vossa mãe. Com razão dissestes que “o piano, o mundo e a literatura operam no campo das grandes amizades”. Ao piano adicionastes uma nova devoção: o canto lírico.
Um forte impulso interior vos levou a, desde cedo, vos interessardes por línguas estrangeiras. Aos nove anos já vislumbráveis o horizonte que o conhecimento de outros idiomas vos proporcionaria.
O grego e o latim serviram de base para muitas de vossas arremetidas em busca da expansão de vosso especial domínio de línguas estrangeiras.
Dedicastes oito anos ao estudo do russo e do alemão. O árabe vos atraiu de modo particular, levando-o ao deserto e a Beirute. Para vós o árabe é “de uma beleza espantosa, língua de flechas e de arqueiros”. As línguas eslavas, em grande número, vos enriquecem a coleção de idiomas que dominais. Sem falar nas línguas neolatinas, pelas quais surfais com desenvoltura.
Vós vos insurgíeis contra o estudo formal e convencional de idiomas, daí buscando, como autodidata, vos ampliar os horizontes com o aprendizado pessoal de numerosas línguas, confiando na palavra de Goethe de que cada idioma incorporado ao patrimônio cultural descortina para o estudioso nova janela para o mundo. E assim atingistes o conhecimento de cerca de dezoito idiomas.
Encarais com naturalidade a vastidão de vosso tirocínio para outros falares e escritas. Tanto que citais um caso especial, o do Cardeal Giuseppe Mezzafanti, bibliotecário-chefe do Vaticano no século passado que, ao que se dizia, falava 50 línguas com fluência, e era capaz de traduzir outras 114.
De 1975 a 1982, frequentastes o Colégio Salesiano, onde concluístes os então os cursos ginasial e científico.
Vosso foco maior eram a leitura e a escrita, trabalho árduo principiado aos 12 anos, ao colaborardes para o boletim do colégio. No tradicional jornal O Fluminense, de Alberto Torres, publicastes vosso primeiro artigo, aos 15 anos, evocando os 2000 anos da destruição de Herculano e Pompeia sob as lavas do Vesúvio.
Aos 19 anos concluístes o vosso primeiro livro, Breve introdução ao Inferno de Dante, publicado dois anos depois. Desde os 20 anos pertenceis a numerosas instituições culturais de vossa cidade adotiva, e também destaca-se o vosso ingresso no tradicional Pen Clube.
É relevante assinalar vossa amizade com Antonio Carlos Villaça e Nise da Silveira. No primeiro caso, as afinidades avultaram nas esferas literária, filosófica e teológica. Nise da Silveira, em carta a vós endereçada, escreveu: “você escolheu o certo. Até o alemão de Hölderlin você conseguiu amaciar”. E, com propriedade, a ilustre psiquiatra avançou que vós fostes alfabetizado na Divina Comédia. Dois espíritos lúcidos e marcados por tocante sensibilidade se encontraram e teceram um roteiro de reciprocidades eletivas. Publicastes a reunião de correspondência por vós recebida de Nise da Silveira sob o título de Viagem a Florença, em 2003.
Aos 26 anos ingressastes, por concurso, como professor de graduação e pós-graduação no Departamento de Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na mesma universidade concluístes o mestrado e o doutorado em Ciência da Literatura, com textos dedicados à Divina Comédia, que configura vossa “Paixão pelo Infinito”. O pós-doutorado em Filosofia do Renascimento foi obtido na Universidade de Colônia, na Alemanha, em 1994, com tese devotada ao estudo de Marsílio Ficino, alçando-vos à condição de pesquisador do CNPQ.
Vós conciliais a theoria com a praxis, infletindo no concreto vossas criações vigorosas. Dentre vossas atividades mais recentes, pinçamos a edição da revista Poesia Sempre e a coleção de fac-símiles da Biblioteca Nacional, na qual constais como curador dos centenários de morte de Machado de Assis e de Euclides da Cunha e do bicentenário desta tradicional guardiã de nossa cultura. Sois também redator-chefe da revista Tempo Brasileiro, de tão relevantes serviços prestados à cultura brasileira, há mais de quarenta anos, sob a inspiração criativa de Eduardo Portella. Assumistes a direção acadêmica do Colégio Brasil, por igual fundada pelo referido mestre da crítica literária, que enalteceu vossa direção segura. Professor da pós-graduação do Museu da Vida, na Fundação Oswaldo Cruz, espargistes o vosso talento como professor visitante em diversas universidades da Europa.
Uma vida em que o concreto e o abstrato mantêm sadio equilíbrio rejeita a tentação de vivermos o paradoxo de julgar que o imaterial deve expulsar o material e vice-versa, quando a verdade é que o sensorial atrai o nosso ser imediatamente, mas possibilita adiante o despertar da inteligência, a partir do mesmo concreto, para pincelar de universalidade o individual.
Não pode passar sem registro a vossa participação na criação da Universidade do Professor, no Paraná. Sem falar em vossa atuação preciosa na organização de seminários para diversas instituições.
O reconhecimento do valor de vossas obras se traduziu em prêmios literários como o prêmio Alceu Amoroso Lima: Poesia e Liberdade 2008 pelo conjunto da obra poética; Premio Nazionale per la traduzione (2001) do Ministero dei Beni Culturali da Itália; Prêmio Marin Scorescu, na Romênia; o Mérito da União Brasileira de Escritores; o Premio San Pablo, da Cidade de Torino.
Participastes por duas vezes do júri do Prêmio Camões (2008-2009), da última edição do Prêmio Literário Massarosa (da cidade de vossos pais e o terceiro prêmio mais antigo da Itália), além das últimas edições do Prêmio Nápoles de Literatura.
De vossos livros de ensaios, destacam-se Ficções de um gabinete ocidental (prêmio Ars Latina, da Romênia e prêmio Orígenes Lessa da União Brasileira de Escritores, UBE) e A memória de Ulisses (Prêmio João Fagundes de Meneses da UBE 2007), onde avultam ensaios de crítica literária, história, filosofia, teologia, música e matemática, ordenados sob a metáfora e um título, de um sentimento, como aliás em toda a vossa ensaística, como em O sorriso do caos (em torno dos fractais) e Teatro alquímico (Prêmio Eduardo Frieiro 2000 da Academia Mineira de Letras).
Cada livro de ensaio dialoga com outros livros vossos, de poesia ou de ficção, como se houvesse uma ligação entre todos eles, às vezes com um evidente sentido de continuidade. A aconchegar todos estão a consciência do leitor e a inserção do sujeito na hermenêutica ou na história de suas leituras.
Ao final de 2010, embelezastes o vosso rico filão literário com a ousadia de um primeiro romance, O dom do crime. A partir de um crime passional do século XIX, estabelece-se um diálogo com personagens reais e fictícios, que transitam pelo Rio de Janeiro da época de Machado de Assis, acolhendo ótima crítica.
Publicastes em poesia alguns livros relevantes, como Meridiano celeste & bestiário (Prêmio Alphonsus de Guimarães 2006 da Biblioteca Nacional, finalista do Prêmio Jabuti 2007) obra em que o eu-lírico se mostra mais intenso e com uma presença musical mais determinada, como escreve Letícia Malard no prefácio. Já Sphera (Menção Honrosa do Prêmio Jabuti 2004, Prêmio Da Costa e Silva da UBE 2004) tece um diálogo maior com a filosofia, mas de modo sutil, como escrevem Eduardo Portella e Antonio Cícero. Poemas reunidos (finalista do Prêmio Jabuti 2002) guarda vossa produção anterior e reúne importante fortuna crítica. Vosso primeiro livro de poesia, Bizâncio (Comenda Espatário da Trebizonda), reflete a cidade de Istambul e a busca de novas raízes de identidade. Destacam-se os sonetos barrocos, escritos em italiano e português antigos.
Recebestes, quando muito jovem, mais de uma carta e dedicatória de Drummond e Maria Julieta, que vos encorajaram na tradução e na poesia.
Em italiano publicastes os livros: Poesie (Prêmio Cilento 1999), Lucca dentro (Prêmio da Câmera de Comércio de Lucca), Hyades e La gioia del dolor, que levaram a integrar diversas antologias de poesia italiana moderna. São poemas que refletem a nostalgia bilíngue e o denso diálogo com a poesia naquela língua, com Dante, Leopardi, Petrarca, Ungaretti e Campana, poesia visionária, como foi definida, e de forte lirismo. Ressalta a vossa amizade com o grande poeta da segunda metade do Novecento, Mario Luzi, de Florença, bem como de vossa relação quase que igualmente visceral com a poesia da Romênia e vossos amigos, dentre os quais Marin Mincu e George Popescu. Também ligada a essa relação com a Itália, correspondem as edições que organizastes no Brasil, da Jerusalém libertada, de Torquato Tasso, da obra de Leopardi, esta pela Nova Aguilar, bem como as traduções que realizastes de A Ilha do dia anterior e Baudolino, de Umberto Eco, de quem sois amigo, A Scienza Nuova, de Vico (Prêmio União Latina 2000, Premio Speciale del Presidente della Repubblica Carlo Ciampi: Prometeo d´Argento) traduções de grande complexidade, como reconhece a crítica, além de A trégua, de Primo Levi, dentre outros.
Ainda no campo da tradução e sempre com desafios publicastes dois livros dedicados a Rûmî – o primeiro, A sombra do Amado: poemas de Rûmî (Prêmio Jabuti 2001), e o segundo, O canto da unidade, em torno da poética de Rûmî (Prêmio Mário Barata da UBE).
Vossa primeira tradução foi concluída aos dezesseis anos, com o Cântico espiritual de San Juan de la Cruz, que inseristes em Faces da Utopia. A tradução dos poemas de Hölderlin foi elaborada aos 23 anos, revista depois e republicada.
Traduzistes, também, Poemas à Noite, de Rilke e Trakl (Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional 1996), dentre outras obras do francês e do romeno, além da Teologia mística, do Pseudo-Dionísio Areopagita, transposta do grego e do latim, que vos ajudaram na compreensão dos aspectos neoplatônicos da obra de Dante.
Os “Versos de Iúri Jivago” , do romance Doutor Jivago, de Boris Pasternak, fazem pendant com a tradução dos poemas de Khliebnikov e do capítulo “Visitações”, do já citado livro Bizâncio e de vosso grande amor pela cultura russa.
O livro Bizâncio reforça a vossa vizinhança com o Oriente. Sobretudo o Oriente Médio, na cultura árabe, mas também turca e persa. Essa aproximação pode ser apontada em Saudades do paraíso, em que vemos, dentre outros, o vosso encontro no Cairo com o prêmio Nobel Nagib Mahfuz, além do Marrocos. Em Os olhos do deserto, livro que abrange também a Palestina, nas diversas viagens que realizastes, de 1997 a 1999, e que se completou afinal com vossa pesquisa sobre Rûmî (que vos levou ao Irã), é um livro que reitera vossa grande afinidade com Beirute e mais especialmente com Damasco. Escrevestes poemas diretamente em árabe, revistos por Ibrahim Khalil.
Organizastes ainda Caminhos do islã, primeiro livro lançado no Brasil com textos da alta qualidade de conhecidos islamólogos, como Louis Massignon, pouco depois do atentado às torres gêmeas. Conhecestes os poetas Adônis e Unsi Al-Hajj, dentre outros, como declarastes em palestra na feira do livro de Riyadh em 2009, quando mergulhastes na tradição de diversas tribos da península arábica, reunidas no encontro da “Janadria”, ocasião em que saudastes em árabe, de improviso, o ministro do Reino.
Com o tempo, passastes a serdes traduzido. E a primeira tradução veio de Curt Meyer Clason, a quem agradecestes, com um poema em alemão, em que sublinhastes o mistério da transposição de idiomas. Seguiram-se versões de vossa obra em uma dezena de línguas.
Vosso percurso é aureolado por uma nítida presença da simplicidade. Dissestes que “a casa em que morei quando menino hoje em dia mora em mim”. Mas a seriedade do existir comparece diuturnamente em vossa biografia, como vossa admiração pelo silêncio. É a falta deste que Pascal profliga com vigor. “Tenho abismos”, declarastes, atestando a vossa vocação poético-metafísica. “Quero sentir-me prisioneiro de um nomadismo absoluto”. A densidade do humano existir está configurada em vossa observação de que “não consigo imaginar-me sem Dostoievski”.
A vossa acolhida ao próximo parece emergir espontaneamente de vossa natureza. Daí a tolerância com o diverso, sobretudo levando em conta a riqueza de experiências e contatos frequentes com outras culturas e seus valores díspares, quando não conflitantes. É certo que os preconceitos nos batem às portas no afã de nos subjugar aos seus imperativos até por vezes aparentemente éticos. Na verdade o preconceito é uma falha geológica em nossa estrutura anímica. Infelizmente, muita vez, povoa a nossa mente e teima em nela fazer sua morada.
Vós tendes consciência dos enormes desafios lançados à face do homem contemporâneo ao assentirdes que “o ocidente perdeu o sentimento da unidade com a natureza e o divino. Desejou transformar tudo em propriedade”. A assertiva evocou em mim o pensamento sempre agudo de Paul Ricoeur, para quem não faz sentido afirmar-se que o homem possui a verdade, pois ela penetra no tecido existencial do ser humano e se faz presente na totalidade da vida.
A consistência da existência e suas situações-limite levam-me a referir aqui vossa menção penetrante ao filósofo dinamarquês: “não ter desespero para Kierkegaard é uma forma de desespero”.
É o momento de nos adentrarmos na fortuna crítica de vossa obra.
Assim, Ivo Barroso afiança que sois um “espeleólogo da solidão, escafandrista das profundezas do multiego...” E adiante: “quis encontrar seu caminho nos seus descaminhos, e partiu aparentemente à cata de Deus, mas vê-se que é de si mesmo que estava à procura”. Para adiante completar: “toxicômano do livro, adicto terminal da cultura”
É de Umberto Eco o juízo de valor: “Seu trabalho intenso, criativo, resultou numa obra belíssima”.
Michel Mafesoli, da Académie Française, atribuiu à vossa obra uma comovente ária de ópera.
Para Antonio Cícero, “a poesia de Lucchesi é a um só tempo essencialmente cosmopolita e essencialmente solitária”. Daí as fragmentações observadas ao longo de seus poemas.
Fábio Lucas vislumbra “a justaposição do silêncio eterno das esferas e do questionamento interminável do eu poético”.
Wilson Martins surpreende em vós um goetheano integrado na Weltliteratur.
Toda a vossa trajetória, no sentir de Nello Avellla, é marcada pela nostalgia do mais.
Em prefácio de Sphera, Portella “detecta um Lucchesi que consegue alcançar “a espontaneidade sábia ou a sabedoria espontânea”.
Assente Constança Hertz que vossa obra “ensina que o impossível existe e assume a forma perene de sua Poesia”.
E Vós, como vos definis? “Sou uma nuvem de livros e ideias fervilhantes”.
Cuido necessário recordar que vos sentis prisioneiro de um nomadismo absoluto. Jamais vos deixais coartar. Sois um espírito liberto de entraves ao vosso pleno desabrochar existencial. Por isto cultivais a distância, até porque sabeis ser esta a melhor forma de se falar de Deus. “Quero apenas a distância”. Tal assertiva me recorda a clássica obra de Jean-Luc Marion, L´idole et la distance.
Vós caminhais pela tradução, crítica literária, ensaio, como editor de revista, curador de exposições, - sempre premiado – transitais por essas distintas formas de pensar e sentir com plena coerência e rigor metodológico. Tudo se encaixa neste vórtice criativo invulgar na ânsia de encontrar um sentido aparentemente perdido para o mundo que habitamos com perplexidade. É de interpretação do mundo que se trata quando pusestes vossa pena ágil a serviço, eu diria, da verdade e não das certezas. Da verdade como pureza do olhar que constrói o mundo dentro de si e à sua volta, numa torrente literária de forte ímpeto e de uma rara consistência entre pensadores com genuína densidade intelectual. Tudo isto impregnado por um impulso dialogal que há de ser sempre considerado pilastra de sustentação ontológica do eu profundo a se constituir no trilhar do espaço-tempo com que modelamos nossa existência.
A multiplicidade de gêneros frequentada por vós não nos veda o olhar para as interfaces que ocorrem a todo momento entre as áreas de vossa atuação intelectual, assim como a presença de temas que pervadem igualmente diversos gêneros. Poesia, ensaio, crítica literária, tradução não formam compartimentos estanques em vossos escritos. Vós sois um raro exemplo concreto da disquisição de Eduardo Portella sobre os gêneros literários, ao apontar a interação entre os mesmos, sem a rigidez de fronteiras nitidamente demarcadas.
O caminho entre o olhar e o rosto foi o escolhido por vós para criar o périplo de rara beleza em que a poesia e prosa convivem harmoniosamente, pois jamais perseguem as sombras das diferenças, senão que se deixam ventilar pela sadia vizinhança.
O olhar principia no plano sensorial Sensação, percepção, intelecção é a ascensão cognitiva tradicional. Mas o olhar pode significar a admiração de que cuidava Platão. Ou nos conduzir suavemente à distinção tomista entre curiositas e studiositas. São maneiras de aprofundar o olhar que não nos deve orientar na direção de um cemitério de objetos mencionado por Baudrillard.
Mas o olhar pode e efetivamente se volta continuamente para si mesmo a fim de constituir um referencial necessário à posterior construção existencial almejada.
Na verdade vós nos descreveis vosso percurso em que o olhar inicial aparentemente ingênuo será ultrapassado pela penetração na esfera ontológica e, portanto, constitutiva do mais-ser. No fundo, a vossa perquirição deita raiz mais ancorada no solo firme do real, já agora estendendo seus tentáculos à subjetividade. É a busca nunca olvidada da autenticidade da investigação da interioridade, a intimidade de si para consigo mesmo na ânsia de que o olhar, que perpassa a chamada realidade objetiva, sobe ao eu profundo para, afinal, se expressar num Rosto que lastreia o nosso próprio perfil, neste amplexo em que a nossa vocação se une ao nosso destino, mercê da liberdade que molda o nosso ser, através dos atos livres postos à nossa disposição por uma benemerência do Criador. Assim, vós transitais pela estrada real que parte de um olhar ao encontro de um rosto, que ao termo da caminhada será um Rosto. É a Transcendência de que cuidais com engenho e arte a modelar vossa Weltanschauung. É a paixão do Absoluto “que marca o olhar de Beatriz e o rosto de Deus”.
Vós tendes nítida consciência da fragilidade dos ombros humanos para enfrentar os desafios do mistério da existência e do Ser. Mas também sabeis que não podemos fugir ao apelo da vida e da vida em plenitude. É por isto que a filosofia e a poesia continuarão presentes em vossa caminhada, nas amplas estradas ou nos atalhos da capilaridade poético-metafísica, invariavelmente em busca de sentido, de razão de ser, de perseguição ao mais-ser do homem.
Antonio Carlos Villaça, mais de uma vez referiu o vosso nome ao lado do de José Guilherme Merquior, uma das mais potentes inteligências de nosso panorama cultural e afiançou que “Marco tem a vantagem da leitura teológica, que Merquior não tinha, com o seu iluminismo”.
Em vossa obra se vislumbra uma articulação substancial entre a poesia e a metafísica, hoje por vezes relegada ao olvido.
Mas vós bem sabeis que há um refúgio ante as nuvens sombrias que cercam o homem contemporâneo: é o recurso às armas encantadas da poesia que não abandona o ser humano em sua luta cotidiana pela busca, no mínimo, de um lugar no cosmo, quando não ao superar a fenomenalidade, abrindo-se ao grande Encontro.
A riqueza, a consistência e o estilo inteiramente original de vossos escritos atraíram as atenções dos verdadeiros humanistas que a natureza dotou de sólido embasamento cultural, baseado num despojamento pessoal que apenas salientou o vosso perfil humano, demasiadamente humano.
O sempre citado Villaça volta ao cenário para asseverar que vós sois um dos maiores leitores da história brasileira. “Um mestre renascentista”, ao lado de Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Alceu Amoroso Lima, San Thiago Dantas, e José Guilherme Merquior.
Sois um peregrino, sedento de conhecer outras plagas, outros costumes, beber na fonte de outras culturas. Mas o solo pátrio muito vos atraiu a atenção. Pinço um exemplo, mercê da importância que atribuis a Os Sertões, quando contáveis 17 anos. Canudos e sua tragédia vos tocaram fundamente, a ponto de haverdes descrito o espaço-tempo da grande tragédia: “tudo submerso. O cemitério, a cultura, a história. O que resta de Canudos é um sentimento doloroso de que o futuro não chegou aos sertões. Passaram cem anos, mas foi ontem.” É um toque ajustado ao estilo sempre surpreendente de Guimarães Rosa.
Deus, presente em vossa obra, era pura altitude, pura vertigem... Inicialmente, escrevestes que “Deus era para mim um esplêndido dicionário bilíngue greco-latino.”
Cabe aqui recorrer à forte assertiva de Unamuno: “Aquele Deus lógico, obtido via negationis, era um Deus que, a rigor, não amava, nem odiava, porque não gozava, nem sofria, sem pena nem glória, inumano, e sua justiça, uma justiça racional ou matemática, isto é, uma injustiça”. Vós queríeis um Deus solar. Um incêndio.
A causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de toda afirmação, e a existência d´Aquele que está absolutamente separado de tudo e acima de tudo supera toda negação.
Não há encanto em manipular conceitos, deixando o coração deserto.
Concluístes acertadamente que nenhum sistema leva a Deus.
Por vezes ofereceis a falsa impressão de que o vosso trilhar se choca frontalmente com a metafísica. Obtemperastes sem rebuços: “metafísica, teu nome é uma pedra”. Assertiva que não deve ser compreendida superficialmente, uma vez que aquilo que nos move é a busca incansável de um plano não abstracionista para o percurso metafísico, que é o vosso, por incontida vocação. A metafísica não é um saber puramente abstrato divorciado do real, senão que um modo de percorrer os escaninhos do real, com intuição privilegiada e o incontido desejo de ir além do que se nos apresenta de modo meramente fenomênico. Isto porque as categorias tradicionais da metafísica jamais vos satisfizeram a inata e torrencial studiositas.
Hoje, falar de metafísica é temerário e atrai críticos inflamados e plenos de racionalização da razão. Pobre razão, quando não se opulenta com a sensibilidade superior, com a intuição intelectual, volitiva ou emotiva. Sem falar no plano desafiante do mistério. As chamadas potências do eu se somam e se enriquecem num olhar mais envolvente em que o real, em acepção mais abrangente, não é apenas uma aparência, mas transita nos altiplanos que tanto nos atraem. Especialmente a quantos não se contentam com a veste que encobre a genuína realidade não nos permitindo sentir o fragor do que se tenta esconder de nós a ambição desmedida, e mesmo insensata, de geometrizar a filosofia ou de logificá-la nos manuais didáticos de escassa densidade.
No sentir de Edgar Morin, a racionalização “é o delírio lógico, o delírio da coerência que deixa de ser controlada pela realidade empírica”. Isto equivale a dizer que a razão é dinâmica, o que se observa pelo vosso cuidado metodológico para quem não há rigidez nas categorias lógicas que presidem ao desabrochar de vosso pensamento robusto a vos inflamar a veia poética de largo espectro.
Desde cedo vistes com olhos de lince a profundidade do mistério que não se deixa penetrar por visões perfunctórias. A riqueza do mistério nos atrai o espírito pela força imperiosa que ele mal consegue ocultar. Os que lhe negam o peso e a significação respiram a atmosfera rarefeita dos negativismos e niilismos.
É raro lobrigar-se escritores que tenham a coragem de desafiar os acenos de uma contínua e progressiva desconstrução, vez por outra e, raramente, oferecida com requintes hermenêuticos.
Não foi à toa que Peter Wust nos legou sua Die Aufestehung der Metaphysik (A ressurreição da metafísica) e que, na França, René Le Senne e Louis Lavelle inauguraram a coleção Philosophie de l`Esprit.
Senhor Acadêmico Marco Lucchesi:
Diz-se que todo filósofo é um pedagogo. Atirando a barra mais longe, quando à riqueza especulativa se acrescenta o filão poético, o impacto produzido por tal densidade de comunicação atinge o paroxismo. Eis o vosso caso. Daí a vossa nomeada cultural, que já transpôs nossas fronteiras, alargando o raio de ação de nossa cultura neste mundo superlotado de desafios.
Hoje, ingressais nesta Casa de Cultura ímpar com títulos extremamente significativos, com a publicação de numerosos e ricos poemas, ensaios e críticas literárias de fina sensibilidade, traduções cuidadosas e com plena consciência da dificuldade da transposição de idiomas, e mesmo um romance, a par de superior exercício docente em centros universitários do país e do exterior.
A Academia Brasileira de Letras vos recebe com incontido júbilo na certeza de que estará mais enriquecida com a vossa presença entre nós.
Bem-vindo àquela que, a partir de hoje, é também a vossa Casa ainda mais luminosa com o vosso olhar em busca de novos rostos.