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Discurso de Posse na Presidência da ABL - 2019/2020

Senhoras Acadêmicas

Senhores Acadêmicas

Senhoras e Senhores

Após toda uma herança de escombros e resíduos da era pós-moderna, seria preciso saber o que restou da ideia de História e de suas potências ferozes e profundas.

Para Jorge Beinstein, uma crise iniciada há décadas “e acelerada no final dos anos 1990, constitui o começo do afundamento da civilização burguesa, o que abre as portas para a sua superação ou para a sua degeneração, em formas de barbárie sem precedentes na História”.

Indago se o desafio reside nos extremos. Superação e decadência, leitura e desleitura, história e destino. Teremos de avançar por uma selva de questões irredutíveis ou haverá espaço para uma viva dialética do processo?

Não tenho como responder de modo inequívoco e geral à herança desse mal-estar que nos coube, no coração, senão traçando um caminho irregular e nada emblemático para a História – de um leitor ingênuo a um leitor insatisfeito.

Para muitos, a História não podia não ser universal: livro aberto, in-octavo, de vastas proporções, altissonante e vertiginoso, escrito com sangue, a transitar nas artérias do tempo. Fluxo de invasões, templos em ruínas, arquitraves partidas, fachadas e capitéis destroçados. Um mundo de infame sinergia. Sucessão de belezas e de escombros.

Seu estilo devia ser eloquente. Uma sinfonia inacabada de vidas ilustres e heróis paralelos. Crimes inomináveis e adjetivos vibrantes. Tal como as lavas do Vesúvio, soterrando Herculano e Pompéia.

Era preciso mergulhar na noite dos tempos e determinar-lhe os segredos: a cadeia de causas – mais compridas e difíceis que as de carbono – devia traçar um conjunto de mecanismos que desvendasse o Teatro do Mundo, nas tramas espessas que o compõem e circunscrevem.

O triunfo do tempo parecia líquido e certo. Os dias que se sucedem aos dias. E as gerações em trânsito. Seria possível prender com pesados grilhões as asas do tempo? Transformar a Terra numa esfera imóvel pairando sobre o nada? Emprestar mil anos a Sócrates, e outros mil a Lucrécio, sem que os mortos enterrassem os mortos?

Muito passado para pouco futuro! O devir seria um motor imprevisto. A causa eficiente. E nem sequer o pensamento podia cantar vitória, diante das garras do Tempo!

Donde o frio na espinha. E o espanto de saber que as coisas acenam e passam.

A Academia guardará um antídoto secreto contra os moinhos da História? Talvez uma franja de eterno retorno. Dentro da História, sempre. Sonhando o lado de fora. Quase impossível, como o éter de Aristóteles.

Seja como for, a Casa de Machado de Assis é antes de tudo uma república das letras. Marcada por uma vocação ecumênica, não ergue muro ou fronteira, não adere ao pensamento único, não teme a contradição nem a dialética. Não teme os motores da História. E se rejuvenesce, com a presença de novos membros. Eis o eterno retorno, o círculo virtuoso do pantempo.

Na Academia não há temas proibidos, não há trincheira que divida homens e ideias. A república das letras não promove critérios de valor negativo sobre orientação sexual, religiosa e ideológica. Temos uma fé tripartite: a isegoria, livre direito de expressão; a isonomia, não distinção entre quem somos; a isocracia, igual capacidade de poder.

Trata-se, ademais, de uma república laica, independente da fé, dos que creem ou deixam de crer. Não há polícia de costumes, nem práticas de obscurantismo. Temos horror à censura e às ameaças contra a autonomia da obra de arte. Seguimos trilhas de emancipação. A educação como prática da liberdade. Formamos um sodalício cultural, consoante o regimento, cláusula pétrea, o estatuto dos fundadores. Em outras palavras, a Carta Magna de Machado, que nunca ousamos desidratar.

A presidência é pro-tempore, fruto de eleição, de cujo voto, secreto e igualitário, emerge, um transitivo, e transitório, primus inter pares. O presidente, no entanto, imprime sua marca e sensibilidade ao processo, na forma de ler o mundo, cônscio de seu múnus, determinado pela sombra luminosa de Machado. Essa memória incontornável exige uma liturgia de prerrogativas. O presidente é tão-somente o corifeu, cuja voz mal se destaca do coro, em zonas de consenso, sem protagonismos pueris ou trejeitos personalistas. Qualquer laivo de autoritarismo seria de todo impraticável. A função do presidente limita-se a promover o diálogo das partes, propor iniciativas e zelar, como guardião, a paz romana desta Casa.

Nem por isso afundamos na ferida narcísica, que constitui a Instituição, nem deixamos tampouco de observar as outras, e mais contundentes, feridas de ordem social. Não andamos reclusos ou distraídos, à roda do quarto, ou das cadeiras.

O produto interno bruto de que se orgulha esta república é a diversidade cultural, a noosfera, o diálogo fraterno e poliédrico entre as gerações, desde os que partiram aos que ainda não chegaram. Assim determinou a sabedoria de Nabuco e Machado: prontos ao diálogo, formando anéis e conjuntos solidários.

Dispomos de instrumentos sutis e preciosos de sentir, de abraçar o mundo, sem vezos coloniais, longe da imposição, da força e do slogan. Somos filhos da gratuidade. Nosso coração é ecumênico. Tudo podemos, desde que não se ultrapasse o limite que promove a lógica delicada que nos constitui, nosso ethos, nosso desejo de cultura.

Sabemos que cada época possui uma ideia do sublime e um modo de traduzi-lo, que cada sistema filosófico possui a sua altitude, assim também a matemática, a religião e a filosofia, as formas várias do humano pensamento. Não fazemos expurgos, não aplaudimos um index librorum prohibitorum. O espírito livre e aberto, não deixamos de visitar nenhum sistema cultural, mesmo os mais indigestos, segundo uma inclinação antropológica suficientemente capaz de robustecer nosso repertório, para alcançar horizontes biodiversos.

A Academia Brasileira de Letras é uma instituição emblemática, uma realidade sociológica, arquétipo denso e profundo, que não coincide apenas com os membros que a constituem, mas com boa parcela do imaginário brasileiro.

A atual Diretoria não ignora sua alta responsabilidade.  

A crise econômica é longa e os raios da aurora seguem distantes. Enfrentamos a noite escura com métrica e discrição. O desafio da sustentabilidade segue em construção paulatina.

Para arrostar as agruras de um ano, por assim dizer, pouco amigável, decidimos a refundação administrativa da Casa.

Seria aborrecido enumerar a reforma estrutural. Basta sinalizar um viés sistêmico, transparente e integrado. Não buscamos uma revisão geracional, mas o entendimento proativo, a reunir um somatório de aptidões. Consigno meu reconhecimento às senhoras Ana Paula Castro, Maria de Lourdes Caristiati e ao senhor Evandro Jacob, por aceitarem esse importante redesenho, com a implantação de novas tecnologias de controle e gestão. Agradeço aos funcionários, na figura de nossa Carmen de Oliveira, pela compreensão dos remédios, amargos e eficazes, para lidar com os desafios pelos quais, entre Cila e Caríbdis, passa o Brasil.

Não deixamos de cumprir e avolumar, na contramão das vicissitudes, uma saudável agenda cultural.

Firmamos convênio com a Accademia dei Lincei, a casa de Galileu Galilei, a mais antiga instituição científica do Ocidente. Assinamos protocolo com a Academia Argentina de Letras e com a Real Academia da Galiza, segundo laços linguísticos, históricos e culturais que nos acercam.

Renovamos nossos laços com a Sorbonne Nouvelle, Paris 3, e com o King’s College. Firmamos convênio com a editora da Câmara dos Deputados, sempre na esfera republicana do livro e da cultura. Em se o protocolo assinado com a UFF ampliou o programa de Música de Câmara, o protocolo com a escola Martins Pena, da Faetec, adensou o programa Teatro Educação.  

As atividades solidárias não cessaram, a começar pela intensa visita às áreas quilombolas, razão pela qual firmamos, com o Instituto de Terras do Rio de Janeiro, um protocolo, o modus operandi para a formação de bibliotecas. Assim também as visitas às escolas das aldeias indígenas adquiriu consistência com o seminário de caciques na Casa de Machado, saudados por um membro da Academia, em guarani, sem intuito de vanglória: pronunciar a língua-mãe é o princípio básico da hospitalidade e um aceno de acolhida. Somos todos brasileiros, com direitos iguais, embora culturalmente diversos.

A ida às prisões seguiu o mesmo curso do ano passado. É preciso passar da masmorra à escola. A primeira não substitui a segunda. Num futuro não muito distante só haverá escolas. Sou um abolicionista de carteirinha. E sonho com o fim desses últimos navios negreiros ancorados na terra firme da desigualdade.

Efetivamos parceira com a campanha de Natal dos Correios e priorizamos o envio de novas mídias às bibliotecas para deficientes visuais em todo o Brasil. Aumentamos nossas remessas de livros para a África e outras partes do globo. Visitamos centros de ensino e bibliotecas, nas zonas mais vulneráveis do Rio de Janeiro, levando palavras fraternas, volumes diversos, pequenas reformas, em parceria com a Marinha.

Não é possível listar os projetos que se encontram detalhados no relatório de atividades. Outros programas avançam para 2020.

Sabemos que tudo está para ser feito. Uma feroz inquietação determina o ritmo de nosso relógio. E, no entanto, compartilhamos o sentimento de que estamos vivos, a enfrentar a crise com prudência e destemor, e de portas abertas. Nosso compromisso maior reside no fortalecimento da Casa para o futuro. E o repto permanece intenso.

Cultura e educação: os instrumentos da mudança, valores que, de Machado a Guimarães Rosa, seguem duros como a rocha. Não nos falta um grão de esperança.

Agradeço aos acadêmicos Merval Pereira, José Murilo de Carvalho, Edmar Bacha, pela seriedade com a qual aderiram à tarefa, e dou as boas-vindas ao acadêmico Antonio Torres, que hoje se incorpora à Diretoria.

Declaro minha gratidão, líquida e patente, à Acadêmica Ana Maria Machado, cuja palavra e inteligência, cuja franqueza e ousadia, constelaram de harmonia os céus escuros de metal desses dois anos. E nos fez sonhar, abrindo os limites da ABL, a partir da fictícia, e generosa, cadeira 41.

O discurso de posse não admite considerações de ordem particular, a não ser que correspondam a um motivo estrutural, uma ressonância entre a função da presidência e algum resíduo pessoal revestido de dignidade no desempenho das funções. Não vou listar minhas vicissitudes: acabei com o ano de 2019 antes que o irascível 2019 acabasse comigo. Isso ocorreu, apenas e tão-somente, porque essa jovem, de sorriso oriental, que se encontra hoje, e sempre, do lado esquerdo de meu peito, e nesta sala, arrancou-me de um círculo de fogo. Chama-se Ana Paula, meu princípio Horus. Cito um verso de Dante, canto 31 do Paraíso, como se lhe fosse destinado. Dante talvez não soubesse que Ana e Beatriz se confundem: “Tu m’hai di servo tratto a libertate”. Hoje, 12 de dezembro, Novalis e Alphonsus, em alguma parte, celebram o plenilúnio.

 

Senhoras Acadêmicas

Senhores Acadêmicos

Senhoras e Senhores

Começamos com os motores da História para testemunhar a hora presente.

Ninguém faz política dessa tribuna. A Academia não desce ao específico, trabalha com ideias gerais. Não tem partido. E assiste, inquieta, aos insultos dirigidos à educação de nosso país, com slogans primitivos, com o diapasão do destempero e da autossuficiência. A cultura jamais firmou pacto com o demônio. Mas o demônio, mesmo assim, como dizia Papini, é mais razoável do que se imagina. Leiam Milton e Goethe. Leiam Valéry e Guimarães Rosa. A propalada guerra cultural não tem razão de ser. Trata-se de um deplorável desvario e seguirá, tal como vai, anacrônica e perdida. Não há lugar para retrocesso. Sonhamos um tempo de paz e tolerância.

Há quem viva no castelo de Atlas, atacando fantasmas, com sotaque paranoico. Os professores ensaiam o futuro, ensinam a alçar voo, abrem caminho para um mundo generoso e solidário. Imperdoável que o titular de uma pasta continue a desferir ataques antediluvianos à Universidade pública do Brasil.

A Academia defende a liberdade de pensamento, amparada na Constituição de 1988. Temos sede de altura e não buscamos armadilhas de um Logos partido ao meio. Repudiamos a linguagem de agressão e turpilóquio, pois vivemos de subidos ideais, com Celso Furtado e João Cabral, com Miguel Reale e Roberto Simonsen. Temos muito a aprender, da maiêutica socrática aos horizontes freudianos.

Como apressar os motores da História para desfraldar a bandeira da tolerância e do diálogo, senão através da paciência dos dias, de uma cultura ética, do espírito e da terra? Como fundar um sentido mais aderente daquela paz perpétua, sugerida por Kant, zum ewigen Frieden, senão através de uma sólida base republicana, fora da qual não há salvação?

Como disse Pascal, antecipamos o futuro porque o consideramos vagaroso, ao passo que almejamos frear o passado, porque parece correr em demasia. E, no entanto, deixamos de pensar o tempo, dentro do qual nos situamos.

Não haverá saída possível se não lançarmos um olhar frontal e desarmado para o presente. Não como súditos ou inimigos, mas enquanto cidadãos para  construir , de forma inclusiva e generosa, o bem comum.

Acadêmico relacionado : 
Marco Lucchesi