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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Ruy Castro

Imagine um mundo sem fronteiras. Um mundo em que as delimitações físicas sejam miragens, sem guaritas ou cancelas, sem começo nem fim. Não existem o Sul e o Norte, o longe e o perto. O passaporte é quase uma formalidade, às vezes até dispensável. Entra-se em toda parte por portas invisíveis e sai-se dela pelas mesmas portas. É um espaço difuso, uma eira sem beira.

E, assim como esse espaço é difuso, seu tempo também é. Não há passado ou futuro. Apenas um presente constante e, mesmo assim, provisório, porque logo poderemos deixá-lo, trocá-lo por outro. Ou sermos trocados. Num mundo como este, de espaços tão voláteis, o tempo dos relógios é contado de maneira diferente. Tem só o ponteiro de minutos, não o de horas – o ponteiro do presente, não o do futuro. Não se pode garantir o que acontecerá daqui a uma hora.

É um mundo em que as malas nunca estão completamente abertas nem fechadas, mas prontas para serem feitas ou desfeitas --- cada qual contendo pouco ou nada do espaço que se deixa para trás, porque não se pára em lugar nenhum por muito tempo. Essa vida em eterno trânsito gera também pouca ou nenhuma expectativa sobre o espaço que se seguirá. A única diferença entre esses espaços talvez seja o tempero da comida. Tudo o mais é igual. As pessoas com quem se convive, não importa a cultura, obedecem aos mesmos ritos, etiqueta, hábitos e formas de tratamento. Até a língua é a mesma em todos os lugares: o francês. A língua local, que se pode ignorar, é restrita aos locais.

É uma travessia sem fim, e o que dizer do oceano em que se dá essa travessia? (Sim, porque essa divagação se passa no tempo das viagens de navio.) Os mares não se importam de ter a sua doce mesmice quebrada pelos eventuais portos a que se atraca. Os portos são provisórios. Um dia passarão e darão lugar a aeroportos, tão impessoais quanto eles. Só os mares e os ares são eternos.

E, por paradoxal que pareça, viaja-se pelo mundo todo sem sair do lugar. Não importa onde se esteja, é sempre o mesmo território. Do portão que o separa da rua ou da porta do seu andar para dentro, esse território é o Brasil --- seu escritório comercial, seu consulado, sua embaixada, a residência do embaixador. Tudo isso de que estou falando, naturalmente, é da vida de um diplomata e de sua mulher e filhos que o acompanham por suas funções, nomeações e promoções.

Edgard Telles Ribeiro, diplomata e filho de diplomata, conheceu bem esse mundo, porque, no primeiro ou no segundo papel, viveu nele por mais de sessenta anos. Aliás, nasceu nele --- para os registros, em Valparaíso, no Chile, em 1944, onde seu pai, Milton Telles Ribeiro, era cônsul. Em suas duas candidaturas à Academia Brasileira de Letras, Edgard foi classificado pelos mal informados como brasileiro naturalizado. Mas, como todos os filhos de diplomatas brasileiros no Exterior, ele já nasceu cidadão brasileiro, registrado na Embaixada. Mais exatamente, cidadão carioca, do Leme, onde morava sua família no Rio.

O fato de só ter vindo ao Brasil aos cinco anos de idade, em 1950, e partido dele aos oito, em 1953, não lhe sonega um minuto de brasilidade e carioquice. Foi no Leme, de calças curtas, que se alfabetizou. Jogou pelada e bola de gude nas suas ruas, fez amigos eternos que, por força das circunstâncias, nunca mais viu, e acompanhou com grande interesse as meninas que pulavam amarelinha na calçada. Tinha como vizinhos no bairro dois símbolos do glâmor adulto e inatingível: a boate Vogue, o templo do prazer e do poder na cidade atlântica, e o começo de Copacabana, esta uma espécie de consulado internacional.

Mas, em 1953, seu pai foi servir na Europa e eles passaram os seis anos seguintes sem voltar ao Brasil. Os vôos eram caros e precários, e o tempo de ida e volta nos navios não justificava uma vinda de férias. Até os quatorze anos, exceto pelos quase três no Rio, Edgard, como a maioria dos filhos de diplomatas, nunca passou mais de dois anos numa mesma cidade --- Valparaíso, Berna, Marselha, Atenas e Istambul. O Brasil, de difícil alcance até pelo telefone, estava nos jornais que o consulado recebia com semanas de atraso. Ou nas conversas que Edgard entreouvia à mesa do jantar --- como sobre a morte de Getulio, em 1954, que abalou seus pais como ele nunca vira. O Brasil, como diria o próprio Edgard, era “a pátria presente pela força de sua ausência”. Os únicos brasileiros com quem convivia eram seus pais, sua irmã e os dois funcionários que assistiam seu pai no consulado.

De repente, também em 1954, em Marselha, onde seu pai estava servindo, o mais improvável de todos os Brasis entrou subitamente pela porta de sua casa, e para ficar por um mês inteiro: o time completo do São Cristóvão, da Zona Norte carioca --- os 22 jogadores, titulares e reservas, o técnico, o preparador físico, o massagista, o roupeiro, o responsável pelas chuteiras, o intérprete, os dirigentes e o chefe da delegação. Trinta brasileiros de uma vez! Acontecera que, contratado para excursionar pela Europa, o São Cristóvão se vira abandonado em Marselha pelo empresário que fugira com o dinheiro, e o navio em que voltariam só chegaria dali a trinta dias. Sem ter onde ficar, apelaram para o cônsul, e Milton Telles Ribeiro foi magnífico: franqueou-lhes o primeiro andar de sua casa.

Mandou comprar colchões, que foram instalados nos quartos e salões, e disse à turma que se sentisse no Brasil --- desde que cuidassem deles próprios, lavando a roupa os lençóis, fazendo a comida, lavando a louça, passando o rodo e mantendo o andar limpo. Tudo isso aconteceu. Os rapazes se mostraram impecáveis e, para Edgard, aquela ocupação de sua casa era uma overdose benigna de Brasil. Não saía de perto dos jogadores. Queria saber tudo sobre o Rio, o Fluminense, de que já era torcedor, o futebol em si e a vida que levavam como jogadores. No futuro, ele ficaria sabendo das lembranças de alguns deles sobre aquela temporada em Marselha. Só tinham palavras de agradecimento pela generosidade do cônsul e da consulesa, o calor humano com tinham sido recebidos, o conforto e a fartura daqueles dias --- exceto por um menino chato que não parava de lhes fazer perguntas.

O Brasil estava também nas declinações verbais em português, que Edgard tinha de recitar para seu pai, para contrabalançar o francês que falava na escola, e nas leituras noturnas de Carlos Drummond ou Manuel Bandeira que sua mãe, Maria, lhe fazia. Ali, Edgard começou a suspeitar que o planeta Terra, seu grande habitat, não era tão grande assim. Cabia num beco, como aquele a que se referia Bandeira: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o Beco.” Edgard só muitos anos depois conheceria a esquina da rua Moraes e Vale com o Beco dos Carmelitas, na Lapa, a que se referia Bandeira. Mas não lhe faltavam becos, reais ou imaginários. A vida era um beco, por onde se passava de uma cidade a outra.

Até o colégio era sempre o mesmo em todas as cidades: o Liceu Francês. E Edgard só sabia que existiam outros mundos porque eles lhe caíam às mãos nos livros que descobria: os mundos de Julio Verne, Alexandre Dumas, Daniel Defoe, Charles Dickens, Robert Louis Stevenson --- e, se me permitem, descobri há pouco que eu e Edgard somos irmãos em Jim Hawkins, o garoto de A ilha do tesouro. Mais tarde, abriram-se os mundos de Balzac, Stendahl, Flaubert, do Alain-Fournier de Le grand Meaulnes, do Raymond Radiguet de Le diable au corps. E as aventuras daquele que nós, aqui, conhecíamos como Tintin, e que Edgard lia como Tantan na revistinha francesa que comprava toda semana e que, ao chegar ao último quadrinho, o obrigava a não perder a revistinha da semana seguinte.

No mundo daqueles escritores, as coisas eram reais, palpáveis, aconteciam --- não se limitavam a carimbos e jamegões em acordos e tratados. As pessoas nasciam, amavam, morriam. Nas páginas de seus livros, ouviam-se declarações de amor, gritos de fúria, tiros de canhão – estes, por acaso, audíveis de verdade há até não muito tempo na cidade para onde tinham ido em 1953: Marselha.

O pai de Edgard partira do Rio dois meses antes, a fim de encontrar um apartamento ou casa para alugar. Mas, naquele ano, o rosto castigado da guerra ainda era visível no sul da França. Não havia casas ou apartamentos disponíveis, o que os obrigou a ir morar a trinta quilômetros da cidade, numa humilde aldeia de pescadores chamada Cassis. Ou talvez não tão humilde, por Cassis ter sido, em tempos mais felizes, ninho e inspiração de pintores, como Georges Braque, Francis Picabia, Paul Signac, Raoul Dufy --- fora também a região de Cézanne ---, e de escritores, como Alphonse Daudet, André Gide, Roger Martin du Gard, Paul Valéry, Henry Miller, Virginia Woolf. Como Edgard descobriria logo ao chegar, a guerra estava estampada mais ainda no rosto dos marselheses --- amargos e desconfiados quanto a estrangeiros, e com razão, Os últimos com quem haviam convivido tinham sido os alemães, cortando suas ruelas em motos com side-car, exibindo metralhadoras e tratando todo mundo como suspeitos.

Na escola, Edgard tinha um professor que perdera o olho esquerdo por estilhaços de granada; outro que ficara sem uma perna e se amparava sobre duas muletas; e com colegas de sala cujo pai ou irmão mais velho tinha sido fuzilado pelos nazistas. Nas idas de carro com seus pais para Paris, era confrontado nas estradas ou nas ruas das pequenas cidades pelas placas que diziam “Ici est tombé pour la France....” --- e seguia-se o nome do herói, civil ou militar, morto pela pátria, e suas datas de nascimento e morte. A pátria, afinal, não era um desenho colorido no mapa. Era um território pelo qual se vivia e morria.

Tudo isso ainda era a guerra, a história, convocando o jovem Edgard a descobrir o avesso do que, até então, o mundo lhe apresentara --- a vida real. Em 1959, voltaram para o Rio, dessa vez para uma temporada mais longa, com seu pai na chefia de gabinete do Secretário-Geral do Itamaraty. Edgard não foi apenas reapresentado ao país. Ganhou de repente uma tia adotiva – uma velha amiga de sua mãe e vizinha no Leme, que ele visitava com freqüência, via-a trabalhar e absorvia suas idéias sobre a literatura. Uma escritora, ex-mulher de um diplomata que servira na Itália na Segunda Guerra durante a campanha da FEB, e ela própria, querida pelos pracinhas: Clarice Lispector. Quantos garotos tiveram esse privilégio?

Para Edgard, a literatura já estava no horizonte. Mas, assim como Manuel Bandeira só via o Beco de sua janela, ele só via o Itamaraty. Em 1966, aos 22 anos, matriculou-se no Instituto Rio Branco. Segundo o líder chinês Chu En-lai, a diplomacia era a continuação da guerra por outros meios. Aos olhos de Edgard, fazia sentido.

Num texto intitulado “Diplomacia e cultura”, que abre o livro O Itamaraty na cultura brasileira, nosso querido confrade e também embaixador Alberto da Costa e Silva definiu o diplomata como “aquele que se escolhia para representar, primeiro, o seu rei, e, mais tarde, o seu povo”. Continuou Alberto: “Esperava-se dele [do diplomata] que soubesse olhar os astros, ler os mapas, conhecer as leis, discutir os filósofos, decifrar os poetas, dominar o latim e os idiomas das cortes e das ruas, desenhar com precisão, tocar ao menos um instrumento musical, usar a espada, conversar com engenho e graça, distinguir entre vinhos e temperos, dançar com elegância, falar com eloquência e saber quando convinha o cicio e quando cabia a voz alta. Dele se queria que pudesse discorrer sobre qualquer assunto e que mostrasse, nas terras que não a sua, que esta, fosse ou não poderosa, era, antes de mais nada, culta.” E completou Alberto: “O diplomata é aquele que representa, sendo.”

Não sei se Edgard, ao se matricular no Rio Branco, tinha noção de que se exigia aptidão em tantas disciplinas. Línguas, leis, vinhos, sim, dominava. Música também --- era pianista amador. Dançar, segundo ele próprio, definitivamente não. Esgrima e astrologia, não sei, esqueci de perguntar. Mas tinha muitas outras aptidões fora da diplomacia. O cinema era a paixão da sua --- nossa --- geração e Edgard viveu essa paixão em todas as frentes: como crítico, em jornais como os hoje extintos Correio da Manhã e O Jornal; como aluno, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles; como professor, na Universidade de Brasília; e, por fim, como cineasta, dirigindo curta-metragens e tendo um deles, Vietnã, viagem no tempo, exibido na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes de 1980.

E era também fotógrafo e jornalista bissexto. Foi nessa última ocupação, o jornalismo, que nossos destinos se cruzaram, em 1968, na redação de uma das publicações mais fascinantes da imprensa brasileira: a revista Diners, um veículo de circulação dirigida aos assinantes do famoso cartão de crédito, então o único no país. Como não tinha a obrigação de competir nas bancas, a Diners podia se dar ao luxo de publicar o que seu editor e seus principais colaboradores quisessem. O editor era Paulo Francis e, entre esses colaboradores, estavam três jovens articulistas, todos estudantes do Rio Branco: Flavio Macedo Soares, 24 anos, Alfredo Grieco, 23, e Edgard Telles Ribeiro. O outro, de vinte anos, também estudante, mas de Ciências Sociais, na Faculdade Nacional de Filosofia, e já jornalista profissional, do Correio da Manhã, era eu.

A Diners não era apenas uma revista onde se tinha total liberdade para escrever e pagava dez vezes mais por colaboração do que qualquer outro jornal e revista do Rio. Sua redação, no 5º andar de um edifício na esquina da avenida Rio Branco com a rua do Ouvidor --- exatamente no espaço onde, nos anos 40 e 50, existira o predinho da histórica Livraria José Olympio ---, era um entra-e-sai de estrelas da cultura e do jornalismo, que abrilhantavam a revista: Carlos Drummond de Andrade, Antonio Callado, Glauber Rocha, Millôr Fernandes, Franklin de Oliveira, Armando Nogueira, Octavio Malta, Fausto Cunha, Fernando Gasparian, Flavio Rangel, José Lino Grünewald, Joel Silveira, os cartunistas Jaguar e Fortuna, o lingüista Adriano da Gama Kury e muitos outros.

Não eram apenas grandes nomes ali ao nosso lado. Eram homens bem informados sobre a situação do país naquele incrível ano de 1968, no começo da ditadura militar. Sabiam o que se passava nos bastidores dos quartéis, do Congresso e do Judiciário, e falavam de tudo isso na presença dos garotos --- ou seja, nós. Era uma aula de história ao vivo. Entre eles, estavam a velha esquerda, a de Octavio Malta, revolucionário de 1935, Franklin de Oliveira e Callado, e a nova esquerda, a de Gasparian, Glauber, Flavio Rangel e o próprio Paulo Francis. Pelas janelas da redação da Diners, podíamos ouvir os ecos das batalhas de rua entre os estudantes e a polícia nas passeatas lá embaixo, na avenida Rio Branco. O Ato Institucional nº 5, em dezembro daquele ano, e a prisão de Francis, decretaram o fim da revista. Embora seu conteúdo fosse apolítico, com forte dose de humor e altamente sofisticado, não ficava bem para um órgão de propriedade de um cartão de crédito internacional ter um preso político como diretor.

Com o fim da Diners, em março de 1969, cada um de nós voltou para seu nicho. O de Edgard, agora diplomata, era o mundo, vasto mundo

Pelas décadas seguintes, até 2014, Edgard serviu nos Estados Unidos, Equador, Guatemala, Nova Zelândia, Malásia e Tailândia --- nesses três últimos países, Nova Zelândia, Malásia e Tailândia, como embaixador. Passou também longos períodos a trabalho no Laos, em Myanmar, no Camboja; e na Guiné Bissau e na Nigéria. Foi nesses lugares da Ásia e da África que melhor compreendeu o sentido de sua profissão --- trazer a periferia da história para a mesa de discussão.

O próprio Edgard meditou sobre o paradoxo de sua opção pela diplomacia: “Como conciliar a visão romântica de um mundo sem fronteiras”, ele se perguntou, “à realidade pragmática que fazia da defesa e integridade de nossas fronteiras (e de respeito às fronteiras alheias) a base mesma de nossa política externa?”. Ele continua: “Fui salvo do dilema pela literatura. Pois se, na vida real, aderi de corpo e alma aos ensinamentos e à obra do barão do Rio Branco, bem como aos preceitos que dela derivam e hoje inspiram os fundamentos de nossa política externa, mais tarde, quando passei a escrever meus romances --- a maioria deles, na famosa calada da noite ---, revivi os sonhos de minha infância. E, com isso, inseri meus personagens de volta ao mundo imaginário a que pertenciam.”

Edgard teve tempo de maturar tudo isso, porque, quando publicou seu primeiro romance, em 1991, pela Brasiliense, já tinha 47 anos--- e sem um minuto de arrependimento por essa estréia comparativamente tardia. O que alguns veriam como tempo perdido fora, na verdade, uma acumulação de vida a ser usada na ficção. Esse livro, O criado-mudo, é a prova de que, entre os ditos carimbos e jamegões do dia-a-dia dos diplomatas, o escritor já nascera pronto.

Desde então, o nome Edgard Telles Ribeiro apareceu no alto da capa de treze livros: oito romances, duas novelas e três de contos, todos por editoras importantes, como a Record, a Companhia das Letras e a Todavia. Todos viveram carreiras apreciáveis. O criado-mudo teve quatro edições estrangeiras, cada qual com várias reimpreessões; Olho de rei, de 2005, recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras para Melhor Obra de Ficção; O punho e a renda, de 2020, o de Melhor Romance do Pen Club; e vários outros foram finalistas do Prêmio Jabuti, inclusive o mais recente, Jogo de armar, de 2024.

A exemplo de Edgard, a maioria de seus personagens desafia os espaços, desloca-se incessantemente e atravessa fronteiras que, vai-se ver, são imaginárias. A ação em seus livros muda de país, atravessa oceanos reais ou virtuais, regride ou parece se estabilizar, mas, quando menos se espera, já está em outra parte. Desconhece também as fronteiras do tempo. Mudam os narradores, mudam as vozes, muitas vezes sem rubricas para explicar quem está falando. Em praticamente todos, há uma forma de jogar com o tempo que deve muito ao romance moderno, mas não menos ao cinema --- e, nessa questão de jogar com o tempo, aqui me atrevo a citar filmes que me ocorreram ao ler os romances de Edgard: O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, de 1961; A aventura, de Michelangelo Antonioni, de 1959; e Napoleão, de Abel Gance, de 1926.

Edgard não embaralha o tempo por experimentalismo gratuito e já velho de 100 anos, mas porque a narrativa assim o exige. E com um controle absoluto sobre o que está fazendo – porque o leitor não se perde em momento algum.

Às vezes há um narrador dentro da narrativa de outro narrador, o qual, por sua vez, pode também ser personagem de um terceiro narrador e todos, naturalmente, estão sendo narrados pelo autor. Lembra o Jorge Luís Borges de As ruínas circulares, em que alguém sonha que está sonhando, mas na verdade, está sendo sonhado por alguém. Das várias camadas narrativas de seus livros, saem personagens como o Lafitte de Olho de rei, o Max de O punho e a renda e minha favorita, a Guilhermina de O criado-mudo, uma das grandes personagens da literatura brasileira contemporânea, uma mulher à altura das imaginadas por Henry James. E pensar que, à sua maneira, Guilhermina existiu, saída de uma dica passada a Edgard por uma pessoa que a conheceu: a mãe de nosso inesquecível amigo comum Flavio Macedo Soares.

Edgard confere a seus personagens tantas dimensões psicológicas, mais do que as de carne e osso, que, à medida que avançamos na leitura de seus livros, temos a ilusão de que conhecemos aqueles homens e aquelas mulheres, ou conhecemos alguém muito parecido. Qualquer um de nós, por exemplo, que tenha morado fora do Brasil no começo dos anos 70, a trabalho ou exilado, e tendo que comparecer eventualmente a uma representação brasileira, reconhecerá a figura do sinistro Max de O punho e a renda. Por acaso, tive essa sensação em Lisboa, em 1974, quando precisei do consulado para registrar uma filha que acabara de nascer lá. Ao invés de me sentir em território brasileiro, era como se estivesse penetrando em terreno inimigo --- mas em que o inimigo fosse eu. Não por acaso, o embaixador do Brasil em Lisboa, recém-nomeado, era um general, ex-chefe do SNI.

Max é um diplomata brasileiro, talvez membro do Centro de Informação no Exterior, o Ciex, um braço clandestino do Itamaraty que, de 1966 a 1986, monitorou cerca de 17.000 pessoas, e não apenas no Cone Sul. O Ciex existiu e Max é um compósito de diplomatas que Edgard conheceu --- um homem sedutor e oportunista, íntimo da CIA, movendo-se nas trevas do Chile, do Uruguai e da Argentina dos anos 70, mestre em desestabilizar instituições e contribuir para a queda de governos constituídos e a instauração de ditaduras militares. Max, como sabemos pela história, foi muito bem sucedido. O mesmo Itamaraty que, naquela época, praticava uma corajosa e admirável política externa era o pouso de elementos, nem todos estranhos à carreira, responsáveis por tanto sangue e crueldade.

O punho e a renda é de 2012. Edgard Telles Ribeiro só se aposentou em 2014. Que um diplomata na ativa tenha se atrevido a explorar em ficção esse episódio que ainda causa tanto mal estar dentro do glorioso Itamaraty, dá uma idéia da força do nosso novo companheiro. Porque, a exemplo dos muitos Maxes reais que sobreviveram para ver a onda virar nos anos 80, o de Edgard também abandonou a tempo o navio autoritário e chegou a importantes postos na redemocratização do Brasil... Quando o livro saiu, quantos desses Maxes ainda não estariam também ativos, quem sabe no escritório ao seu lado?

Aqui, a partir deste momento, em nosso meio, Edgard estará entre amigos e admiradores.

Primeirão!