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Discurso de posse

É, para mim, uma grande honra ingressar na Academia Brasileira de Letras. E me integrar a um grupo de intelectuais que têm como prioridade defender e promover os interesses de nossa língua e de nossa cultura. Um grupo que nunca cessa de se renovar e, em anos recentes, de se diversificar, em busca de novos caminhos, novos desafios e, quem sabe, novas aventuras.

Pois a literatura, a filosofia, as ciências e demais artes aqui representadas, formam um fascinante mosaico, cujo patrimônio supera seus registros em textos ou gravações, para também se situar no plano de nosso imaginário coletivo. Riqueza hoje vulnerável às incertezas que nos cercam no campo da Inteligência, seja ela Artificial ou não, e nos ameaçam no que temos de mais precioso –– nossa individualidade.

Daí porque, longe de indiferente ao que sucede em seu entorno, a Academia, pelo simples fato de existir –– e, por vezes, resistir –– atua em tantas frentes, representando um dos principais baluartes de reflexão sobre o que a cultura brasileira possa significar hoje, para além de nosso engenho e arte, do idioma e suas riquezas, até mesmo de nossa imaginação. E, porque não confessar, de nossos justificados receios.

Quando penso nesses temas, acabo inevitavelmente estabelecendo um paralelo entre a ABL e o Itamaraty, instituição à qual dediquei 48 anos de minha vida, trabalhando sempre que possível na área cultural do Ministério, a qual acabaria chefiando entre 2002 e 2005 a convite do então Chanceler Celso Amorim.

E isso porque, como o Itamaraty, a ABL se dedica a pensar o Brasil. Sempre atenta ao que de relevante e original exista entre nós. Sempre fazendo dessa base de conhecimento um trampolim para o que de mais autêntico possa ser mostrado e debatido, seja no país, no caso da ABL, seja no exterior, em se tratando do Ministério das Relações Exteriores.

Por isso, talvez, eu nunca tenha estado distante da Academia, dada minha trajetória pessoal no Itamaraty. E, também, privilégio supremo, por ter me beneficiado dessa intimidade desde que me entendo por gente, pois meu pai, Milton Telles Ribeiro, também foi diplomata e, nessa qualidade, teve, entre seus mais íntimos e fieis amigos, o filólogo Antonio Houaiss e o poeta João Cabral de Melo Neto, com quem convivi de perto em minha juventude.

Nisso, minha adolescência se assemelha um pouco à de meu antecessor, Antonio Cicero, que registrou em seu discurso de posse a admiração que nutria pelos intelectuais amigos de seu pai, de cujas conversas participava, delas retirando lições que balizariam sua vida e sua obra.

Da mesma forma, beneficiei-me intelectualmente do convívio com amigos de meu pai, que se preparara para o concurso de ingresso no Itamaraty estudando com Wladimir do Amaral Murtinho e os irmãos Mozart e Maury Gurgel Valente, sendo que este último namorava, na época, a jovem jornalista Clarice Lispector, que viria a se tornar um dos nomes icônicos de nossa literatura, com obra hoje traduzida e lida mundo afora.

Corriam os anos quarenta e o Brasil vivia os efeitos da II Guerra Mundial. Desse encontro de estudantes em busca de um destino comum, se formaria um grupo eclético de amigos que se manteriam unidos, dentro e fora da carreira, até o fim de suas vidas. Nesse ambiente, nasceria igualmente a amizade de minha mãe, Maria Telles Ribeiro, com Clarice, forjada que foi no silêncio dos longos anos de inverno passados juntas em Berna, entre 1947 e 1950, época em que Maury e meu pai serviram como jovens diplomatas na então Legação do Brasil na Suiça. Mais adiante, quando coincidimos todos no Brasil, o grupo passou a incluir figuras notáveis no campo das artes plásticas, como o pintor Volpi que, no Rio de Janeiro, se hospedava com o escultor Bruno Giorgi, seu fraterno amigo. Os almoços aos domingos, nas casas de uns e outros, se sucediam com regularidade a meus olhos adolescentes.

O fato é que essas foram as primeiras referências em meio às quais eu me criei, todas vindas de um mundo adulto que, hoje, sei ter sido excepcional, mas que, na época, do que dele me chegava, parecia absolutamente normal. Talvez por isso, essas referências tenham vindo a mim de forma nada impositiva, representando, ao contrário, valores a serem cultivados.

E cultivados por mim eles foram, mas como quem tateia –– pois tatear é o que mais fazemos na adolescência. Fiz assim de tudo um pouco em meus anos de formação, até decidir-me pela carreira de meu pai, talvez por sentir que as oportunidades de manter os elos com a cultura se multiplicariam, no Brasil e no exterior. E foi um pouco o que aconteceu.

Tanto que meu encantamento por essa temática me levaria a buscar refúgio na área cultural do Itamaraty. A partir da qual o acesso às pessoas (a meus olhos) mais estimulantes de nosso país–– seus intelectuais, seus professores, seus artistas, seus cientistas –– seria incessante. E o primeiro Acadêmico que conheci fora do círculo das amizades de meu pai foi Eduardo Portella, um dos titulares desta Cadeira 27 sobre a qual nos deteremos adiante.

Mas se menciono o crítico literário e professor Eduardo Portella, é para relembrar que fomos integrantes da histórica Delegação brasileira à UNESCO, em 2002, quando participamos da elaboração de uma Convenção Internacional, hoje conhecida como a Convenção da Diversidade Cultural. Na liderança desse processo, mantinha-se o Acadêmico Gilberto Gil, então à frente do Ministério da Cultura. Uma liderança valiosíssima, pela força irradiadora de sua palavra, sempre acolhida com respeito e admiração nos debates realizados sobre a Diversidade no Brasil e na UNESCO.

Hoje, “diversidade” se transformou na palavra da moda e frequenta com desenvoltura até anúncios publicitários de empresas bem intencionadas, mas que pouco ou nada sabem das origens do termo ou seu alcance.

Mas em 2002, quando as Nações Unidas revolucionavam a maneira de pensarmos a cultura com um foco voltado para o mundo em desenvolvimento, a palavra diversidade brilhava sobretudo nos textos da UNESCO –– e aos olhos de algumas Delegações. Entre elas, a do Brasil e a da França, às voltas com a costura de um Acordo Internacional absolutamente inédito –– o da mencionada Convenção –– logo aprovada por uma maioria esmagadora de Delegações.

Graças às quais o mundo em desenvolvimento ganhou uma moldura jurídica para se proteger do rolo compressor de determinadas culturas ditas dominantes. Sendo que as minorias culturais que sobreviviam a duras penas no Primeiro Mundo também se sentiram amparadas.

Se me detenho nesse tema, não é apenas para relembrar o rico passado de cooperação entre a ABL, o Itamaraty e o Ministério da Cultura, mas para registrar como o assunto evoluiu à luz da chegada da Inteligência Artificial, cujos indiscutíveis benefícios em todos os campos do conhecimento também poderão trazer efeitos adversos à preservação de certos valores e, em particular, à proteção da diversidade cultural dos povos.

Instada a se pronunciar sobre o assunto no ano passado, a UNESCO optou por encomendar um estudo restrito ao impacto da Inteligência Artificial nas democracias. Nada que correspondesse ao marco jurídico erigido, duas décadas e meia antes, para proteger nossas diversidades. Mesmo porque já não existiriam, hoje, meios de obter consenso em torno de mecanismos jurídicos multilaterais, aptos a dirimir desavenças sobre temas como proteção ou soberania –– no contexto da natureza a um tempo sedutora e invasiva dessa nova tecnologia. O que não impede, a meu ver, que nos debrucemos sobre o assunto com a urgência e constância necessárias, de forma a que ele se mantenha vivo entre nós. E a esse respeito, para concluir essa parte introdutória de meu discurso, faço minhas as palavras do escritor angolano José Eduardo Aqualusa, publicadas em um de seus memoráveis textos recentes (e cito): “O desenvolvimento tecnológico, se não for acompanhado por um idêntico avanço cultural, ético e moral, não aprimora a civilização. Pelo contrário, ele a degrada.”

Dando agora seguimento à tradição, passo a alguns comentários sobre os Acadêmicos que me antecederam na Cadeira 27. O que farei, em certos casos, de forma breve, para não extrapolar o tempo que me impus. Cumprido esse importante ritual, nos deteremos, com o necessário vagar, nas duas personalidades que emolduram todas essas figuras –– as de Joaquim Nabuco, nas origens mesmas de nossa Academia; e, na outra ponta, a de Antonio Cicero, para todos que o conheceram, uma alma iluminada.

Dou então início a essa viagem no tempo, rumo ao passado. Maciel Monteiro foi o escolhido por Joaquim Nabuco para ser o Patrono e primeiro ocupante da Cadeira 27. Formou-se em Letras pela Universidade de Paris. Foi médico, orador, Deputado em várias legislaturas, diplomata (sendo que entre 1837 e 1839 foi Ministro dos Negócios Estrangeiros), e poeta. Nessa seara, ficou especialmente conhecido pelos sonetos que compunha.

Já o segundo ocupante da cadeira que ora assumo, o pernambucano Dantas Barreto, era militar, lutou na Guerra do Paraguai, e escreveu romances e peças de teatro, dando prosseguimento a uma tradição, comum na época, em que as armas e as letras pareciam haver encontrado uma maneira de conviver cordialmente.

Nascido há exatos 150 anos, o terceiro ocupante desta cadeira, o gaúcho Gregório da Fonseca, deu sequência à tradição de harmonia entre as letras e as armas, a ela agregando o detalhe mais específico, de ter sido Secretário Particular do Presidente Getúlio Vargas...

O quarto ocupante da cadeira 27, Levi Carneiro, nasceu em Niterói e foi um grande e combativo advogado, em uma época em que o Estado de Direito ganhava força entre nós. Nesse contexto, o eminente jurista notabilizou-se por ter sido fundador e primeiro presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ambas, notáveis instituições que, com o passar dos anos, se distinguiriam na defesa dos direitos humanos.

O quinto ocupante da cadeira 27 foi Octávio de Faria, um dos maiores romancistas brasileiros, um homem profundamente religioso, de quem se poderia afirmar que fez do ofício de escritor uma profissão de fé... Pois foi um grande trabalhador literário, um supremo intelectual que se notabilizou como ficcionista, ensaísta e autor de uma série de romances enfeixados sob o título geral de A tragédia burguesa, na qual apresenta um amplo painel da vida carioca, uma saga que o levaria a ser alçado ao primeiríssimo plano dos ficcionistas de nosso país por ninguém menos que Guimarães Rosa. Em 1970, dois anos antes de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, Octavio teve o conjunto de sua obra premiado pela ABL com o Prêmio Machado de Assis. Cabe, a propósito, assinalar que sua obra completa será reeditada em breve e poderá, em consequência, ser reavaliada pelas novas gerações.

O sexto membro da cadeira que hoje passo a ocupar, o baiano Eduardo Portella, a quem me referi há pouco ao mencionar nossa relação na UNESCO, notabilizou-se como crítico literário, eminente professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e brilhante ensaísta, tendo fundado, em 1962, a editora Tempo Brasileiro, cuja revista de mesmo nome foi lida por várias gerações de estudiosos. Portella também ocupou o cargo de Ministro da Educação no governo João Batista Figueiredo (último militar a presidir o Brasil), tarefa que levou a cabo com dignidade, malgradas as restrições ou ameaças que pesavam sobre sua Pasta por força das greves estudantis –– desafiadoras aos olhos dos militares, que já viam seu poder sendo erodido, dada a efervescência política reinante, que atingiria o ponto culminante na campanha das Diretas Já.

Regresso agora, no tempo, à figura do fundador da cadeira 27, o homem público, diplomata, estadista e escritor pernambucano Joaquim Nabuco.

Sobre suas circunstâncias, são inúmeras e ricas as referências. Do líder abolicionista, ao historiador de “Um Estadista do Império”, do escritor ao diplomata da República, diversos e variados depoimentos acadêmicos ou de historiadores muito dizem do fascínio que esse personagem maior de nossa História exerceu. Basta relembrar a obra de historiadores e acadêmicos do calibre de Evaldo Cabral de Mello, José Murilo de Carvalho e Raimundo Faoro.

Dizer que Nabuco foi um de nossos mais importantes abolicionistas pode soar, em um discurso, como uma frase de circunstância –– por verdadeira que seja. Pois essas palavras só conquistam seu lastro à luz das evidências de que, para ele, o abolicionismo não representava apenas uma causa, mas um sentimento visceral que se confundiu com a missão primeira de sua vida, aquela que possuía sólidas raízes na infância e se manifestaria de forma incisiva na maturidade — influenciando todas as demais vidas que esse grande homem também viveu.

E isso porque Nabuco despertou para o horror que a escravidão representava, como aberração social, no limiar da infância. “No leite preto que o amamentara”, em suas palavras, criado que foi por oito anos por uma madrinha no engenho de Massangana, em Pernambuco, nome que depois serviria de título a um dos mais conhecidos capítulos de seu livro de memórias, Minha Formação.

Sim, a trajetória humana e intelectual de Nabuco o levaria a trilhar todos os caminhos da primeiríssima linha de grandeza reservada a nossas maiores lideranças. Pois nessas funções, ele desempenhou todos os papeis, do político ao homem de cultura, do estadista ao diplomata, neste último caso como Embaixador em Londres e Washington — onde faleceu em 17 de janeiro de 1910, aos 61 anos, cercado de honras nunca superadas em casos de diplomatas estrangeiros falecidos no exterior.

Mas onde Nabuco realmente deixou uma marca profética, com a qual o Brasil lida até os dias de hoje, foi no alcance de sua visão abolicionista, ao prever que a dívida social contraída pela nação escravocrata dificilmente seria paga pelas gerações seguintes, dado que a abolição, decretada por um ato de governo, não encontraria a contrapartida em uma abolição profunda e necessária, a da cultura escravocrata que, por gerações a fio, predominaria no país.

Suas palavras continuam a ecoar entre nós. E merecem ser repetidas, por sua atualidade. E se as repito, em parte, é porque a prática da reiteração também me parece ser função da Academia, sempre atenta à necessidade de lembrar aos jovens o que os mais velhos não se cansam de ouvir.

E cito: “O abolicionismo não reduz a sua missão a promover e conseguir o resgate dos escravos. Essa obra da emancipação dos atuais escravos e seus filhos — obra de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar —, é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade.”

E Nabuco prossegue, com ainda maior pertinência: “Eis então a tarefa do futuro que nosso presente acolhe: a de apagar todos os efeitos de um regime. Eis a luta na qual, em larga medida, nos encontramos todos investidos até hoje, de vez que vários desses “efeitos” perduram a nosso redor.” Desnecessário relembrar que esse “até hoje” de Nabuco se referia à virada do século XIX para o XX. E que mais de cem anos transcorreram desde então. Sendo que muitos dos efeitos por ele denunciados continuam a nos desafiar, seja nas estatísticas, que nunca mentem, seja na vida real, que por vezes nos ilude.

Mas passando de um plano a outro nesse percurso em torno de Joaquim Nabuco, e para concluir este segmento de meu discurso, não resisto à tentação de me deter, por um instante que seja, em certos trechos de seu discurso de posse na ABL, em 20 de julho de 1897, na qualidade de Secretário Geral de nossa instituição. Discurso que pronunciou, momentos depois que Machado de Assis, nossa inspiração maior, abrisse a sessão inaugural da Academia com uma fala intencionalmente discreta, para em seguida confiar ao amigo Nabuco a missão de explicar o que, por momentos, soaria inexplicável.

Pois a Nabuco coube a tarefa de registrar em palavras o mistério da criação desse nosso pequeno Universo literário e convivial. E Machado foi sábio, pois ninguém, como ele, Nabuco, teria tido condições de contar, em linguagem precisa e transparente, o que estava por acontecer. Daí que essa sua fala se inscreve como uma das pedras fundamentais da ABL. Porque tudo que, mais adiante, diria respeito a nossa Academia, nascia e era, simultaneamente, objeto de esperanças, análises, críticas e incertezas. Quando não de inveja.

Um momento mágico ou, pelo menos, assim pareça hoje a nossos olhos –– herdeiros que somos de tudo que ocorreu desde então, na sequência daquela data histórica.

Mas, quem sabe, um momento igualmente mágico para os presentes naquele mês de julho de 1897, quando as palavras de Nabuco se fizeram ouvir e a História, a que se grafa com “H“ maiúsculo, também parou –– para escutar:

“A primeira condição da perpetuidade é a verossimilhança”, disse Nabuco, para logo acrescentar em um mesmo fôlego, “e o que tentamos hoje aqui é altamente inverossímil”.

Daí valendo-se do paradoxo para indicar, sempre à sua maneira, o singelo e poético caminho das pedras: “Para realizar o inverossímil, o meio heroico é sempre a fé. A homens de letras que se prestam a formar uma Academia, no entanto, não se pode pedir fé; só se deve esperar deles a boa fé.”

Veio então o grande salto que uniria aquele grupo de seres movidos por uma ideia comum: “Se a Academia florescer, os críticos deste fim de século terão razão em ver nisso um milagre; terá sido, com efeito, um extraordinário enxerto, uma verdadeira maravilha de cruzamento literário”.

Enxerto... Cruzamento literário...

Um paraíso para nossos amigos linguistas... Pois trata-se de palavras evocativas de um processo de fertilização, endereçadas a um seleto grupo de solenes colegas. Para quem, na sequência, algumas advertências seriam formuladas, entre elas a mais evidente e delicada de todas:

“Seremos acusados de nos termos escolhido a nós mesmos, de nos termos feito Imortais e em número de quarenta”.

E depois de justificar o número de integrantes, inspirado na Academia Francesa, cujo modelo defendera como legítimo, Nabuco se vale de uma ironia: “Não tomamos à França todo o sistema decimal? Podíamos bem tomar-lhe o metro acadêmico.”

Para então lançar ao futuro um quase enigmático desafio: “Nós somos quarenta (grafado com “q” minúsculo), mas não aspiramos a ser os Quarenta” (grafado com “Q” maiúsculo).

Na sutileza desse inspirado jogo vocabular, no achado representado pelo equilíbrio precário entre uma possível imperfeição (que era a deles) e a busca da almejada perfeição (que continua a ser a nossa), abria-se a brecha para o inevitável processo de renovação que a própria Vida se encarregaria de impor à Academia –– e que nos acompanha, entre tristezas e alegrias, desde então. Processo que, agora, em um salto no tempo de 128 anos desde aquele dia remoto, nos transporta até esta noite. Rumo a mais um delicado momento de transição.

Pois, como bem sabem os que me antecederam nesta tribuna e celebraram seus antecessores, é essencialmente desafiador o destino de quem chega, trazendo entre múltiplas bandeiras a missão de preencher uma vaga. Nada mais fácil, aparentemente, do que preencher uma vaga. E nada mais difícil...

Tive raros contatos com Antonio Cicero, mas deles me ficou a certeza de seu espírito nobre e de sua extrema delicadeza no trato. Certa vez, subi os dois ou três andares do prédio onde ele morava na rua David Campista, no Humaitá, e deixei um de meus livros em suas mãos. Se disse um bom dia, acrescido de algumas palavras murmuradas ao lhe estender o exemplar, e ele obrigado ao recebê-lo, foi quase um excesso. Na sequência, da porta entreaberta, livro na mão, ele acenou para mim com um generoso sorriso, enquanto eu retomava o caminho de volta, confiante em que meu livro estaria em boas mãos.

Sensação de delicadeza que se repetiria aqui na Academia, nas vezes em que trocamos algumas frases, sempre ricas em pausas solenes. As mesmas pausas que reencontro quando releio alguns de seus poemas.

Antonio Cicero é considerado, sem favor algum, um dos mais importantes e populares poetas de sua geração. A vida inteira, ele leu obsessivamente, escreveu e publicou, alternadamente, livros de filosofia e poesia, ao mesmo tempo que, em parceria com a irmã, Marina Lima, respeitada e festejada cantora e compositora, abria frentes como letrista no campo da música popular. Tanto que versos seus hoje fazem parte do repertório de importantes intérpretes de nossa cena musical. Essas incursões em uma direção, digamos assim, menos ortodoxa, terão seguramente enriquecido o filósofo e poeta que ele foi, trazendo para sua poesia e, quem sabe até, para a sua ensaística filosófica, uma aragem de beleza adicional, no campo sempre fértil da criação.

Para mim, e ainda que estejamos falando de dois irmãos criadores, essas parcerias evocam os trovadores da Idade Média, também excelentes poetas, François Villon no século XV à frente de todos, e cuja arte seduzia a nobreza incipiente de castelo a castelo ou, no caso da gente simples de aldeias ou vilarejos, de taberna em taberna, e, com frequência, em tempos de pouca sorte, de prisão em prisão, como ocorreu tantas vezes com o François Villon de La ballade des pendus / A Balada dos Enforcados... Tudo por cortesia da riqueza sugestiva dos versos e o encanto das melodias produzidas por simples alaúdes.

Digressões à parte, e sempre atento às circunstâncias de Antonio Cicero, vale também lembrar que, quando jovem, ele morou com a família nos Estados Unidos, onde fez o curso médio de sua escolaridade e, mais adiante, sempre com o apoio familiar, cursou a Universidade de Londres, onde deu continuidade aos estudos de filosofia iniciados na PUC do Rio de Janeiro. Essas experiências no exterior terão contribuído para enriquecer suas leituras e vivências. Em Londres, além do mais, conviveu com artistas por lá exilados, forjando laços permanentes, entre outros, com Gilberto Gil e Caetano Veloso.

Nos anos 90, Antonio Cicero publicou os primeiros ensaios de natureza filosófica ou literária. O mundo desde o fim, vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira; Finalidades sem fim (finalista no Prêmio Jabuti); Poesia e filosofia; e A poesia e a crítica.

Seu primeiro livro de poesia data de 96 e se intitula Guardar. O poema que dá título ao livro foi integrado à histórica antologia ”Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”. O segundo, A cidade e os livros, tardaria alguns anos para vir à luz, mas reafirmou a força e originalidade de sua linguagem. Com o terceiro, Porventura, de 2012, conquistou o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, instituição para cuja Cadeira 27 foi eleito em agosto de 2017.

De Silviano Santiago a José Miguel Wisnik, inúmeros críticos e pensadores se detiveram sobre a poesia de Antonio Cicero, para não falar, também, daqueles que apresentaram suas obras, como é o caso do Acadêmico Antonio Carlos Secchin, que assina as orelhas do livro Porventura.

A esse mosaico crítico, composto de tantas opiniões qualificadas, tomo a liberdade de somar as minhas percepções, não como crítico ou filósofo, mas como leitor de poesia que sou. E começo por expressar o que não passa de uma sensação pessoal, na fronteira da ousadia.

Trata-se do fato de que, para Antonio Cicero, a filosofia terá sido, desde o início de sua formação acadêmica, uma segunda natureza, da qual, ou graças à qual, sua poesia terá florescido, ou se fortalecido, como consequência inevitável. Em uma espécie de contraponto intelectual. Que essa intimidade entre dois universos do pensamento sempre o fascinou não resta dúvida. Tanto que veio a publicar um livro de ensaios sobre poetas com formação filosófica.

Ele próprio, porém, não atribui importância ao tema da origem primeira de uma ou outra dessas manifestações de seu pensamento, preferindo realçar a alternância com que se deram. Diz ele: “Em mim, quando o filósofo está presente, o poeta não aparece; e, à chegada do filósofo, o poeta se retira.”

Mais adiante, em outro ensaio, Antonio Cicero aprofunda as linhas divisórias entre os dois territórios de criação intelectual: “Concordo com Guimarães Rosa, para quem a filosofia mata o poema”. Em seguida, faz o contraponto: “E a poesia, digo eu, amolece a filosofia...” Sem deixar de contemporizar em outro ensaio: “Parece-me, em geral, que a questão entre a poesia e a filosofia já pressupõe certo parentesco entre os dois discursos.” Ou seja, a proximidade, de fato, existia. Até onde ia, é possível que nem ele próprio soubesse...

Daí a sensação que fica no ar, ou pelo menos para mim sempre ficou: a de que não fosse a sólida formação filosófica, sua poesia possivelmente não tivesse alcançado o grau de rigor, profundidade e erudição que a caracteriza, abrindo espaço, em contraste, para a ocasional leveza das imagens, com cortes inventivos de uma luminosidade cinematográfica, ou rimas que por vezes evocam a harmonia de melodias.

O que remete à questão de que diversos poemas de Antonio Cicero se inspirem em expressões artísticas associadas às mais variadas fontes da criação. Não é à toa que, falando de filosofia, o crítico André Ricardo Dias constata: “Na obra de Cícero, a filosofia e o seu estudo ganharam espaço próprio através do cinema, da literatura e da música.” Com mais razão ainda, acrescento eu, o mesmo se terá dado com sua poesia.

Isso faz com que, do universo da cultura clássica –– grega em particular ––, às tonalidades coloquiais de uma linguagem que por vezes coteja o despojamento, sua poesia circule com desenvoltura por uma paleta que, no plano da linguagem, vai do figurativo ao expressionismo, com ocasionais escalas em abstrações por definição enigmáticas. Pelo menos, a meus olhos.

Para chegar lá, no entanto, quanto trabalho. Quanta lapidação. E quanta determinação. Tanto de parte do poeta, quanto do filósofo.

O que o levou, certa vez, em uma possível tentativa de desmistificar tanto esforço, a dizer: “A filosofia se serve das palavras para dizer coisas. Já a poesia se serve das palavras e das coisas que as palavras dizem, para construir uma obra de arte, um objeto que vale por si, e cujo sentido não é dizer coisa alguma em particular.”

Recordo que ao ler pela primeira vez esse seu depoimento, fui transportado, por sua leveza e curiosa circularidade, a uma imagem do poeta russo Vladimir Maiakovski, num poema, que li em tradução francesa: “l’homme, un nuage en pantalon...” (“o homem, uma nuvem de calças”).

Pura associação livre, de minha parte, ao dar com o depoimento de Antonio Cicero que, ao descrever seu impossível ofício de poeta como “(...) um objeto que vale por si e cujo sentido não é dizer coisa alguma em particular”, fazia poesia em prosa...

E não será essa uma das melhores maneiras de celebrar um poeta, transitando de um artista a outro, de um idioma a outro, de um século a outro, num piscar de olhos? Se o pensamento de Antonio Cicero, lírico como alguns de seus versos, nos leva a divagar, por que não nos deixarmos ir, na esteira de um artista que, nas palavras de Silviano Santiago, é, ao mesmo tempo, herdeiro das superfícies e das profundezas?

Passo agora a umas breves palavras de conclusão.

Chega sempre o momento em nossas vidas quando lançamos um olhar sobre o passado e nos perguntamos se a obra produzida, se o resultado do percurso realizado, terão estado à altura de nossos sonhos ou expectativas.

Nessas horas agradecemos àqueles que nos ajudaram, seja pelo exemplo, seja pela assistência recebida. Ou agradecemos ao destino, por termos contado com o apoio das pessoas certas na hora exata e necessária. Muitas vezes, de forma inteiramente surpreendente.

No que se refere a minha carreira literária, quem me surpreendeu por completo foi minha mulher Angelica, com quem estou casado há mais de três décadas, e isso porque, no início de nossa relação, um período que coincidiu com o princípio de minha carreira literária, ela leu um conto meu em manuscrito e, sem um segundo de hesitação, sugeriu que eu cortasse o último parágrafo.

Aos ouvidos de um autor, consagrado ou não, um tremendo sacrilégio!

Mais perplexo do que zangado, tranquei-me no escritório para avaliar uma sugestão que, no mínimo, parecia pertencer ao domínio do absurdo. Quando vi, para meu espanto, que Angelica tinha razão. Sem o corte radical, o conto jamais ganharia a leveza de que necessitava.

Dali em diante, não houve texto meu que não se beneficiasse do trabalho editorial e da sensibilidade de Angelica. Nem livro que não fosse dedicado a ela. Por vezes discutíamos e, por pouco, não brigávamos. Mas, no geral, a vontade e a intuição dela prevaleciam. Daí a enorme gratidão que lhe dedico ao render essa homenagem no momento em que, em certo sentido, chegamos juntos à Academia.

Já no que se refere à Academia Brasileira de Letras, duas notáveis figuras vieram em minha ajuda, para além de tantas outras aqui presentes, que me apoiaram, e às quais sou imensamente grato.

O poeta, escritor e ensaísta Ivan Junqueira, que foi Presidente desta Casa e nos deixou em 2014, foi o primeiro. A ele devo o apoio que me deu como escritor e não poucas lições de vida, pelas lutas que enfrentou, sobretudo na reta final da existência. Pois Ivan era um homem que vivia de sua pena, como se dizia antigamente; de seu trabalho de poeta e escritor, de ensaista e de exímio tradutor de Baudelaire, Eliot e Dylan Thomas, entre outros... Sendo que, desse trabalho, no limite, retirava o sustento diário.

E vivia sobriamente, num apartamento de fundos de um edifício no Leme, onde o visitei incontáveis vezes, a ele e a sua mulher Cecilia Costa, jornalista que, por anos a fio, foi dedicada e eficiente editora-chefe do saudoso Caderno Prosa e Verso, isso depois de ter editado o Caderno de Economia, ambos do jornal O Globo.

Nesse cenário familiar, fui testemunha da angústia de Ivan, quando o proprietário de seu imóvel pediu o apartamento de volta e não lhe deu alternativa fora se mudar, numa época em que sua saúde não andava bem –– e as finanças tampouco. “O que fazer de todos esses livros...?”, ele repetia toda hora, claramente atordoado por um desafio que, a seus olhos, assumia as proporções de um pesadelo.

Acompanhei de perto esse processo, que milagrosamente encontrou solução de última hora no mesmo bairro do Leme, em uma versão miniatura do apartamento anterior. Mas digna e correta. Na medida de nosso Poeta, que também conseguiu um outro local para abrigar sua biblioteca, conservando perto de si os livros queridos.

Tornei-me assim herdeiro, não apenas de um exemplo de vida íntegra e austera, mas de algo muito precioso, na forma de uma amizade herdada de Ivan, a do poeta, ensaísta, bibliófilo, e Professor Antonio Carlos Secchin, sem cujo apoio não estaria me integrando hoje aos quadros de nossa Instituição Maior.

A Secchin, como costuma ser afetuosamente referido, devo não apenas o estímulo de que necessitava para me lançar candidato, mas também a orientação na busca desse objetivo. Secchin me encorajou, agindo como um irmão mais velho (ainda que eu seja, com folga, o mais velho de nós dois...).E qual não foi minha surpresa ao descobrir que até esse meu agradecimento seguiu de perto os passos de Antonio Cicero que, igualmente emocionado, se dirigiu a Secchin, para lhe dedicar as derradeiras linhas de seu discurso de posse, coroadas pela leitura de um belíssimo poema de nosso amigo comum, intitulado “Autorretrato”, na noite de 16 de março de 2018, já lá se vão mais de sete anos...

Passado e presente se unem então aqui sob o signo do afeto e da amizade, abrindo caminho para um futuro enraizado na saudade. A dos amigos que poderão ter partido, mas jamais nos deixam de todo.

Muito obrigado.