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Hermes Lima

TOBIAS BARRETO

É lícito concluir que a ação de Tobias Barreto, conquanto considerável, não foi tal qual ser tem presumido, e que efetivamente só entrou a exercer-se pelo ano de 1882. Então já no Ceará e em São Paulo pelo menos e, no Rio de Janeiro, desde o princípio do século passado o nosso mais considerável centro intelectual, manifestamente se desenhava o movimento a que tenho chamado de modernismo. Principalmente reflexa, a ação de Tobias Barreto nesse movimento operou-se mediante os seus discípulos imediatos, dos quais um ao menos, o sr. Sílvio Romero (S. Paulo de quem Tobias é o Cristo), teve considerável influência na juventude literária dos últimos vinte anos do século passado. No empenho, aliás, simpático na sua inspiração, de o exaltarem, inventaram uma “Escola de Recife”, da qual o fizeram instituidor. A “Escola do Recife” não tem existência real. O que assim abusivamente chamavam é apenas um grupo constituído pelos discípulos diretos de Tobias Barreto, professor disserto, e, sobretudo, ultrabenévolo, eloqüente orador literário e poeta fecundo, mais do que Tobias pensador e escritor. Cumpre, aliás, repetir que esse grupo, salvo imigrações individuais posteriores, restringiu-se ao Norte, donde era a máxima parte dos seus alunos, e mais exatamente a Pernambuco”.

O nome de escola parece realmente exagerado para o movimento de Recife. Mas, a agitação intelectual que ali se processou não só foi deveras brilhante, como adquiriu caráter mais ostensivamente iconoclasta dos antigos padrões mentais que o de qualquer outra região. Esse movimento exprimia, claro está, um sintoma das transformações materiais e sociais por que estava passando o Brasil, sintomas que se repetiam um pouco por toda a parte. Mas o movimento de Recife tinha um cenário mais amplo, era mais arregimentado, partia de um centro tradicionalmente respeitado como a Faculdade de Direito, e versou principalmente idéias gerais no campo da filosofia, das ciências políticas, sociais e jurídicas, idéias que expressavam melhor os anseios do espírito e da cultura que os temas especializados em que já sobressaiam, como José Veríssimo apontou, diversos nomes ilustres. Em relação à vida intelectual do Rio de Janeiro, por exemplo, - vá lá o nome consagrado pela tradição! - a Escola do Recife apresentava um tom diferente, uma independência maior, uma heterodoxia agressiva, uma radicalização doutrinária própria de moços na idade heróica das demolições, um zelo menos ardente pelo passado, uma confiança mais séria no futuro e um pouco caso das aparências oficiais que, no entanto, a vida da Corte era de molde a inculcar como necessárias no trato dos homens e das coisas. A “escola” não fixou princípios, não construiu sistema, mas abriu perspectivas, rasgou horizontes, semeou idéias bebidas em fontes peregrinas, criou um clima intelectual. Este clima generalizou-se pelo Brasil afora e dentro dele viveram quantos evoluíram com a nação, tivessem ou não aprendido com Tobias. Mas Tobias foi o grande animador dessa ofensiva vigorosa contra os velhos moldes e os velhos rumos; dele o ardor combativo, o gosto pelos altos estudos. Muitos sabiam e aprenderam por conta própria. Mas a atmosfera do saber da cultura no Brasil do século XIX deveu mais a Tobias e à escola do Recife do que a quaisquer outras individualidades ou instituições.

(A Época e o Homem, 1959.)

O COMPLEXO DE ATAXERXES

A mais comum das acusações aos homens que exercem o poder assegura que, quando eles se apanham nas alturas, esquecem os velhos amigos, os antigos camaradas, as relações da mocidade e do tempo em que "não eram nada". Embora verdadeira, essa acusação não autoriza, entretanto, conclusões pessimistas a respeito dos sentimentos e do caráter daqueles que subiram. O clima do poder é demasiado perturbador da alma humana para que possamos identificar no cidadão que ocupa, por exemplo, a chefia do Estado, o mesmo cidadão que antes conhecêramos no sistema das relações geradas pela convivência social quotidiana.

Aqueles que insistem em prolongar com o homem no poder a camaradagem que mantinham com esse mesmo homem, fora do poder, sofrem do que peço licença para denominar: - o complexo de Ataxerxes.

Ataxerxes é o personagem principal do primeiro conto do belo livro de Aníbal Machado - "Vida feliz". Um dia, descobre Ataxerxes que o chefe da nação havia sido seu colega de colégio. Tratavam-se intimamente pelos apelidos familiares. Xerxes pra lá, Zito pra cá. Resolve, então, com a família, mudar-se para o Rio. Liquidou tudo quando possuía no interior, e, entre grandes planos para o futuro, chega à capital. Aqui envia um telegrama ao presidente, procura falar ao antigo companheiro, deste não consegue se aproximar e nada obtém. Todas as suas esperanças repousavam numa ilusão: que o presidente da República fosse o mesmo Zito dos bons tempos colegiais.

A isto denomino complexo de Ataxerxes, a essa deformação intimista e sentimental do homem no poder. Nem Ataxerxes nem todos aqueles que sofrem do complexo do seu nome percebem que Zito, camarada jovial de escola, está para Zito, presidente da República, como a pessoa privada do artista está para o personagem que ele vive no palco.

Presidente, rei, ditador, ministros são papéis a serem representados e vividos, papéis que transfiguram radicalmente os indivíduos que nos mesmos se encarnam. Ninguém confunde o Rei Lear, que admirou no palco, com a pessoa do ator que o viveu à luz da ribalta.

Assim também na política, no fascinante domínio do governo dos homens. O plano do poder não é, de modo algum, normal, porém especial. No teatro há papéis. Na política há funções. Viver no palco um papel é substancialmente idêntico a exercer, na política, funções de mando. Idêntico no sentido de que, em ambos os casos, os indivíduos representam algo além deles próprios, algo que transcende a significação exclusiva da personalidade individual, algo que, enquanto durar a representação, transforma e transfigura seus protagonistas.

O complexo de Ataxerxes consiste exatamente em não alcançar que o plano do poder tem exigências, leis de conduta, razões de agir, motivos de exaltação que o plano da vida social comum desconhece. O poder é também uma representação, onde ninguém, em si mesmo, é igual ao que representa. Eis porque é absurdo pedir ao homem no poder que se conduza como antes de lhe haver sido distribuído o papel que foi chamado a desempenhar.

Qualquer chefe de Estado é, por identificação com seu destino político, um ser psicologicamente diferente do indivíduo que foi chamado a desempenhar aquele papel. Toda sua conduta passará necessariamente a refletir o plano especial em que move, e em que só se move porque exerce aquele cargo. Amizades, relações, sentimentos, modos de ser, de agir e de pensar, tudo participará dessa categoria nova em sua vida afetiva e intelectual, que é a categoria do homem no poder. Mesmo os indivíduos mais nutridos de filosofia e autocrítica a isso não escapam. O poder, torno a repetir, é uma representação, onde ninguém, em si mesmo, é igual ao que representa.

O homem no poder sofre, em grau menor ou maior, de três ilusões capitais: a ilusão de que tudo pode, a ilusão de que tudo sabe e a ilusão de que seu poder jamais terminará.

Provavelmente, a essas ilusões sentidas e vividas deve-se o fato de, quando no poder, ganharem os homens ainda mais insignificantes um relevo ao qual jamais supúnhamos fossem capazes de atingir. A face do homem no poder, até do homem mais medíocre, ilumina-se de uma luz, que não é dele mas o transfigura. É a luz própria do plano especial em que se move. Também à luz do palco, as caracterizações transformam e transfiguram os atores.

É evidente que o poder exerce sobre a alma humana fascinação avassaladora. O sentimento de que se possui autoridade para mandar e ser obedecido perturba o psiquismo dos indivíduos. Exatamente porque conduz a tudo, o poder exprime, no campo da experiência humana, um infinito de possibilidades.

Que o poder participa do caráter de representação teatral e que o governante é, no fundo, um ator vivendo algo diferente dele próprio, podemos ainda deduzir da mediocridade a que retorna a grande e absoluta maioria dos que deixaram ou perderam funções de mando. Mesmo um general prussiano, quando reformado, converte-se numa flor.

Em regra, ao se afastarem do poder, alimentam seus antigos ocupantes a ilusão de continuarem a ser tratados e considerados como se nele permanecessem.

É a mesma ilusão que teria um ator se esperasse ser tratado, fora do palco, do mesmo modo e com as mesmas honras atribuídas a seu papel.

O complexo de Ataxerxes consiste, pois, em identificar no homem no poder o homem que existia antes, fora do poder. Na verdade, são duas pessoas diferentes, pois atuam em planos tão diversos que os motivos de inspiração e de conduta nem sequer se assemelham.

O plano do poder é um plano especial, de contatos e relações especiais, um plano que se insere na trama da vida humana como se fora uma representação. O governante é ator, pior vive um papel. Foi exatamente o que Ataxerxes não compreendeu. Daí sua desventura, e a desventura de todos os portadores do complexo do seu nome.

(Idéias e figuras, 1957.)

 

POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE

[...]

Ao comparecer à Câmara dos Deputados para prestar contas da atuação brasileira em Punta del Este, explanou o chanceler sentido e alcance das atitudes assumidas. Lutara para que se encaminhasse o problema cubano pela "via larga e sempre aberta da negociação" e nunca "pela via proibida da intervenção". Temia San Thiago que a intervenção acabasse se processando pelas formas mais radicalizadoras do confronto ideológico e pelo instinto de segurança norte-americano. A essa sessão de grande calor polêmico, seguiu-se, em fevereiro, moção de censura ao ministro do Exterior, a qual só em maio foi apreciada. San Thiago estabeleceu neste passo importante distinção entre o conceito de sanção e o de agressão. Agressão é a medida, mesmo praticada sob o rótulo de sanção, mas sem fundamento nos tratados. Ora, conceituar o regime cubano em si mesmo como ataque armado ou como ato agressivo importava em transpor os limites do mais significativo dos pactos assinados pelas repúblicas americanas, o Tratado do Rio de Janeiro.

Esta a política externa que encontrei delineada ao assumir o Itamarati e a que dei todo apoio. Mas a crise dos foguetes, ainda distante, viria abalar a estrutura lógica do pensamento exposto por San Thiago e traria complicações ao desdobramento prático do ponto de vista em que nos colocáramos. Nem o Departamento de Estado nem a maioria das chancelarias latino-americanas participavam do nosso esforço de compreensão da nova realidade, pois atinham-se rigidamente ao caráter marxista-leninista do regime cubano, ao seu alinhamento com a política soviética, perigos que julgavam necessário desde logo eliminar.

Importante detalhe tornara desde o início suspeita a revolução aos Estados Unidos e fora a expropriação das propriedades açucareiras. O Departamento de Estado preocupara-se obsessivamente com o problema das indenizações pela tomada pura e simples das terras e empresas. Quando, depois da vitória, na primavera de 1958, visitou (também esteve no Brasil) os Estados Unidos, Fidel, alto, uniformizado e barbado, tinha, na opinião de observadores, um ar esquerdista de nacionalista-romântico e falava de uma "revolução humanista". Mas, em princípios de 1959, pronunciava o primeiro discurso, o primeiro tiro direto contra o imperialismo.

A necessidade de organizar a revolução, de institucionalizá-la em objetivos e instrumentalidade seguramente se impôs aos líderes como tarefa imediata fundamental a ser executada. Revoluções correm o risco de perder-se se não se instrumentam para oferecer à realidade complexa, aos fatos contraditórios emergentes, um fio condutor. Mas a instrumentalidade executiva coloca entre os fatos, entre o acontecer e as metas superiores do idealizado, uma separação de linhas, uma diferença de qualidade, um desvio de correspondências, pesado tributo à inserção, à acomodação do pensado no factual, do novo no antigo. Nada há na vida dos indivíduos mais perturbador e incomodativo que as eras revolucionárias. Injustiças, incompreensões, violências, vinganças acumulam-se na bagagem das revoluções. Elas encontram na figura do bode expiatório a matéria para saciar a sede sectária de justiça e fidelidade que, em exaltações primárias, as devoram.

É possível que a Fidel e a seus conselheiros as metas políticas e sociais da revolução não se compadecessem com os valores constitucionais e econômicos do pan-americanismo. Constituíam esses valores pontos conceituais de referência de uma solidariedade, embora formal, entre as repúblicas do continente. Na prática das instituições e do governo, a história representativa dessas repúblicas era a mais desequilibrada e precária. Num ponto, entretanto, todos afinavam: na manutenção da propriedade privada dos bens sociais terra, meios de produção. Agora, a revolução cubana, isolada em pequena ilha, fronteira dos Estados Unidos, matriz continental dos princípios que santificavam a livre-empresa, introduzia no concerto pan-americano a semente da socialização dos meios de produção sob a liderança do regime leninista do partido único - o Partido Comunista. Era um desafio. Por si só, Cuba não tinha como sustentá-lo. As rivalidades, as contingências da balança do poder mundial ofereceram-lhe a oportunidade da opção pelo alinhamento com a União Soviética, que, envolvendo mútuos compromissos, inclusive militares, exacerbaria até a eventualidade de um confronto americano-soviético, a transformação social da ilha. A esse desafio, agravado pelo estímulo de Havana às atividades revolucionárias em outros países, mobilizaram-se para respondê-lo as demais repúblicas do continente. Inicia-se, em conseqüência, uma série de procedimentos políticos que, culminantes na malograda invasão da ilha, se foram depois sucedendo no sentido do isolamento de Cuba.

O governo Kennedy herdara do de Eisenhower o projeto de invasão, que custou a amadurecer. Recém-empossado, o presidente desconfiava dele. Mas grande parte da maquinaria da administração estava empenhada no cometimento, a começar pela CIA, cujas informações e cálculos não corresponderam à realidade. Intervenção direta por Forças Armadas dos Estados Unidos, afastara-a de cogitações o presidente. Os tempos eram outros e Cuba, pela sua filiação ao mundo comunista, especialmente à União Soviética, não se reduzia mais a puro caso americano, como os casos do passado. Porém, os Estados Unidos treinaram e aparelharam a tropa invasora, e, afinal, a eles coube a iniciativa da expedição e tiveram que arcar com a responsabilidade de seu fracasso.

Na segunda metade de 1962, de 2 a 3 de outubro, e sob a alegação do conhecimento de fatos novos ligados à situação cubana, teve lugar em Washington a conferência de chanceleres americanos. Nosso delegado foi Afonso Arinos, então representante permanente na ONU. A conferência encerrou-se por um comunicado, sem assinaturas, como que dissimulando divergências, porém anticubano na letra e no espírito, pois pedia-se que os Estados se preparassem para examinar a situação criada pelo regime marxista-leninista em Cuba, "se a situação exigir a adoção de medidas de maior alcance que as já autorizadas". Mais adiante insistia o documento:

Ficou patente durante a reunião que, na atual conjuntura, o mais urgente desses problemas é representado pela intervenção sino-soviética em Cuba como tentativa de converter essa ilha em base armada para a penetração comunista das Américas e a subversão das instituições democráticas do Hemisfério.

Pela primeira vez, aludia-se formalmente à possibilidade de intromissão de armamentos soviéticos em Cuba. O objetivo da conferência fora mobilizar espíritos e solidariedades, como se se tratasse de ato preliminar ao drama da crise dos foguetes. Embora do comunicado se ressalvasse que a reunião reiterara apoio ao princípio da não-intervenção e democracia como base das relações entre os países americanos, a verdade é que o documento sofrera pela mão astuciosa do Departamento de Estado adaptações aos propósitos de sua política anticubana. Não deixa dúvidas a esse respeito o depoimento de Afonso Arinos, muitas de cujas sugestões acolhidas pelo plenário "se viram atenuadas e mesmo alteradas pela química redacional do Departamento de Estado". Realmente, em Planalto diz a narrativa do nosso delegado,

convidados para um banquete seguido de recepção aquele Departamento, os delegados-chefes não puderam acompanhar a versão final do documento para controlar sua adequação ao que havia sido aprovado. No dia seguinte verifiquei que, em muitos pontos, a redação saída do Departamento de Estado publicada pelos matutinos e espalhada por todo o mundo pelas agências telegráficas fora acomodada a certos pontos de vista dos Estados Unidos nem sempre vitoriosos na reunião. Teve ali outra prova do entrosamento entre os órgãos políticos dos Estados Unidos e os formidáveis meios de divulgação existentes no país, supostamente independente do governo.

Na área da esquerda o comunicado provocou uma vaga de protestos, tive de esclarecer que não se tratava de compromisso, não havendo responsabilidade específica de cada país pela sua letra. Pouco tempo depois, estalaria em toda sua gravidade a crise dos foguetes ao reconhecer Kennedy, a 29 de outubro de 1962, perante a nação que possuía provas de armamento nuclear soviético em Cuba e houvera decretado o bloqueio para evitar novas transferências.

Não cessara ainda a emoção provocada pela denúncia quando recebi à noitinha, em minha casa, a visita do embaixador Lincoln Gordon. Queria saber se poderíamos enviar a Havana alguém que, em nome do nosso governo, ponderasse ao governo cubano, fizesse ver a Fidel Castro a absoluta necessidade de sair do território da ilha o armamento nuclear soviético. Assenti na sugestão, telefonei ao presidente em Brasília, que aquiesceu de pronto, e perguntou-me quem seria o escolhido para essa missão. Respondi: o chefe de sua Casa Militar, o general Albino Silva. As instruções ao general foram precisas: compreendíamos que Cuba possuísse armamento defensivo, mas nos opúnhamos à instalação de armamento soviético ofensivo em seu território, porque isto colocava em risco a segurança do continente e mesmo a paz mundial. O general Albino Silva, recebido por Fidel, transmitiu-lhe e reforçou com nitidez militar nosso ponto de vista. Do excelente desempenho de sua missão dei conta ao Senado em sessão secreta de 21 de novembro. Permanecíamos fiéis à nossa tradição de solucionar questões internacionais por meios pacíficos.

Logo se convocou a Organização dos Estados Americanos (OEA) que, transformada em órgão de consulta para decisões na forma do Artigo 12 do Tratado do Rio de Janeiro, recebeu do governo de Washington projeto da resolução explicitado em dois parágrafos: o primeiro, pela votação do bloqueio contra transferência de armas; o segundo, autorizativo do pleno emprego de força armada, se as circunstâncias assim o determinassem. Nosso delegado, embaixador Penna Marinho, votou a favor do bloqueio esclarecendo que o entendia como medida impeditiva da chegada de novos carregamentos de armas a Cuba. Assim, bloqueio não compreendia invasão do país. Do segundo parágrafo da resolução americana, reclamou o desdobramento para estipular que medidas destinadas a impedir a concretização da ameaça nuclear em Cuba, mediante emprego da força, se subordinassem à prévia comprovação por observadores do arsenal soviético na ilha e só na hipótese de tornar-se impossível a investigação tomar-se-iam providências ofensivas na forma do Artigo 53 da Carta da ONU, obstáculo a medidas coercitivas por parte de organização regionais sem prévia autorização das Nações Unidas. A tese dos Estados Unidos era a da permissividade simultânea do emprego da força com a aprovação da resolução por eles apresentada. Ao final das discussões, o delegado brasileiro absteve-se de aprovar a parte da resolução autorizativa do emprego de força armada.

Vejo entre meus papéis, do punho do presidente, nota a lápis sobre conduta a seguir na reunião de consulta. Ei-la:

1) Concordar com a transformação do Conselho da OEA, em reunião de consulta, procurando antes coordenar essa posição com países que nessas questões vêm votando com o Brasil. 2) Propor e defender a modificação da resolução, sobretudo do parágrafo segundo, pedindo como medida preliminar a constatação da existência de material bélico ofensivo por comissão das Nações Unidas para que as provas apresentadas não possam vir a sofrer qualquer constatação no seu objetivo de exploração de sentido político e psicológico prejudiciais a quaisquer ações futuras. Coerente posição assumida nosso país resolução n. 8 adotamos Punta del Este, podemos admitir a inspeção de navios a fim verificar transporte cargas, armamento poder ofensivo. Qualquer outra resolução fora dessas linhas básicas, desejo ser ouvido com antecedência.

A posição brasileira mantivera-se dentro das bases recomendadas e o presidente não hesitou em aprová-la, apesar de saber que isto lhe custaria dissabores em áreas de seu apoio. Em declarações ao The Economist, de Londres, fevereiro de 1963, o presidente esclareceu:

O que caracteriza a agressão ideológica são os fatos ou as condições que a podem tornar provável ou mesmo iminente. Eis porque pensamos que a retirada dos armamentos nucleares de Cuba foi um gesto de sabedoria.

Realmente, nosso voto, além de hostilizado pela direita, desencadeou uma tempestade nas áreas da esquerda. O deputado Leonel Brizola acusou o embaixador Penna Marinho de desobediência às instruções. Ele usara de flexibilidade em grave conjuntura da vida internacional, mas o essencial de nossa atitude contrária à intervenção se preservara. Haver abstido de votar a parte autorizativa do emprego de força armada não obscureceu a oposição à modalidade de pressões coeritivas destoantes dos tratados e das recíprocas obrigações assumidas. O representante em Havana, embaixador Bastián Pinto, deixara muito claro, em permanente contato com o governo de Fidel, que a presença de foguetes retirava de Cuba o direito de recorrer ao princípio da autodeterminação. Impossível excluir pela letra dos tratados, tal a importância assumida pelos mísseis soviéticos em Cuba, a possibilidade de intervenção armada naquele país. Era dever comum salvaguardar a integridade das repúblicas americanas de iminente ameaça militar. Nós também reconhecíamos que os foguetes assestados em Cuba configuravam caso de agressão e, por isto, insistíamos pelo desmonte, pela retirada. Outra saída não havia que permitisse a Cuba conservar as conquistas da revolução.

O governo, em nota explicativa, justificou o voto brasileiro, mas a agitação radicalizava grandes setores da política, a direita apaixonada pela perspectiva de derrubar o regime federalista, a esquerda temendo pela sorte mesma desse regime. A posição política do governo desgastava-se nesse ambiente de contestação ideológica como se a viabilidade ou não do regime brasileiro dependesse do que fosse suceder a Cuba. Mais de uma vez declarei que nosso apoio não decorria de ser Cuba país socialista, mas da sua condição de país soberano, que tinha direito à experiência política própria, mesmo socialista, como outros tinham a experiências diferentes. Explicava-se que a direita brasileira reacionária e maniqueísta englobasse no mesmo complexo Cuba e o governo nacional e aos dois votasse idêntica repulsa. À esquerda, porém, cabia considerar as contingências e compromissos internacionais que repercutiam na conduta da administração, particularmente no episódio cubano. Foi o que faltou a seus líderes, principalmente ao maior deles, Leonel Brizola, cujo radicalismo antiimperialista e nacionalista não lhe permitiu discernir a linha de procedimento mais favorável à estabilidade do governo, que ajudara bravamente a instalar-se em 1961. Brizola não era comunista, mas logo o etiquetaram de vermelho, pois combatia o imperialismo e advogava soluções nacionalistas para os problemas nacionais de base. No governo do Rio Grande tivera amarga experiência com a companhia americana concessionária de serviço público em Porto Alegre, e a desapropriara. Sua visão do desenvolvimento brasileiro exigia o domínio pelo Estado, ou por elementos nacionais, daquelas posições estratégicas da economia que comandavam a riqueza nacional e sua expansão. Aí estava o cerne de sua visão política. Mas, no desdobrá-la ao calor das improvisações, na ausência de domínio mais completo da intimidade da administração, exagerava erros e omissões governamentais. Acabou parecendo mais adversário que correligionário do governo e das instituições. Seu extraordinário poder de comunicação elevou-o a ídolo de grandes massas. Ouvi de Gilberto Amado que, chegado ao Brasil, encontrou a fama de Brizola e resolveu testar-lhe a nomeada escutando um de seus discursos pelo rádio. Saiu da experiência admirado:

ele baralha coisas, ofende a gramática, mas arrasta.

A questão cubana continuou a aquecer a temperatura política nacional, delegações numerosas por duas vezes dirigiram-se ao Itamarati, uma de protesto, outra de contraprotesto. Em dezembro de 1962, certo senador apresentou requerimento de informações sobre os asilados em nossa Embaixada, ele era uma espécie de Pão-de-Açúcar do reacionarismo indígena, e acusava o embaixador Bastián Pinto de atividades pró-comunistas e de maltratar os que se haviam abrigado sob a proteção de nossa bandeira. Respondi que a Embaixada acolhia gente de todo o tipo e dessa gente partira até ameaça de morte contra funcionários nossos. Na verdade, foram extraordinários os serviços prestados pela Embaixada aos que fugiam do novo regime, desde os primeiros tempos da revolução, graças à diligência e prestígio do embaixador Vasco Leitão da Cunha, a quem Luís Bastián Pinto sucedeu. A cerca de seiscentos ajudamos a sair do país até dezembro de 1962. Outros nem chegavam a se asilar porque, por simples telefonema do embaixador, sem necessidade de troca de notas, obtinham salvo-contudo. Foi o caso, por exemplo, do antigo ministro da Educação, Augusto Rodríguez Miranda, libertado de La Cabaña e levado para a Venezuela. No número dos asilados que saíram para o estrangeiro incluíam-se os cento e setenta e um que recebemos das embaixadas do Equador e da Argentina, depois que esses países romperam relações.

Em janeiro de 1963, a situação interna na embaixada tornou-se intolerável. Até assassinato e suicídio entre os asilados ali ocorreram. Restavam noventa e uma pessoas sob nossa proteção, mas entre elas algumas eram acusadas de graves crimes sob o regime decaído, de onde a relutância oficial em atender nosso pedido de liberar a todos sem distinções. Decidi enviar a Havana, em janeiro de 1963, o embaixador Câmara Canto, chefe do Departamento Administrativo da Secretaria de Estado, que obteve salvo-conduto para todas elas, sem exceção. Dezesseis vieram para o Brasil. Por essa época, cogitavam da realização, no Rio, de um Congresso Continental de Solidariedade a Cuba. Opus-me. A atmosfera política aconselhava essa medida de prudência, que, entretanto, repercutiria na própria área governamental dividindo e apaixonando. Esclarecendo a medida, o Itamarati distribuiu o seguinte comunicado:

A posição do governo em relação ao Congresso de Solidariedade a Cuba permanece a mesma desde que foi anunciada. O governo brasileiro jamais emprestou qualquer espécie de apoio à realização do congresso e o Itamarati já fez saber, desde há muitos dias, que nenhuma facilidade concederá à presença de delegados estrangeiros.

Afinal, ao contexto interamericano não mais foi possível fechar a brecha ideológica do regime cubano, que tanta preocupação e tanto medo provocou. O fracasso da invasão e a retirada dos foguetes marcaram os limites extremos da crise cubana, estabilizando, por assim dizer, o governo de Fidel Castro. Repetir a invasão converter-se-ia em total expedição de guerra que só a tropas americanas seria possível levar a cabo. O preço seria demasiado alto. A retirada dos mísseis soviéticos completava negociação de cujos termos terá saído a tolerância de Washington em face do regime marxista-leninista instalado na ilha.

No fogo da crise, o Presidente Kennedy escrevera ao Presidente João Goulart admitindo haver lugar para Cuba na América Latina, mas esclarecendo que ela devia cortar amarras com a Rússia, embora conservasse sua filosofia política, à semelhança da Finlândia e da Iugoslávia. Lembro-me da noite em que o embaixador Lincoln Gordon, acompanhado do coronel Vernon Walters, hoje general e subchefe da CIA, foi às Laranjeiras entregar a mensagem de seu presidente. O embaixador era meu conhecido de muitos encontros. Walters eu via pela primeira vez, grandalhão, de sorriso fácil, falando um português correto e quase sem sotaque. Sua presença era um luxo americano na paisagem política nacional daqueles dias. Homem da CIA está hoje exatamente no comando da CIA, o braço secreto da Administração nas relações com o exterior.

Eu trouxe do Itamarati, de seu pessoal, dos seus serviços, excelente impressão. Angustiou-me o problema das promoções. Muitos a merecer, poucos os escolhidos. A distribuição de postos também é cheia de dificuldades, porque se todos, pelo menos teoricamente, são importantes, só uma minoria deles é apetecida. Contaram-me que, ao tempo do Barão, a categorizado diplomata reservaram Atenas.

- Conhece Atenas, Sr. Barão? É a Barra do Piraí com a Acrópole.

Em 1957, participei da Comissão de Estudos e elaboração final do projeto de reforma da Secretaria de Estado e dos quadros do pessoal do Ministério das Relações Exteriores. Por esse tempo, surgiu-me a idéia de comissionar os estudantes do Instituto Rio Branco no último ano do curso, ou no primeiro da carreira, em postos diplomáticos das três Américas. Aí exclusivamente se dedicariam ao estudo da língua, da história, da economia e da sociologia do país a que fossem enviados por sorteio. Creio que externei esse pensamento aos membros da Comissão.

(Travessia, memórias, 1974.)