Devo à vossa generosidade a consagração desta noite. Não bastava tê-la sonhado e desejado. Era necessário que vossa indulgência me elevasse à dignidade e à altura da Cadeira 7.
O patrono é Castro Alves, cujo estro iluminou de luz redentora a escravidão, consumando-se, desde aí, a condenação moral do cativeiro. Tirai da poesia de Castro Alves as hipérboles, as amplidões, os infinitos, os gigantes e dela restará sempre o dom de comunicar à nossa sensibilidade a emoção que recebeu dos aspectos da Natureza e dos lances da vida e da História. Ele próprio foi um dom da Natureza.
O fundador Valentim Magalhães, morto na casa dos quarenta anos, foi tão vário e dispersivo que sua existência lembra uma torrente sem caminho. Prógono da “Ideia Nova” que na época vagamente sintetizava o movimento renovador da Cultura, das Letras e das Artes, dotado de talento e ardendo na ânsia de viver, gozou de notoriedade e prestígio, produziu muito, porém improvisou demais. Ao sabor de solicitações contraditórias, cedo por elas é devorado como se não lhe tivesse sobrado tempo para colocar na faixa de seu destino a quota pessoal de realismo e disciplina que seu nome e sua vocação de escritor estavam a exigir.
A Valentim Magalhães sucede Euclides da Cunha. Pela sua personalidade e pela tragédia em que sucumbiu, Euclides é singular e, talvez, único em nossa Literatura. É, desde logo, um brasileiro pela visão que situa sua obra. Nosso País está todo dentro de seus livros – geografia e evolução, terra e gente, história e esperanças.
Em 1902, quando surgem Os Sertões, achava-se a sociologia da vida brasileira apenas esboçada. A parte da vida brasileira mais merecedora de atenção era a do litoral. O pensamento organizador, refletindo necessidades internas mas igualmente especulações peregrinas, cuidava mais do Estado como objeto do Direito Constitucional do que como objeto de uma ação administrativa que reagisse à herança negativa do passado como o subconsumo, a precariedade dos transportes, a debilidade das inversões, a escassez de meios de pagamento, o controle externo do nosso comércio.
Aconteciam coisas pitorescas. Peculiaridades de nossa vida política como deposições de governadores, dualidades de assembléias estaduais, intervenções da União nos Estados – episódios típicos da luta pelo poder nas províncias – logo se douravam, para os efeitos da compostura exegética, das roupagens doutrinárias dos puros-sangues do constitucionalismo americano. Explicava-se de um modo, resolvia-se de outro. Afinal, nem o Padre Cícero, do Ceará, nem Horácio de Matos, da Bahia, nem o paraibano José Pereira viviam nos livros, mas no interior do País.
Vede Canudos. Hoje, é difícil compreender por que a política do tempo descobriu em Canudos terrível conspiração contra a República. Cumprira a Monarquia seu destino histórico que, talvez, um príncipe herdeiro, consagrado pela guerra do Paraguai, houvesse prolongado. Talvez. Verdade é, como observou Afonso Pena Júnior, contemporâneo da campanha, testemunho do juízo e das reações provocadas por ela, que “há sempre em torno dos regimes nascentes uma vigilância angustiada de entusiastas inclinados a atribuir todos os males – ainda os decorrentes de incompreensões ou erradas aplicações da nova ordem política – aos adeptos do regime extinto. É, no campo social, uma espécie de mania individual de perseguição”.
Mas, derrubar a República partindo do fundo do sertão baiano, dessa Canudos iletrada, pobre, isolada? Não. Aqui houve erro tremendo que jogou a ignorância dos doutores das capitais contra a ignorância dos sertanejos analfabetos.
Se nem tudo se aprendia nos livros egrégios que os doutores folheavam, algo de importante frutificou, ao longo da história republicana, dessa cruzada constitucionalista teórica e militante, que Rui Barbosa simbolizou. Fixaram-se na mentalidade pública valores políticos e jurídicos que contrastam o caudilhismo e o militarismo, velhas doenças latino-americanas.
Irromperam Os Sertões na Literatura Brasileira trazendo pelo menos duas novidades insignes: a linguagem ao mesmo tempo técnica, imaginosa, hiperbólica, alimentada por um senso dramático que prende e arrasta, e uma sondagem profunda nos abismos de atraso, ignorância e fanatismo da sociedade velha do interior. A partir desse livro extraordinário, os sertões se incorporam aos temas vitais da sociologia brasileira.
Não viu Euclides na sertanejada apenas doença e pobrezas, mas também resistência, engenho, coragem e ardilosidade. Em duas águas-fortes, traçou os perfis do vaqueiro e do jagunço, fixando nesses símbolos os contornos físicos e psíquicos da massa de brasileiros que há séculos só possuem por instrumentos de trabalho a energia do próprio braço e a energia dos animais companheiros de serviço.
Agora, a cena está mudando. Vaqueiro e jagunço tenderão a diluir-se numa perspectiva social em que a rede de estradas, as comunicações mais fáceis, a presença da energia elétrica e do rádio conspiram contra o isolamento e a rotina dos preconceitos e da ação.
A força de trabalho dessa dura sertanejada que varou o País, plantou lavouras, abriu fazendas, fundou vilas e cidades, lá continua à espera que um processo civilizador a integre como elemento positivo do dilema em que Euclides sintetizou nosso destino: civilizar ou perecer.
Em Afrânio Peixoto, sucessor de Euclides, conviveram um notável homem de letras e um homem de grande saber. Foi cientista, professor, educador, parlamentar. Em cada qual dessas atividades deixou traços marcantes e até sensacionais de sua passagem como no famoso concurso na Faculdade de Medicina do Rio.
Tivera iniciação científica considerável. Largos conhecimentos de natureza experimental aparelharam-no para as tarefas da observação e do estudo no encaminhamento de problemas de ordem técnica e social. Daí decorre, como se vê de sua obra no campo da Medicina Legal e da Saúde Pública, de sua ação de legislador e de educador, de sua competência na remodelação do Hospício Nacional, uma segurança e uma objetividade que o conceito vulgar de diletante não comportaria.
Trabalhava sério. Trabalhou a vida inteira. Partia para as tarefas que se propunha com determinação metódica. Professor, foi modelo de assiduidade, ministrando aulas que atraíam pela densidade e encanto da exposição alunos de todos os cursos. Não era só por dever funcional. Era questão de caráter nesse homem que a vida social não deformou. Gostava de conviver mas sem abdicar de sua personalidade, guardando dentro de si as fontes sertanejas da maneira íntima de ser, desconfiado do dinheiro, do luxo e dos poderosos.
Foi cientista, homem de laboratório, técnico de alta especialização. Contudo, a essa via aberta a seu talento multiforme, preferiu, por onde começara, a de escritor, para quem a Literatura seria o alimento ideal da própria vida. Fascinava-o a obra literária, a fama que daí se irradia, o mundo inventado e revelado pela criação artística. Para ele também, essa era a glória que fica, eleva e consola.
No mundo de seus romances regionais e tão evocativos reencontra-se com a paisagem, tipos, lendas e sentimentos que, lhe povoaram os olhos e a imaginação de menino. Era o sertanejo que movido pelo fundo das recordações decantadas, recriava histórias e dramas dessas Lavras Diamantinas em cujo chão deitava raízes sua sensibilidade.
O falado enciclopedismo de Afrânio, a gana de saber o mundo, não imobilizara nele um erudito. Preparara-o, isto sim, para trabalhos e iniciativas, no campo da Literatura, da Educação e de problemas típicos da nacionalidade. Ele pensou, imaginou, construiu.
E que companheiro! Seu convívio era uma festa pela vivacidade da inteligência, pelo alado saber que perpassava em sua conversação. Do prodigioso armazém da memória, ao saber dos temas, saltavam anedotas, fatos, conhecimentos, coisas lidas e vividas, que imprimiam à sua prosa a categoria de verdadeira arte literária.
Afonso Pena Júnior, mineiro de Santa Bárbara, fez sua entrada triunfal na Literatura Brasileira em 1946 publicando A Arte de Furtar e Seu Autor, e com um dos exemplares me honrou.
Em crítica de atribuição nada há igual em nossa Literatura. Ele estava preparado para tarefa desse porte e dessa natureza. Sua educação humanista, seu paciente amor da investigação depararam na decifração da autoria do livro famoso – destinado, como está em seu texto, não a ensinar ladrões, mas a conhecê-los – um campo extraordinário de pesquisas que, por duas décadas, lhe ocuparam o espírito.
Quem primeiro sugeriu o nome de Sousa de Macedo, já em 1917, como autor da Arte foi Solidônio Leite, polígrafo, pesquisador de tomo, no opúsculo A Autoria de A Arte de Furtar. Desde aí a paternidade do livro, na opinião dos competentes, parecia bem orientada. Lançando-se a um “trabalho de juiz”, conforme ele próprio o denominou, escreveu Afonso Pena a obra em dois volumes na qual seus estudos clássicos, sua competência crítica aprofundaram caminhos e rasgaram perspectivas que consolidaram o nome de António de Sousa de Macedo.
Logo de início Afonso Pena desenha-lhe o perfil público e privado, o corte do caráter autoritário e sarcástico, o amplo conhecimento dos negócios do Estado, a defesa da Inquisição, a luta pela recuperação de Pernambuco aos holandeses, traços de sólida preeminência no cenário português.
Pelas atividades exercidas como escritor de alto mérito, como jurisconsulto, juiz da Casa da Suplicação, diplomata e governante, estava situado e aparelhado, por todo o conjunto de qualidades pessoais e circunstanciais que lhe cercam a vida e a obra, como o homem talhado para escrever A Arte de Furtar, crua análise dos costumes sociais e políticos da época.
O livro pedia autor da mais ampla experiência, saber e contato com o Governo, a Justiça e a Política. Um distante desses negócios, dessas atividades e sem o domínio literário da língua, de que tantas provas anteriores já houvera dado Sousa de Macedo, não poderia evidentemente escrevê-lo.
Coube a Afonso Pena o processo dessa demonstração, através de cerradas páginas de inferências em que o cotejo impressionante dos textos e datas, as comparações, as semelhanças e até identidades de pensamento e linguagem se amontoam em exemplos que frisam pela evidência mesma.
Levou sua pesquisa atributiva aos extremos da análise crítica e comparativa. Todo o segundo volume contém análise comparativa tão minuciosa e profunda à luz dos textos
entre as obras conhecidas de Sousa de Macedo e a Arte que a cada passo, a cada demonstração se fortalece a certeza de ser a mão que assinou as obras de Sousa de Macedo a mesma que escreveu A Arte de Furtar.
Já trabalhava Afonso Pena em seu livro quando em 1940, no Congresso do Mundo Português, o padre Francisco Rodrigues divulgou documento achado no arquivo romano da Companhia de Jesus no qual se atribuía a autoria da Arte a outro jesuíta, o Padre Manoel da Costa.
Documento é documento. Mas a divulgação desse se fez apenas numa notícia de seis linhas, a que mais tarde se acrescentaram mais sete. Examinou-o Afonso Pena, pediu cópia do papel aos arquivos da Companhia e, como resposta, veio a informação pela via de nossa embaixada no Vaticano “que os jesuítas se recusam a dar cópia do documento sem valor científico ou histórico com acusações anônimas de caráter particular e pessoal”.
Voltando à carga na Brotéria de maio de 1944, o Padre Francisco Rodrigues, reconhecendo embora que o documento é anônimo, que lhe faltam algumas páginas no princípio e no fim, afirma sua autenticidade pela nota de um arquivista ou secretário. Daí deduziu ser conhecido em Roma o autor da informação. Replicou- lhe Afonso Pena que publicasse na íntegra “a nota do arquivista ou do secretário que serve de autêntica” à carta sem data e sem assinatura na qual se atribuía ao Padre Manoel da Costa a autoria de A Arte.
É claro a essa altura que nem a publicação integral do documento poderia destruir a atribuição de autoria confirmada pela crítica cabal de Afonso Pena. É preciso não esquecer a informação não contestada dos próprios jesuítas: “Documento sem valor científico ou histórico com acusações anônimas de caráter particular e pessoal.”
Não se conhece do Padre Manoel da Costa nada que o capacitasse a possuir dos negócios públicos, administrativos e judiciários do Reino a competência exigida para escrever A Arte. Revela a Arte de Furtar vivência tão profunda do social, do político, do direito público e eclesiástico, dos usos e práticas da administração, que se a tudo isto juntarmos a veia satírica, a segurança e a discrição verbal do estilo, o patriotismo vigilante, teremos que só escritor consumado e participante da vida pública poderia na verdade produzi-la.
Comprazia-se Afonso Pena no exercício difícil e metódico da crítica de atribuição de que já dera amostra ao refutar com êxito comprovado, em 1943, um historiador português que imputara a Sousa de Macedo a paternidade de certo manuscrito da Biblioteca da Ajuda. Pelo menos uma vez mais depois de seu livro, voltou a exercê-la em grande estilo quando da pesquisa da autoria das Cartas Chilenas. Aos argumentos já apresentados juntou os que seu domínio das fontes e sua acuidade investigadora trouxeram para confirmar como de Tomás Antônio Gonzaga o famoso panfleto político sob a assinatura de Critilo.
Sua participação na vida pública foi constante, embora aparentemente não intensa. Pelo feitio do caráter e pela posição de superioridade intelectual, que todos lhe reconheciam, deve ter exercido uma espécie de magistério da persuasão, do equilíbrio, do conselho prudente. Entre praticantes do jogo político do dia a dia, das combinações mais ou menos oligárquicas, destacar-se-ia pela singularidade de levar aos concílios partidários uma palavra em que a moderação deitava raízes numa experiência iluminada pelo saber e pela meditação.
Deputado e secretário em seu Estado, que também representou na Câmara Federal, ocupou num quatriênio áspero a pasta da Justiça e, nem por isso, sua conduta perdeu a feição de tolerância e serenidade.
Em 1930 desaba o velho mundo republicano, o mundo da “família republicana”. Afonso Pena a ele pertencera. A Revolução desse ano, liderada pela Aliança Liberal, encontra-o entre seus corifeus. Mudança grande vai operar-se na dinâmica dos costumes e do mecanismo político e social.
A Revolução de 30 traria algo mais do que as conquistas formais de seu lema – Representação e Justiça. Em 1910, na campanha civilista, já ganhara Afonso Pena as credenciais de revolucionário histórico na reivindicação desse lema. Constituiu o civilismo, a que o verbo de Rui Barbosa imprimira ressonância nacional, o primeiro grande apelo, nos anais republicanos, pela chamada regeneração dos costumes políticos. Há um fio condutor que da campanha civilista leva à Revolução de 30. A maior diferença esteve em que a Revolução, mesmo a seu pesar, abria as portas a rabanadas do vento revolucionário que soprava pelo mundo.
Afonso Pena percebeu muito bem que no céu do Direito público novas divindades apareciam, que o individualismo do laissez faire, laissez passer cedia o passo a reivindicações de solidarismo social e que o trabalho conquistara direito de cidadania nas cartas constitucionais.
Não se atemorizou com tais perspectivas, antes manifestou apoio ao espírito de transformação que pairava na atmosfera densa de protestos e também de ilusões.
Mas, à medida que o tempo caminhava, vieram-lhe preocupações angustiantes. A primeira oportunidade em que as terá manifestado foi na conferência pronunciada, vai por quarenta anos, na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, sob o título “Os Homens da Lei”. Aí advertia que aos imperativos de Justiça surgidos das entranhas da primeira conflagração mundial, outros haviam as “do domínio da patologia social postos em equação em outros meios e para outras gentes, produtos de fatores históricos a que somos estranhos, fermentos de lutas e erros seculares que não são nossos, exacerbados às calorias excepcionais da grande guerra”. Trazer para nosso meio “questões tão repugnantes à sua tradição histórica e à sua estrutura moral”, falar no Brasil “em tirania de classes, em opressão do operariado com a mesma acepção europeia desse jargão socialista e sobretudo com os mesmos intuitos do dogmatismo socialista” lhe parecia “um dos pecados que, segundo a letra sagrada, são bradantes ao céu”.
Não. Competia aos homens da lei impedir que algum dia ganhasse foros no País “a chamada questão social” ou “as reivindicações proletárias hoje obstadas pela imensidade despovoada do território e pela tolerância cristã no trato de seus habitantes”.
Sem dúvida, seria tarefa enorme, mas a lei devia afeiçoar “a cera mole do industrialismo brasileiro antes que ele se converta no granito do industrialismo europeu sob a constante ameaça da dinamite”. Termina protestando que a única verdadeira desigualdade que nos envergonha e avilta é a do analfabetismo, supremo obstáculo à igualdade garantida pela lei.
Essa posição ideológica seria desenvolvida em diversos trabalhos e conferências em que, sob uma terminologia conservadora, de índole antes moral que política, o drama do século se fazia presente.
É a sombra desse drama que desce sobre o discurso de posse do reitor da Universidade do antigo Distrito Federal, em 1936. Aí é a ausência da cultura e da sabedoria, responsável pela “mais profunda das lesões da vida do espírito” que alarma Afonso Pena. Ele define a verdadeira Cultura como “a da ordem do espírito e não a da ordem do corpo”, ou seja, “aperfeiçoamento da inteligência especulativa e não prática, inspiração e regra de conduta pelo fortalecimento da consciência”. Sem ela, “a vida interior” estiola-se e onde tal acontece “instala-se a barbárie”.
Da educação assentada no exclusivo conhecimento dos fatos, na especialização desesperada, na desintegração do saber que não recebe os jorros de luz que a pietas e a gravitas deviam sobre ela lançar para humanizá-la, para, ligando-a ao passado, integrá-la no presente e projetá-la no futuro, estaria resultando uma civilização “mecânica e irreligiosa”, que se anuncia pelo tropel de estranha invasão de bárbaros. Essa visão amargura-o porque “os bárbaros de agora são muita vez os nossos próprios filhos, a gente de nosso sangue e do nosso lar”.
São palavras que oferecem muitos temas à meditação. O passado conta muito. Rompê-lo é tarefa delicada, não raro atropelativa em que mão e contramão se cruzam com violência e até se confundem. Nessa hora em que o encontro das gerações provoca resistências encarniçadas e gritos de revolta, em que a tensão dos espíritos compromete senão exclui a compatibilização dos dissídios, Afonso Pena divisa para a Cultura um dos instantes cruciais de perigo, porque “morre a arte delicada de convencer e resignar-se”, e “o conflito de motivos não passa mais pelos campos da inteligência e da consciência; mas leva, logo, aos campos de batalha”. Porém, adverte, o mundo não morre em cada geração. Na lâmpada que se traz na mão arde também “a luz vinda dos confins da história”. Cada processionário é apenas o elo de “interminável e maravilhosa teoria”.
Dessa “civilização mecânica e irreligiosa” o fruto contemporâneo mais amargo e cruel identificou-o Afonso Pena no hitlerismo.
Em 1943, falando aos bacharéis da Faculdade Nacional de Filosofia e Letras da antiga Universidade do Brasil, mostrou como a supressão da liberdade e, portanto, da verdade, montara num País de preclaras tradições culturais, máquina para o serviço da falsidade e da mentira como “o mundo nunca vira antes, nem verá depois”.
Essas monstruosidades envenenavam a ambiência ética da civilização. Entristecia-se o humanista, porém não lhe esmorecia a confiança nos valores da Cultura que, através dos tempos, se cristalizaram em regras superiores de conduta. É que os fins morais não os inventaram os caturras, mas resultam de experiência vivida ao longo dos séculos. Todo sentido normativo de que se revestem deflui da necessidade socialmente sentida de disciplinar instintos e sentimentos.
Por isso mesmo, a tradição lhe era tão cara. Na oração pronunciada em 1941, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Afonso Pena lembra que sociedade sem tradição é tão condenável e perigosa como veículo sem freios. A que árvore de boa saúde, perguntava, pode faltar um bom sistema de raízes?
Nesse discurso, depois de mostrar com lucidez sociológica o papel do bacharel na evolução jurídica e, portanto, social do País, o advogado, o parecerista, o professor, o jurisconsulto com bagagem ilustre entre os grandes de seu tempo, levanta-se contra a “interpretação judaizante, desvitalizante da lei”, porque “o Direito é um estuário de paixões e interesses e, portanto, um estuário da vida”.
Mas ainda aí a falha mais grave lhe parece situar-se no “crescente desaparecimento da cultura humanista e, consequentemente, na falta do exato conhecimento do homem considerado em si mesmo, considerado no tempo e no espaço”.
A ausência da formação humanista, reduzindo juristas à condição de primários, condena-os a um “recomeçar incessante e perpétuo”. A solidariedade do saber e da experiência perde os fios que a integram na prática do presente. É que o Humanismo, observa Afonso Pena, “aparelha o homem para captar, como se fora antena, as ondas da vida que pulsam e tumultuam no fenômeno jurídico”, pois libera as “virtualidades latentes do homem, suas forças criadoras e a vida da razão”.
Fizera, aliás, da educação dos jovens um dos supremos interesses de sua ação cívica, ocupando por muitos anos a presidência geral do escotismo em nosso País. Dizia com a autoridade de sempre: “O escopo da Educação é fortalecer a razão contra o instinto para elevação moral do homem; e o altruísmo contra o egoísmo para a prosperidade e o prestígio das agremiações humanas.”
Afonso Pena Júnior era um humanista. Esse o título com que a admiração geral dos contemporâneos o consagrou.
Que é, como se pode ser humanista? Monteiro Lobato prevenia-me que o dicionário de definições mais precisas é o Webster. De lá retiro que humanista é aquele cuja direção ou atitude de pensamento ou ação visa primordialmente interesses humanos ou ideais. Diz muito, mas não diz tudo.
Surge o Humanismo na esteira da Revolução Comercial. Seu cenário inicial é a Itália da Renascença, rica, sensual e palpitante de aventuras. O traço vermelho da concepção humanista está na preparação do homem para uma vida completa tanto intelectual como moral. Humanismo é assim um estado de espírito que floresceu num clima social em que o comércio e a indústria, ampliando horizontes e relações, ofereciam perspectivas de educação e libertação às virtualidades do homem, ao seu já agora iluminado apetite de viver.
Acompanharam o Humanismo características que o tempo selecionaria como positivas ou negativas: o conhecimento dos clássicos, a eloquência e seu subprodutos, a retórica, o formalismo, a tendência aristocrática na Educação, a independência de pensamento, a revolta contra as restrições da rotina tradicional e eclesiástica, a exacerbação individualista.
Depurada pelo tempo, a visão fundamental do Humanismo será aquela que, investigando a consciência da sociedade, examine a qualidade da vida que vale a pena ser vivida. A que conduz a vida nas sociedades modernas, sociedades de tecnocratas e especialistas, de instrumentalidade mecânica e atômica, de cultura compartimentada, a que conduz, a que pode conduzir e, dentre as opções possíveis, a que deve conduzir?
Este é o problema que está na raiz mesma do Humanismo. Por aí se vê que do humanista não se espera que se refugie em torre de marfim porque o Humanismo informa uma atitude militante para investigar, para criticar, para optar. Afinal, a humanidade passa pela porta do humanista.
Afonso Pena Júnior era humanista não porque aprendera o bom latim do Caraça, mas porque, pelo conjunto do saber e experiência, tinha olhos e inteligência voltados para os problemas resultantes das condições, exigências e motivações do mundo moderno. Deste não se alheou. Dentro dele, sentiu seu País e sua época com a firmeza de suas opções, com a lucidez de uma inteligência preparada para compreender antes de julgar e, por isso mesmo, sem arestas nem fatuidade.
Além de humanista, Afonso Pena era mineiro. Trazia de sua gente o dom de conviver, o jeito ondeante de prosear em que a exclamação “uai” colore a frase e, não raro, completa seu significado.
Era, como se confessava, entranhadamente brasileiro porque entranhadamente mineiro. Considerava seu mineirismo um escalão do amor à Pátria, porque sem essas raízes “o patriotismo correria o risco de ser apenas acessível aos espíritos que suportam o ar rarefeito das abstrações”.
Tinha razão. O patriotismo não é apenas cívico, porque é também mergulho revitalizante no cerne da comunidade, de onde partimos para a imagem da totalidade.
Sua sabedoria captara na cultura polimorfa e na prática de tantos postos, de tantos encargos e de tanto trabalho, a significação dos acontecimentos, o valor dos caracteres e das inteligências, o colorido dos episódios, a qualidade da vida. A memória privilegiada, e dele se disse que tinha uma biblioteca em casa e outra na cabeça, fixava leituras e fatos e também o anedotário da vida política e das personalidades. Sabia de cor páginas literárias inteiras, comprazia-se em recitar poesias de confrades e modernistas e, às vezes, suas, que ele também, no alvorecer de Belo Horizonte, oficiou no altar simbolista das musas, onde, por esse tempo, ardiam as cinzas do Parnasianismo.
Mestre de disciplinas intelectuais austeras, como a Jurisprudência e a Crítica, notou com precisão Alceu Amoroso Lima, atraía-o irresistivelmente a companhia da gente moça e inovadora que encontrava em seu comércio a doçura, a atualidade, a informação prestante e também a malícia polida, que é o sal da conversação.
Em Afonso Pena, escritor nato, atinge o ofício de escrever a mais alta precisão, a plena maturidade. A limpidez de seu estilo é modelar. Habituado das fontes clássicas da expressão, deu ao nosso idioma o número de um estilo em que a clareza da frase se casa à propriedade e à graça pessoal do dizer. Afonso Arinos ouviu dele, em tom familiar, a lição de sobriedade exigida pelo estilo: “Azeite demais apaga a candeia.”
Pensando nele, em sua vida exemplar, em sua dignidade de pensador, no conjunto de seus méritos de humanista, que não se escondeu da vida, porém muito a amou, tentei
recordar os traços essenciais da personalidade de Afonso Pena Júnior, cuja sucessão recolho nesta noite em que, com a honra de ser recebido por Ivan Lins, me vejo entre tantas pessoas de minha admiração e de meu afeto.
18/12/1968