Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, tem sido um fenômeno no cinema nacional, com recorde de bilheteria, de emoção, de aplausos e, agora, com três indicações ao Oscar (veja a lista completa). Ele concorre não apenas a melhor filme internacional, o que já era esperado, e a melhor atriz, o que era sonhado - ele está, também, na disputa pelo prêmio de melhor filme do ano. Para muitos, jovens principalmente, é difícil acreditar que as cenas reproduziram fatos que marcaram o período da ditadura militar no Brasil.
O escritor Ignácio de Loyola Brandão, aos 88 anos, está feliz pelo tema estar novamente de volta com toda essa força. Poucos sabem, mas ele foi protagonista importante dessa história. Além de escrever sobre temas como repressão, censura, violência e alienação, Loyola lutou pela liberdade contando o que estava acontecendo oralmente, ao lado de outros escritores de sua geração, para grupos de jovens e estudantes na pior fase da ditadura.
Seu romance Zero, de 1975, é um dos seus preferidos, foi proibido pela censura no Brasil e tornou-se símbolo da resistência literária. Nessa obra, ele inovou a escrita, reproduzindo fielmente sons de gritos, tiros, atropelamentos, músicas, orgasmos e explosões, com textos fragmentados como um quebra-cabeças de horror. Continua atual e imprescindível.
Durante 1h40 de conversa descontraída no cenário de um andar inteiro de seu apartamento repleto de livros por todos os cantos, cerca de 800 fotos arquivadas com cuidado e a coleção completa da revista Piauí em uma das prateleiras das muitas estantes, falamos sobre os tempos da ditadura e sua participação sem armas, envelhecimento, morte, a tristeza por ver uma São Paulo tão difícil de viver, literatura e sobre a maior alegria: a neta Antonia, de oito meses, que tem um espaço especial da casa e trouxe uma nova energia para a família, além de ganhar do avô um livro infantil recém-lançado - Só Sei Que Nasci (Global). E brincar com o gato Tom, em homenagem ao maestro, claro, que fica muito confortável em cima do teclado do computador.
Loyola, colunista do Estadão e imortal da Academia Brasileira de Letras, tem uma memória excelente e lembra muitos fatos do passado, mas sem saudosismo. Está sempre atualizado. Há pouco tempo, ficou emocionado com uma matéria de capa da Folha de S. Paulo com Joana Fomm, ex-namorada, que ele admira muito.
O que te deixa triste?
As casas desaparecidas para dar lugar aos edifícios que estragam a vista e tiram a claridade. No lugar de uma janela em casa, que tinha uma visão linda para um jardim, Márcia (a mulher) substituiu por um espaço com santos para mudar o cenário. É triste também ler que o prefeito quer derrubar dez mil árvores...
O cotidiano é calmo?
A vinda da Antonia mudou nosso cotidiano, que já era agitado. Agora tem livros infantis, a mesinha para desenhos, papel, lápis de cor, brinquedos. Márcia (estão casados há 42 anos) é arquiteta e vive enfiada nos seus projetos. Eu a fazer crônicas, dar entrevistas, participar de viagens literárias, responder a cerca de 40 e-mails diários, sendo que uns vinte pedindo livros, prefácios, leitura, correção de textos, poemas, crônicas, pedidos de visitas, selfies. Não tem monotonia, mas não reclamo, procurei e lutei por isso. Vou reclamar agora? Estaria deprimido se ninguém me procurasse, escrevesse, pedisse etc. Pensar que o menino Ignácio desaparecia quando criança ao ver uma máquina fotográfica. Acho que só tenho uma foto dessa fase.
Você era tímido?
Era, fui mudando depois dos 12 anos. E pensar que fui figurante em O Pagador de Promessas, do Anselmo Duarte. Portanto, sou figurante Palma de Ouro. Em Salvador, durante as filmagens, dormia na frente do quarto de hotel onde Norma Bengel transou com Anselmo Duarte.
O que te faz bem?
Ler um livro, olhar as árvores. Desde pequeno gosto de árvores, em minha casa em Araraquara eram muitas. Eu acompanhava meu avô marceneiro que ia tirar o tronco das árvores. Ele me ensinou a abraçá-las. Gosto de sentar-me no deck da minha casa em Airuoca e tomar um solzinho olhando a mata e o verde que sobe e desce pelas montanhas. Por anos o que me fazia bem era sentar-me em uma sorveteria e tomar sorvete de pistache, tamarindo ou nata; agora, vez ou outra. Comer abacates debaixo do abacateiro, cortar ao meio, acrescentar limão e um quase nada de açúcar - transgressão desse tempo atual. De repente, assistir a um filme no streaming ou um dos 900 DVDs da minha coleção. Gilda, Casablanca, La Dolce Vita, Oito e Meio.
E a leitura?
Sempre tem a hora de deixar tudo para ler.
Gosta de sair?
Agora bem menos. Mas vou com a Márcia no final da tarde tomar margarita no Viana, aqui perto de casa, ou ao Balcão, no La Tartine comer patê de campagne com cornichon ou tomar um gaspacho.
Tem livro novo?
Acabei de lançar Só Sei que Nasci. Escrevi para Antonia, que acabava de chegar ao mundo. Já estou escrevendo um romance. É um pouco sobre a velhice. O Não Verás País Nenhum levei 5 anos. Zero levei 10; Cadeiras Proibidas, de 1976, foi mais rápido. Em 2025 completo 60 anos de literatura. Lancei o primeiro Depois do Sol, em 1965. Ao todo são 57 livros. Eu releio muito as minhas anotações e, às vezes, não lembro porque anotei aquilo. Penso, penso e não descubro. Se der encaixo o momento em algum personagem. Escrever é isso, ter muitos momentos indefinidos e indecifráveis como esses.
Você disse que anda ansioso. Por quê?
A Márcia diz que às vezes eu fico dramático, fala para eu parar. Sinto que de uns anos para cá eu fiquei ansioso. Meu pai era ferroviário, éramos remediados, humildes, mas como jornalista eu andava por todos os lados, eu sempre me divertia, não era dramático. Fiquei dramático agora no fim da vida. O que me afetou foi quando o médico disse que eu estava diabético. Tive um tio que morreu diabético, foi um drama, tinha que ir à farmácia tomar insulina. Lembrei que o Zelo (José Loureiro) cortou as pernas. Minha vida não mudou nada, só parei de comer doce que adorava, descobri a massa integral. Continuo tomando meu vinho com a Márcia e com a minha filha Maria Rita. Quando eu percebi que a doença hoje é outra coisa eu me acalmei.
E de onde vem a ansiedade?
Um exemplo: como o pessoal do Sesc gosta muito de mim, me convidam para tudo, e eu vou. Fui com a Márcia na inauguração da maior sede do Sesc no Interior do Brasil, em Franca, imensa, bonita. O Sesc é o nosso Ministério da Cultura. A saída foi do Sesc 14 Bis, em um ônibus ótimo. Na volta atrasamos, a viagem é longa e eu sabia que o Sesc fechava às 22 horas. Aí já fiquei ansioso pensando que chegaríamos, todos iriam embora e eu ficaria sozinho com a Márcia, que ia pegar o celular para chamar o táxi e seríamos assaltados. Claro que nada disso aconteceu, havia quatro pessoas nos esperando para levar para casa.
E não toma nada para a ansiedade?
O geriatra, agora consulto um, e estou gostando, queria que eu tomasse, mas não quis. Estou mudando de ideia. Sou dependente mesmo de Engov, caio morto de sono. Já falei com quatro médicos e eles não têm uma explicação.
Lançar um livro ainda assusta?
Fiquei nervoso com todos, isso não passa, nem ir para o palco, até eu começar. Quando a Fernanda Montenegro foi eleita na Academia, e ela é fantástica, parece igual a gente, perguntei se ainda tem um pouco de nervosismo, ansiedade, antes de entrar no palco. Ela disse que tem que ter, que no dia em que entrou calma foi um fracasso. Faz parte. Lembro de falar para cerca de 7 mil pessoas numa tenda de circo da Jornada de Passo Fundo, cada coisa boa que se fez nesse Brasil e quantas pessoas interessantes eu conhecei. Eu me sinto privilegiado por esse convívio.
Dizem que, no envelhecer, propósito e legado são importantes. O que acha?
Eu não acredito muito em mim, mas sinto isso por Não Verás Pais Nenhum e por Zero. Esse segundo foi lançado em 1989 e continua vendendo. Não houve outro livro dessa forma sobre meio ambiente, continua atual. Eu sinto que alguma coisa estou deixando para as novas gerações.
E na política?
Minha geração foi para a rua durante a ditadura. Nós começamos a falar nos anos 1970 sobre o que estava acontecendo, torturas, prisões. Eu, Antônio Torres, João Antônio, Ivan Ângelo, Moacyr Sclyar, Antônio Houaiss, Wander Piroli... Muitos falaram que nós éramos vaidosos, que queríamos aparecer, não entenderam que era outra coisa. Quando a gente ia, era para falar de política e não de literatura. Eu era editor do Jornal Última Hora e depois fui da Claudia. Eu lia as notícias proibidas o tempo inteiro, a gente dizia que tinha, sim, uma ditadura. E foi assim durante anos.
Como tudo começou?
Em 1975, aconteceu no Teatro Casagrande, no Rio de Janeiro, uma semana inteira de discussão sobre censura. Em 1975, até tentaram fechar o teatro, mas não conseguiram. O teatro tornou-se um ponto importante para debates a favor da democracia. Nós discutíamos censura, proibição, e os policiais todos na primeira fila. Havia uns 500 jovens, virou uma bagunça, eles gritavam, nós gritávamos. Perguntavam se tinha tortura e nós dizíamos que sim - nós recebíamos as cartas das prisões. Depois de 15 dias fomos chamados na cidade de Campos (RJ), davam passagem, comida e estadia. Fomos, mesmo sem cachê, fomos contando a história que não poderia ser contada de outro jeito. E nós percebemos isso depois porque nem sabíamos que estávamos fazendo isso. Depois fomos para Cuba, em 1978, com Chico Buarque, Antônio Calado, Wagner Carelli.
Quando teve essa consciência de contar a história não oficial?
Acho que foi no final do encontro no Peru, com exilados. Veio uma mulher, pegou no meu braço e quis saber em que comando eu tinha lutado, em que grupo. Eu disse que, com armas, em nenhum. Ela ficou impressionada e disse que não tinha um erro no meu livro, que estava tudo lá como aconteceu e que só eles sabiam. Eu revelei que quando trabalhava na Abril, no Dedoc (arquivo jornalístico), passavam centenas de cartas vindas da prisão que iam direto para a imprensa na Europa e nos Estados Unidos. No Zero entrou tudo isso. Nossa arma era a escrita e a fala.
O que achou de ‘Ainda Estou Aqui’?
Há muitos, mas muitos anos, não víamos filas e aglomeração de tal porte para ver um filme brasileiro que não é comediazinha vulgar, malandragens, musicais medíocres. Ver um filme, em liberdade, dentro de um período democrático, saber que tudo é verdadeiro, um dos capítulos amargos da ditadura militar, mas que ainda está na alma de muitos políticos, é um momento duro. E todos ali estavam sentindo a reação de ser brasileiro neste momento. Há um ar de contentamento. Ver o que foi proibido por longos anos.
Foi difícil sair de Araraquara?
Minha mãe dizia ‘filho, fica, você entra no Banco do Brasil, na Caixa Econômica, na ferrovia, você precisa de segurança’. Minha mãe era muito insegura, perdeu a mãe aos 13 anos e ficou cuidando dos irmãos. A vida inteira ela perguntava ao meu pai: ‘Totó, a gente não vai perder a casa?’. Isso me persegue até hoje e passou um pouco para mim. A preocupação dela era o empréstimo feito pelo meu pai com a Caixa Econômica, que deu a casa como garantia. Meu pai, Antônio Maria Brandão, me levou na estação ferroviária no dia 21 de março de 1957 e perguntou: ‘Meu filho, você quer emprego ou trabalho?’. Eu falei que era tudo igual e ele disse que não: ‘Emprego você ganha dinheiro, paga as dívidas, comida, casa etc. etc. Trabalho é tudo isso mais um sonho na frente’. Ele lia demais.
Quando sentiu que era um bom escritor?
Foi acontecendo, nunca acreditei muito em mim, até recente. Senti quando Zero foi publicado na Itália e depois veio para o Brasil e vendeu muito, com ótimas críticas. O livro que eu mais gosto nunca aconteceu, Dentes ao Sol. Acho que foi um grande fracasso porque foi lançado logo depois do Zero, e não ligaram para ele.
Por que gosta tanto?
Eu queria escrever o meu Encontro Marcado (como o Fernando Sabino). O personagem era do meu grupo. Víamos todos os filmes ligados à Cinemateca de SP, líamos críticas, chegavam o Diário da Manhã e o Diário Carioca na biblioteca. Zé Celso Martinez, Luiz Roberto Salinas Fortes, tradutor do Sartre, e Sydney Sanches, que foi presidente do STF, faziam parte.
E o que aconteceu?
Todos saíram, não aguentávamos ficar ali, seguir o destino de namorar, noivar, casar e ter filhos. Ele ficou, teve medo. No início, quando voltávamos, ele participava dos encontros no bar do Hotel Municipal, depois se afastou, não vinha para a nossa mesa. Um dia olhamos e ele estava do outro lado da rua escondido, olhando de longe. Fomos chamá-lo para a mesa, mas ele disse que não tinha mais o que conversar com a gente, que só sabia as fofocas locais e eu disse que era aquilo que queríamos saber. Ele não foi. Meses depois tentou se suicidar e se atirou no trilho do trem. Errou e não morreu. Foi pior: ficou louco. Mas todas as vezes em que íamos visitá-lo, tínhamos a certeza de que não estava louco. Estava fingindo para não ficar louco.
E dessa turma, quantos estão vivos?
Só sobramos eu e um amigo. Ele está com 90, mas não sai mais de casa. Nunca viajou com medo de avião, está fechado no apartamento, cheio de medo e morrendo aos poucos. Quando ele não me manda e-mail fico preocupado. De vez em quando eu ligo para saber se está vivo. Escreve poesias.
E como está sendo Antonia em sua vida?
Convivo muito, minha filha Rita mora há duas quadras daqui, trabalha no mesmo escritório que a Márcia e ela fica aqui. A casa foi arrumada para ela. Não sai daqui. Está na fase do não. Ela me vê saindo, corre pega a bengala e me traz. Mudou toda a casa.
O que resta de Araraquara?
Tem um quarto com meu nome com uma plaquinha de madeira no Hotel Municipal. Continuo viajando pelo Interior. Tem um grupo de mulheres de Piracicaba que se juntaram para montar a Feira Literária no engenho da cidade que virou Centro Cultural, e eu fui. Na hora das perguntas, uma professora perguntou como eu conseguia fazer tudo do que faço com 88 anos, qual era o segredo para chegar nessa idade. Fácil, eu disse, não morri.
Nesses eventos literários muitos jovens chegam até você, como é o relacionamento?
Sempre foi bom. Às vezes fico irritado com perguntas bobas, mas ainda tenho paciência. Eles não têm culpa, a escola é uma porcaria. Recordo da minha primeira professora, Lourdes Prado, pedia redações de umas gravuras imensas. Mandava toda a turma para a rua e dava cadernetinhas para anotar. Dizia que a inspiração você é quem faz, tem que olhar pelas janelas, conversar.
Esse conselho você continua a seguir, não é?
Sim, tenho muitas cadernetas de anotações, não saio sem elas, tenho várias. Quando entrei na Última Hora, aos 21 anos, no final do ano encontrei o Nelson Rodrigues na redação, às duas da tarde. Ele escrevia as crônicas A Vida Como Ela É. Fiquei olhando e ele perguntou o que eu era. Eu disse que o admirava tanto e perguntei como ele conseguia fazer uma história por dia. Ele disse que é preciso olhar pela janela, mas tem que saber olhar e escrever. A vida inteira fiz isso.
Entrar na Academia Brasileira de Letras mudou algo em sua vida?
A Academia mudou muito também, depois de mim vieram o Gilberto Gil e a Fernanda Montenegro. Acho que te tratam com mais respeito por ser da Academia.
E os livros infantis, qual o retorno?
Nos anos 1970, Vander Piroli revolucionou a narrativa dos livros infantis com O Menino e o Pinto do Menino, enfrentando censura e ditadura, por causa desse ‘pinto’. Na esteira dele publiquei Cães Danados, mais tarde com o título mudado para O Menino que Não Teve Medo do Medo, que no momento enfrenta a censura de professores e pais. No entanto, tenho dois livros que me gratificam e marcaram época: O Menino que Vendia Palavras, Prêmio Jabuti de 2008 como Livro do Ano, e Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos, sobre meu avô paterno, que acabou de ser vendido para o cinema. Adotado pelo colégio Cervantes, não me lembro o ano, provocou uma reviravolta. Os alunos tiveram a ideia de entrevistar os avós sobre as vidas deles. Isso provocou reações em famílias, os netos nada sabiam dos avós e aproximaram-se mais.
Você tem muitos projetos?
Sim, não posso morrer. Tenho um romance para terminar e preciso ficar vivo para ver Antonia crescer. Vendi o Não Verás para dois jovens que estão adaptando para o cinema. André, meu filho, se formou em Engenharia Mecânica, mas virou cineasta e está fazendo um documentário sobre a minha vida. Tem também o meu filho Daniel e os outros netos.
30/01/2025