O NOVO SENADO
O Senado é também a morada do Brasil. A Casa da lei, das leis dos homens. Aquelas leis que as carências sociais, o senso de justiça, o aperfeiçoamento do espírito, o sonho intransigente, os impulsos utópicos ditam em defesa de um humanismo sempre ameaçado, sempre renovado.
Cada lei promulgada neste solo sagrado ganha naturalmente o espaço da pátria, ecoa pelo coração da rua e dos campos, busca com insistência a inspiração popular. Traz em seu bojo uma sanção soberana. Sem a nobre matéria do humano, esvazia-se o reservatório da cidadania, da esperança, da ilusão da unidade nacional.
Bem sei, como todos, que o Senado Federal, onde estamos hoje generosamente alojados, é a cúpula do regime. Aqui se encontra o verdadeiro equilíbrio da Federação. Para aqui conflui a representatividade de cada estado brasileiro. Quem somos, como somos - há que buscar a resposta nesta Casa.
Nenhuma porção da psique brasileira exclui-se deste lugar. Aqui se sentam, em pé de igualdade, todos os brasileiros. Cada estado, com o mesmo número de senadores, é igual às vistas da federação, sempre tão sonhada.
Na condição, pois, de cidadã, de brasileira, de escritora, apresento-me a esta tribuna. Trago-lhes, em nome de todos os acadêmicos, o espírito centenário da Academia Brasileira de Letras, que ora presido.
Uma Academia fundada no nascedouro da República sob os percalços da transição de regime, e que, após superar a marcha do tempo, desemboca hoje no Senado para selar esse encontro histórico.
Senhores Senadores, nascemos em 1897, em dia em que não sei chuvoso, sob a égide da pobreza, do sonho, da juventude. Da inabalável convicção de que o Brasil de então merecia um panteão consagrado à língua, à unidade literária do gênio brasileiro. Do talento criativo do Brasil.
Ao longo das décadas a nossa Academia fortaleceu-se à medida que instituição como o Senado Federal se robustecia.
E como, aliás, imaginar o contrário, conceber um cenário em que a nossa Casa predominasse solitária em meio às ruínas institucionais. Sob a custódia do fracasso da representatividade nacional.
Sempre acreditamos que a identidade cultural que se concentra na Academia, com rara densidade, encontra no augusto Senado da República sua ressonância, e de todos os homens. Afinal somos feitos da mesma argamassa. O Senado e a Academia representam, sem dúvida, o que o Brasil engendrou de mais significativo, enquanto forjava sua trajetória. A história, que guarda os fatos sem pretensão de esquecê-los, não nos perdoaria haver fraudado o desejo popular, o alento que nos foi delegado.
Nesta oportunidade, convém rememorar nossas origens, tecer entre nós as coincidências, buscar analogias, identificar os sonhos partilhados. Decerto somos filhos de interminável enredo nacional, cujo epílogo, sempre postergado, redigiremos juntos. Pois, fora e longe desta edificação, somos todos intransigentes defensores da memória e usuários incondicionais da mesma língua. Desta espúria língua lusa engendrada pela privação, pelo vazio, pelo encantamento, pela subtração do antigo a pretexto do novo, pela ânsia de designar o que ocupa as regiões humanas e forma nosso inesgotável mistério.
SENHORAS E SENHORES SENADORES,
Falamos a mesma língua, tangidos todos pelos mesmos ambíguos e duradouros sentimentos. Portanto, a retórica que no Senado sustentou, alimentou, inflamou as grandes causas brasileiras, sempre encontrou eco linguístico nos diversos centros de criação literária, não estando a salvo naturalmente a Academia. A oratória, de que o Senado sempre se orgulhou, é a arte da incandescência, da palavra ígnea, da flama que se lança ao espaço sem medo, sempre generosa. Como um equilibrista que na corda esticada debruça-se sobre o abismo na tentativa de lhe medir a irresistível fundura.
Essa mesma retórica que, sustentada por tantas mentes privilegiadas desta Casa, revestiu-se de uma imagística oriunda igualmente do profundo substrato brasileiro. Esteve ativamente presente nas horas mais angustiantes da República, quando de seus lances dramáticos. Dessa oratória, ora íntima, seca, ora com eloquência da epopeia, surgiram contudo a palavra de ordem, a predileção pela prudência. Uma matéria que igual se apresentou à Academia Brasileira de Letras, para que juntos, espelho um do outro, fôssemos paladinos das causas que dizem respeito aos interesses da Nação.
Ao celebrar neste dia 15 de abril de 1997 o Centenário da Academia Brasileira de Letras, o Senado Federal, vanguarda e tradição combinadas, incorpora-se à nossa Instituição como um membro vitalício. Sem que se estranhe a Irmandade agora proclamada. Afinal, o Senado esteve sempre presente à vida da Academia. Não só através das eminentes figuras que pertenceram ao mesmo tempo às duas Instituições, como pelo apoio político e cultural que o Senado nunca negou à Academia. Foram aliás esses brasileiros, revestidos de dupla função, que, ao levarem a frase lapidar, pronunciada nesta tribuna com gênio e ritmo narrativo, até a Casa de Machado de Assis terão certamente retomado a sentença de inspiração senatorial, para adicionar-lhe outras versões, emanadas todas da mesma fonte criativa, da mesma substância moral.
A palavra de Rui Barbosa, por exemplo, que tanto norteou a ida do Brasil, a ponto de ecoar agora e sempre nas nossas consciências, emergiu ao mesmo tempo cristalina e poderosa na tribuna do Senado e no pódio da Academia. O genial tribuno, havendo sido Senador e Presidente da nossa Casa, às duas Instituições conferiu ilimitada honra.
Outros Senadores e Acadêmicos, igualmente eméritos e notáveis, enlaçam nossos fados. Aqui despontam com emoção os nomes de João Luís Alves. Roberto Simonsen, Lauro Muller, Octávio Mangabeira, Getúlio Vargas, José Américo de Almeida, Gilberto Amado, Luís Viana Filho, Afonso Arinos. E Darcy Ribeiro, que, com tanto pesar, tão recentemente nos deixou.
Nossa Academia orgulha-se de ser também representada nesta instituição pelo Acadêmico José Sarney, até há bem pouco Presidente de Senado. E, há apenas alguns anos, já membro ilustre da nossa Casa, Presidente da República.
Nossas respectivas memórias exigem, pois, o testemunho desse reconhecimento público. A evocação de fragmentos que bem justificam a viagem nossa a esta Casa, onde sempre estivemos.
O Senado e a Academia chegam ao limiar do novo século laureados por intensa história. À sombra da geografia pátria, epicentro da nossa alma coletiva, a Academia Brasileira de Letras destaca partes de sua biografia e empenha-se em entrelaçá-la com a história mesma do Senado Federal.
Entre o Senado e a Academia há semelhanças. O Senado da República sempre foi ambiente em que se amortizaram os inevitáveis choques provenientes da prática democrática. A Academia, por sua vez, assimilando tantas lições de Aristóteles e da fonte mesma da vida, soube, à perfeição, conciliar no seu seio contrários, antagonismos, discrepâncias políticas e estéticas. Para que imbuídos, os senhores e nós, do espírito das respectivas Instituições, fôssemos, quando há que ser, unicamente Senadores e Acadêmicos. A qualquer custo evitando os expurgos que trazem em si a marca dos regimes autoritários, inimigos da liberdade e da imaginação.
Convém, neste momento, seguirmos rememorando a história. Retomar o fio narrativo de Machado de Assis, quando este evoca visita feita outrora ao Velho Senado, em 1860, quando jovem repórter. Nesta crônica, Machado decide reverenciar o Senado do Império, graças às litografias de Sisson, que lhe surgem ao acaso. Circunscrito ao engenho da arte, e às artimanhas armadas à sua revelia, mergulha ele, sob o prestígio memorialístico dessas gravuras, no passado brasileiro.
E, com o intuito de justificar seu intento, e tratar de ser perdoado por se exceder nos pormenores, ele sentencia: "É vício de memória velha." Quem sabe "cousas idas".
O fato é que nada é tão contemporâneo, para Senadores e Acadêmicos, que seguir o cronista a reconstituir o Senado de outrora, ensejando-nos. por meio do seu poder verbal, tentadora possibilidade de fundir os dois Senados, o do Império, de 1860 e o da República, deste ano da graça de 1997, em um só monumento cívico. Para tanto não fazendo falta dizer que dessas considerações machadianas nasceu um dos mais belos textos da língua nossa. Entre outras razões, porque Machado, com justeza, e fina ironia, aportanos a pujança do Senado, então, e agora, na vida da Nação. E consente ainda que perpetuemos, através do seu gênio, a reverente Instituição e a perspicácia do talento brasileiro.
Os Senadores de Machado, sucedidos pelos Senadores que ora se apresentam nesta Legislatura, continuam ainda hoje presentes nesta Casa, do mesmo modo que o grande escritor, por estranha regência, segue nos presidindo com sua obra. De modo que os atuais Senadores da República construam a memória do futuro, como os Senadores do passado sedimentaram as bases da memória pretérita.
Esta Casa, porém, contrária à do Império, ajustou -se à modernidade democrática. Há muito aboliu o "lápis fatídico" com que o Imperador, consagrando a vitaliciedade dos cargos de Senador, indicava a gosto quem devia ocupar uma cadeira senatorial.
Também nós, na Academia, em obediência ao espírito federativo que preside o Senado, só usamos o lápis para o registro das ocorrências humanas. Sem ânimo de vetar, tão-somente ambicionamos que a perenidade dos homens, e das coisas, se façam sob o regime da arte, da reflexão, dos méritos pessoais.
Mas são tempos aqueles que deram fundamento às nossas respectivas histórias. E confirmam que trazemos na alma, e na língua, os traços determinados pela nossa civilização.
Esta civilização que, emergindo de tantas e múltiplas heranças, amalgamou etnias, conceitos, sonhos, ilusões e imaginários. E que, ao olhar para trás, pode bem examinar o predomínio em nós do engenho da invenção. Da capacidade de instaurar, a partir mesmo do universo da carência, princípios que asseguram fé no futuro. A rara habilidade de regenerar os estados humanos que a realidade, tão dramática, teima em golpear.
O Brasil, que o Senado esplendidamente representa, e que a Academia secunda e custodia. é um País que, a despeito de exames categóricos e radicais que lhe apliquem, não aceita a dissolução de suas notáveis matrizes, respaldos do seu temperamento social.
Sobre esta superfície brasileira, que não se desmembrou, contrário à história ocorrida à América Latina, se dá uma civilização que, embora seus desumanos embargos, pretéritos e contemporâneos, suas clamorosas injustiças, deve ser examinada, exaltada.
Neste País operou-se o milagre da língua. Soubemos preservar na integridade o estado da língua, precursor do estado do direito. Sem esta língua, não se habilitaria o homem a alçar a alma para o alto e tecer as quimeras. A língua portuguesa, tão maltratada neste Brasil contemporâneo e fugaz, é o maior legado da Nação, e na intransigente defesa de seu uso, pleno e fecundo, deve o Senado Federal, com sua autoridade de Casa Maior do Legislativo, bater-se. A globalização do mundo, como quer que se faça, não deve extrair porções relevantes da identidade coletiva. Não pode lesar a soberania da língua. Roubar-lhe o fulgor, o portentoso brilho.
A Academia Brasileira de Letras, ciente do peso histórico desse encontro, como guardiã do idioma português, reassume, nesta tribuna, o compromisso contraído há cem anos de proteger a língua lusa. A língua do Brasil. A língua do Senado. A língua dos direitos humanos. A língua do amor e dos sentidos secretos. A língua que discute Deus. A língua que constrói o edifício da arte. A língua que, associada à ilusão, embrenha-se pelo futuro. A língua das crianças, dos anciãos, dos que se encontram nesta sala e fora dela. A língua dos ancestrais. A língua sem a qual deixaremos de existir como Nação. Para sermos simples tarifa, prime rate, déficit público, orçamento, e o mais que a economia toma como epicentro do homem, como primado da razão.
Esta sessão no Senado da República é uma festa cívica para a Academia Brasileira de Letras, para a totalidade de seus membros. E permitam que eu aqui destaque a presença de alguns dos ilustres acadêmicos neste augusto plenário: José Sarney, Eduardo Portella. Arnaldo Niskier. Marcos Vinicius Vilaça, Carlos Nejar. Oscar Dias Corrêa. Cândido Mendes de Almeida. Dias Gomes, Ivo Pitanguy, Alberto Venâncio Filho, Tarcísio Padilha.
Um momento, sim, de raro júbilo para os cultores da língua, para os cúmplices do livro e da palavra. Hóspedes do Senado Federal, nós, Acadêmicos, agradecemos, comovidos, ao Presidente do Senado, Senador Antônio Carlos Magalhães, ao Senador Joel de Hollanda, aos Membros da Mesa, aos demais Senadores desta Casa Maior, às autoridades e amigos a homenagem que prestam ao I Centenário da Academia Brasileira de Letras.
Estou certa de que semelhante iniciativa pertence de fato ao Brasil. Há cem anos nossa Instituição integra-se ao imaginário brasileiro, fala em seu nome, registra-lhe a memória, seus feitos, e abençoa o transcurso da arte e da língua.
Muito obrigada