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Nobre viajante

NOBRE VIAJANTE

Tão logo nascem, os homens fazem perguntas. Questionam a exata medida humana, o destino que os aguarda na terra. Indagam se é forçoso ter uma língua e uma pátria irrenunciável. Se é cabível romper o caos da realidade para engendrar sucessivas utopias.

Decerto fizeste essas mesmas indagações quando descobriste as múltiplas dimensões do sonho humano, quando te tornaste ardoroso adepto da causa do homem, quando te convenceste do poderoso ser brasileiro que te habitava. Desde muito cedo havia em ti sobejas razões para crer em um destino individual que se confundia com a história da pátria.

Tanto assim que, por onde ias, levavas cinzelado no corpo a geografia do Brasil. Risonho, e com afinco, viajavas pelo coração deste país, elegendo-o como pouso, reduto definitivo da tua imaginação. Através do teu imbatível espírito como que desfilavam cenários de um país que ias soberbamente batizando com as palavras provindas da tua sôfrega paixão, de teu lúcido engenho criador. Aquelas palavras faustosas. forjadas a ferro e fogo, que em teus livros expressavam o ideário da esperança, da revelação intelectual. Matéria viva e original com que teceste a grandeza de um país chamado Brasil.

Raros amaram tanto este país como tua alma libertária. Poucos mereceram o sentimento aceso em nós de uma imortalidade que te é concedida, hoje e sempre, por força do teu gênio. Por isso, Darcy Ribeiro, como disfarçar, neste mundo, esta tristeza de quem se exila, de quem perde porções da terra, de modo a que não te sintas culpado por nos haver deixado tão cedo?

Como comportarmo-nos para que os nossos protestos pela tua partida não te soem injustos, uma vez que eras livre para ir em busca de outras utopias, já que as nossas tardaram tanto em se concretizar. Quem sabe disseste para ti mesmo que já nada mais devias ao Brasil. Tua alma podia caminhar livre agora pois tua dívida de brasileiro genial fora mil vezes quitada. A nós, restando então a condição de devedores, o desconsolo de prantear tua jubilosa memória. De afirmar nas noites do futuro que o fracasso de cada um dos teus sonhos, traduz-se em nós como um inesgotável legado.

Ah, Darcy, o Brasil não estava preparado para perder-te.

Não estávamos prontos para viver esta dor. Nada parece assegurar-nos, neste instante, que a imaginação brasileira, que tão bem encarnaste com tua fabulação, com tua índole inaugural, continua ao nosso alcance, disposta de novo a traduzir a nossa condição nacional.

Talvez sorris agora frente à missão que me cabe de fazer-te o elogio. Um elogio que não precisavas ouvir para certificar-se do meu desacerto com as palavras. Faladas ou escritas, elas desfalecem nesse empenho. Pois tu és maior que a glória que, hoje cristalizada, te garantimos eterna. Descanse, imperador brasileiro, senhor dos atributos inerentes a esta nossa civilização tropical - pois tua amiga, voz emprestada de milhões de brasileiros, proclama que aqui repousa um homem que se bateu pelas utopias dos poetas, dos artistas, dos cidadãos livres.

Estou tentada a dizer-te quantas vezes nos fizeste chorar por um Brasil que ainda não tínhamos, por um Brasil que teu ânimo iracundo enxergava com a prodigiosa visão do futuro. Convocava-nos a erigi-Io com mãos oriundas todas de uma genealogia esplendidamente espúria, de irremissível mestiçagem.

De uma genealogia que desde os primórdios rebelara-se contra os expurgas étnicos, estéticos, utópicos. Há muito começáramos a construir uma nação com o sangue e o sonho de todos os homens.

Quantas vezes nos falaste, como mestre e criador, que devíamos redefinir o Brasil, exercer o direito de escrutinar a nossa psiquê, compreender de que matéria de vida forjara-se a alma brasileira, inaugurar metáforas. Para que entre tantos objetivos, valorizássemos a coragem com que nos lançamos à ilusão, esse irresistível ingrediente da realidade. Buscássemos aceitar, como conquista civilizatória, as alegorias brasileiras, o pacto com formas novas do tempo, a cumplicidade profunda com as culturas autóctones, populares e eruditas, indissolúveis entre si.

Advertiste-nos, sim, de uma certa pátria falsa erigida sobre certas matrizes, ao preço do sacrifício secular de seu povo. Proclamaste tua refulgente ira contra as iniqüidades, moedas do cotidiano. Com teu sentido épico, defendeste as crianças, os índios, as mulheres, na pretensão absurda e maravilhosa de restaurar-Ihes a dignidade.

Darcy, nobre navegante, tua ausência decerto será breve. O tempo apenas de trazer-nos de volta a sombra do riso e do protesto, o dilúvio das idéias, aquelas velas içadas pela tua imaginação.

Nós nos despedimos por ora com a certeza de que a tua morte envelhece o nosso coração. Dá-nos a noção de ser o Brasil maior do que a nossa capacidade de sonhá-lo. Um Brasil que nos ofertou um homem único e irrepetível como Darcy.

Repouse, agora, em cada um de nós para sempre. Bem sabemos que tua existência apenas começou. 

Acadêmico relacionado : 
Nélida Piñon