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A medida de todas as coisas

Em 18 de dezembro de 1997, às 17 horas, no Salão Nobre do Petit Trianon. sede da Academia, a Acadêmica Nélida Pinõn encerrou sua gestão como Presidente da Academia Brasileira de Letras, no ano do seu I Centenário.

A MEDIDA DE TODAS AS COISAS

Chego ao final do meu mandato. Recorro à mirada retrospectiva para examinar a intensa presidência deste Centenário. Na expectativa que a memória, guardiã eterna das ocorrências humanas, apresente seu relatório final. A memória esquiva-se à tarefa, não aceita evocações que sistematizem a história, empobreçam o fluxo das emoções. Insinua ser prematuro avaliar um Centenário que sensibilizou Acadêmicos, familiares, a comunidade brasileira. Mais vale aguardar a decantação dos dias.

Posso, contudo, confessar que exercer a Presidência da Academia Brasileira de Letras, no ano do seu I Centenário, por delegação dos Senhores Acadêmicos, muito me honrou.

Constituiu uma experiência fecunda a que ainda não sei dar nome, repartir lucidamente com os demais.

Mas foi através dessa experiência, sob o peso de ilimitada responsabilidade, que senti de perto o arfar da língua portuguesa, do imaginário popular, do espesso enredo coletivo. Da realidade enfim que me cobrava simultaneamente a reverência ao passado e a atenção aos ruídos sôfregos do presente.

Uma experiência, sem dúvida, solitária, difícil, embora multiplicadora de sonhos.

Uma aventura que atravessou o tempo e a história, enquanto propiciou-me entender melhor um país que resiste a ser decifrado, não cede aos visitantes as chaves dos seus enigmas. Uma viagem simbólica que, a pretexto de conduzir-me a um presumível centro, ensejou-me contemplar, paisagens duradouras, seres que acenavam à passagem do trem da história, sempre apressado.

Vivi, ao largo desses doze meses, excluindo os cinco meses da presidência em exercício, uma aventura propícia a alargar o espírito. Cheia de riscos, de decisões delicadas, suscetíveis todas de afetar a honra da nossa Instituição. Era como devesse conceber uma narrativa diariamente afetada pela riqueza dos conceitos, pelo desafio novo, pelo rigor da tradição. Vergada sempre pela multiplicidade de versões que emanavam de cada episódio coletivo.

Vivi o dilema de oscilar entre o clássico e o moderno. De obedecer ao dever de dessacralizar formas que já não resistem às urgências de uma sociedade democrática. De ajudar a forjar uma linguagem que sirva ao racional e às forças da ilusão, que equilibre a ambigüidade do mundo. Enquanto ampliava formas de convívio entre nós, Acadêmicos, e junto à sociedade brasileira.

Esta Presidência aperfeiçoou em mim o diálogo entre culturas antagônicas. A viva consciência de que a arte de um país, sufragada pelo escritor e pelos que personificam o arcabouço da criação, aloja-se essencialmente na cultura.

Nesta cultura onde está a medida de todas as coisas. Onde residem os traços imperecíveis da nossa identidade nacional.

É com reverência e orgulho que incorporo esta preciosa bagagem à minha biografia. Desta Academia Brasileira de Letras ganhei um saber que atrelo hoje à minha memória. Sobre os seus fragmentos incide a luz de um futuro reflexivo que certamente perturba, mas comove nossa trêmula humanidade.

O Brasil federativo esteve sempre presente às celebrações do I Centenário. Os brasileiros nunca estiveram alheios à sorte desta grande Instituição. A Academia Brasileira de Letras faz parte de seus acervos individuais e coletivos.

Pelas frestas dos dias, tive o privilégio de dar as boas-vindas à legião dos que nos visitaram. Traziam eles flores, quimeras, a esperança depositada nos feitos humanos. Discreta, mas certeira. Toda delicada, essa esperança assemelha-se a um véu transparente que envolve a cabeça, confundindo-se com os cabelos esvoaçados.

O cidadão que aqui vinha participar dos nossos eventos cumpria um roteiro de cidadania. Atendia à sua demanda de inteligência. Fazia-nos ver, por gesto fortuito, o quanto a carência cultural de uma nação perturba a vida do indivíduo. Reduz-lhe a dignidade social, a auto-estima. Uma e outra necessitando ser saciada.

No meu discurso de posse, em dezembro de 1996, preguei a urgência de repartir com o Brasil o patrimônio desta Instituição. Tentando cumprir a palavra empenhada, implantamos as visitas guiadas, com a participação de atores e músicos que através do canto e da palavra contam a história da Academia Brasileira de Letras. Estreitamos laços com as academias federativas, por meio de exposições públicas de seus preciosos acervos.

Inauguramos ciclo de palestras com escritores e personalidades internacionais, vindas ao Brasil com o único propósito de festejar o nosso Centenário, e sem ônus para a Academia. Promovemos um brilhante ciclo de conferências em que os ilustres Acadêmicos, discorrendo sobre os cem anos da Casa, evocaram os mestres que enriqueceram nossa Instituição.

Alegramo-nos com os saraus e os concertos apresentados em cenários perfeitos. Publicamos o livro Academia Brasileira de Letras - 100 Anos, e lançamos recentemente o CD-ROM ABL - Centenário 1997.

Outros grandes projetos foram realizados. A implantação do Centro de Memória no ano do l Centenário é um feito histórico. Representou o extraordinário esforço de adequar o espaço às exigências deste novo Centro em menos de nove meses. Outra vez a aquisição de equipamento e mobiliários modernos não pesou aos cofres da Academia. E, para dar-lhes a medida do nosso empenho memorialístico, já digitamos as Atas Acadêmicas de 1897 até 1970. E operando agora na Internet, já dispomos do que se convenciona chamar, em inglês, de home page.

Começamos a informatizar a nossa Biblioteca. E, ontem mesmo, por meio de um comodato estabelecido com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, trasladamos para a Academia Brasileira de Letras os valiosos móveis de Machado de Assis.

Estamos concluindo minucioso inventário de nossos bens mobiliários, a serviço do Museu da Academia. Publicamos o livro Primeiras Notícias da Academia Brasileira de Letras, de Lúcio de Mendonça. Atualizamos e publicamos o Anuário da ABL. Lançamos a Medalha do 1 º Centenário. Inauguramos o marco comemorativo que homenageia o nosso grande Presidente Athayde. Celebramos o selo comemorativo emitido pelos Correios e Telégrafos, a Medalha cunhada pelo Clube da Medalha, os três grandes prêmios da Academia. Obtivemos a concordância do Dr. José Ermírio de Moraes para elevar o Prêmio Ermírio de Moraes ao patamar de R$ 75.000, tornando-o talvez o maior prêmio do país.

Demos destino condigno a exemplares de nossas publicações, doando-os à Biblioteca Nacional e às bibliotecas do Estado. E, graças à Editora Ática, por meio de um estande que celebrava nosso Centenário, estivemos presentes na Bienal do Livro, marco da cultura livresca do Brasil.

Outras iniciativas mereceriam registro. Forçoso, porém, e destacar a Semana do Centenário, que se abriu com um Concerto Comemorativo no Teatro Municipal. Seguido de jantar na casa do Acadêmico Roberto Marinho, de Missa no Mosteiro de São Bento, oficiada pelo Acadêmico Dom Lucas Moreira Neves, Cardeal Primaz da Bahia. E de uma Sessão Solene que contou, no dia 20 de julho, com a participação do Presidente da República do Brasil, do Primeiro-Ministro de Portugal, do Presidente da Xunta de Galícia, dos sete Ministros das Relações Exteriores dos sete países de língua portuguesa, de acadêmicos estrangeiros, de intelectuais, autoridades, e de numeroso público. Um extraordinário esforço político e cultural para rastrear, nessa sessão, a genealogia da língua portuguesa, a partir do galaico-português, passando por Portugal, até chegar aos demais países, incluindo o Brasil, toda ali representada.

Outras celebrações e iniciativas caberia realçar. Limito-me a destacar o zelo extremado desta Presidência com a administração dos bens patrimoniais, econômicos e financeiros desta Academia. Orgulho-me de haver aportado para o seu erário, sob forma de patrocínio, quase 800 mil reais (à época equivalia a 800 mil dólares). Tive todas as minhas contas aprovadas sem qualquer ressalva. Aliás, quando da apresentação do Orçamento do Centenário, que não tinha limites formais, de responsabilidade exclusiva da Presidente, recebeu ele imediata aprovação do plenário. E, mais que isso, mereceu louvores espontâneos de todos os acadêmicos presentes. O Acadêmico Lêdo Ivo encaminhou-me o melhor elogio. De forma sutil e gentil, acusou a Presidente de avara nos gastos do Centenário. Outra informação: não toquei um só centavo das aplicações financeiras da Academia. Deixo esta Casa, segundo nosso respeitável auditor oficial, com surpreendente e elevado superávit.

Assim, queridos amigos, autorizo-me retomar ao lar com o sentimento do dever cumprido. Tudo fiz com amor, sob o impulso de severo sentimento de honra. Honra é um apanágio moral, diria mesmo superior às minhas reivindicações estéticas de escritora.

Respeitei, assim, Machado de Assis, nosso primeiro presidente. Tornei-me digna dos Presidentes Austregésilo de Athayde, Josué Montello e Antônio Houaiss, que me precederam com brilho neste posto tão difícil. Serei agora sucedida pelo Acadêmico Arnaldo Niskier, e esta sucessão me reconforta. Em suas mãos não temo o destino da Academia, Brasileira de Letras, em especial do Centro de Memória, que se iniciou nesta minha gestão.

O novo presidente, Arnaldo Niskier, é um educador associado aos grandes temas nacionais. Seu espírito inquieto promove ação, dinamismo. Sua vocação mobiliza a realidade, não teme obstáculos. Desejo-lhe, leal companheiro que foi da minha administração, uma feliz e serena gestão frente à Academia Brasileira de Letras. Esses votos seguindo para Ruth, sua suave companheira. E a toda a sua Diretoria, composta de grandes Acadêmicos.

Agradeço, comovida, aos membros da Diretoria, que nunca me faltaram nesse período tão fecundo. E ainda aos senhores Acadêmicos que confiaram o destino da Casa e do Centenário à minha pessoa, sem qualquer reserva. Com que generosidade eles me aconselharam sempre que busquei suas palavras sábias.

Agradeço aos funcionários desta Casa, inexcedíveis em seus esforços de trazer luz e brilho à nossa Instituição. E, em especial, agradeço àqueles que patrocinaram nossos sonhos. Graças a eles, esses sonhos ingressaram no cotidiano dos homens.

Agradeço à minha mãe, à família, aos amigos, a infinita paciência. Não tive neste período vida privada. Agradeço às esposas dos senhores Acadêmicos, que tanto me estimularam neste ritual de passagem. E ainda aos brasileiros que confiaram na nossa Instituição.

Agradeço à língua lusa a paixão que me inspira sem esmorecimento. E aos escritores brasileiros sua irrenunciável fidelidade ao texto.

Até breve, queridos amigos. Onde estiver, servirei sempre à Casa de Machado de Assis. À memória brasileira. Ao meu país.

Acadêmico relacionado : 
Nélida Piñon