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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Herberto Sales

Senhor José Cândido de Carvalho,

A história que aqui vou contar, sem recorrer, como de outras vezes tenho feito, aos arranjos da ficção, essa forma de mentira em que acreditamos, e por nela acreditarmos passa a ser a nossa verdade, a história que aqui vou contar, meu velho e fraterno amigo, vós a conheceis tão bem quanto eu, pois dela sois a personagem principal, e eu o principal comparsa. E, talvez por ser em tudo verdadeira, possa a muitos parecer inventada, tais as circunstâncias curiosas que a envolvem, num suceder de situações inesperadas, que no entanto se ajustam no seu desenrolar, como capítulos previamente elaborados em função da velha regra do começo, meio e fim. Em suma: uma história, mas uma história escrita por si mesma, composta de fatos que se encadearam ao longo de nossas vidas e da antiga amizade que nos une há vinte anos. Vós sabeis de cor e salteado. Hoje, porém, quando a vossa carreira de escritor culmina nas galas acadêmicas, com que tanto sonhastes como candidato, e com que eu tanto sonhei como vosso eleitor, quero relembrar em vossa companhia essa velha história, que é também do vosso maior livro.

Certamente haveis de estar lembrado de quando ouvi falar pela primeira vez em vosso nome, não é verdade? Eu morava ainda em minha terra natal, Andaraí, no interior da Bahia, no velho sobradão onde mais tarde iria escrever Cascalho. Meu pai, que em vida tanto amou os livros, costumava ler todas as noites, em sua repousante cadeira de lona, armada ao lado da mesa de jantar na grande sala rodeada de janelas. Era um leitor exigente. Às vezes eu lhe perguntava se gostara do livro que acabara de ler, não raro um sucesso do momento, festejado nas colunas do jornal literário Dom Casmurro, que episodicamente chegava a Andaraí. E ele, para minha surpresa, muitas vezes respondia, num juízo sumário:
 
– Uma pinoia.

Era a sua expressão habitual para manifestar o desagrado de uma leitura.

Certa noite, porém, eu o surpreendi lendo atentamente uma pequena brochura de capa amarela, que meu irmão Fernando, tão amante dos livros quanto ele, recebera pelo serviço de reembolso postal, expediente de que nos valíamos para adquirir livros, na pequena cidade deserta de livrarias. Por fim, erguendo-se da sua cadeira de lona, e já a caminho do quarto, vendo-me a um canto da sala, meu pai me disse, a sacudir lentamente no ar o pequeno volume:

– Muito bom. Muito interessante.

E, ainda sob o calor da impressão daquela leitura que mal terminara, teceu comentários elogiosos ao autor, falou-me do assunto da obra, recomendando-me que não a deixasse de ler. Tomei o livro nas mãos. E meu pai recolheu-se ao quarto, não sem antes me dar o seu habitual “até amanhã”, que eu respondia pedindo-lhe a benção, segundo o costume daqueles tempos, quando os filhos ainda não consideravam uma tolice o deixarem-se abençoar pelos pais.

Sentei-me à mesa da sala de jantar, perto do candeeiro, e li, na capa amarela do livro, o nome do autor: José Cândido de Carvalho. Foi esta a primeira vez que vi o vosso nome, e dele não me iria esquecer pelo tempo afora. O título, longo, do livro me pareceu curioso, em seu apelo salmódico, que um ponto de exclamação enfatizava, como num grito de surda advertência a um pecador: Olha para o céu, Frederico! Abaixo vinha a indicação: “Romance da cana-de-açúcar na Baixada Fluminense.” Uma figura de expressão dramática, de grandes mãos ossudas, ressaltava do amarelo da capa, em traços negros contrastantes, num bico de pena de Santa Rosa, o grande desenhista com quem mais tarde, já no Rio, eu iria conviver, com ele fazendo uma cartilha escolar, de colaboração com o meu inesquecível amigo Marques Rebelo. Assim, antes mesmo de ler o romance, só de ver a angulosa e esquiva figura desenhada por Santa Rosa, travei conhecimento com Frederico, o astuto senhor de engenho que incorporastes à imortal galeria das vossas personagens.

Era tarde, fui dormir, e só no dia seguinte voltaria ao livro para lê-lo. Eu vivia, nessa época, numa remansosa semidisponibilidade, saindo de casa somente às quatro horas da tarde, para dar, na farmácia de meu pai, o meu escasso expediente vespertino, que se alongava até às oito da noite, com um pequeno intervalo para o jantar. Sem ter, praticamente, o que fazer, me refugiava nos livros, com eles enchendo as minhas horas de ócio. Vosso romance foi lido de uma assentada, não tanto pelo tempo de que eu dispunha para o lazer literário, mas pelo interesse apaixonante que a leitura dele me despertou. Não havia dúvida: meu pai acertara mais uma vez, em seu sensível gosto de leitor, no revelar-me vossa bela estreia como romancista. Por muitos dias, o Olha para o CéuFrederico! teve presença obrigatória em nossas conversas sobre livros, foi objeto de nossos louvores e comentários, aos quais vieram juntar-se os de meu irmão Fernando, encantado, como nós, com a pequena mas vigorosa saga dos canaviais fluminenses.

Passaram-se os anos. Nunca mais ouvi falar do vosso nome. Não encontrando explicação para o vosso silêncio, admiti, não sem um inconformado pesar de admirador, que estaríeis destinado a ser essa espécie de viúvo literário, que é o autor de um único livro. Contudo, muitas vezes me perguntava, numa curiosidade feita de velada esperança: “Por onde andará o romancista José Cândido de Carvalho? Estará escrevendo novo romance?”

Um dia, em circunstâncias que são do conhecimento de muitos dos que aqui se encontram, e que o meu saudoso Marques Rebelo relatou no discurso com que me recebeu nesta Casa, deixei minha terra natal e vim para o Rio, com armas e bagagem – ainda que bem fracas fossem essas armas para a luta na grande cidade, e a bagagem se reduzisse a um livro, Cascalho, meu romance de estreia. Fui trabalhar na Empresa Gráfica O Cruzeiro, onde fiz de tudo um pouco, tentando ser jornalista, ao mesmo tempo que acumulei, por vários anos, o cargo de diretor da editora que Freddy Chateaubriand e Accioly Neto fundaram naquele grande empório de revistas. As primeiras férias que tirei, depois de anos ininterruptos de trabalho, pois sempre preferira, numa opção orçamentária, recebê-las em dinheiro, fui passá-las em São Pedro da Aldeia, esse paraíso de cata-ventos e casuarinas, que um dia descobri por acaso, e onde tenho, hoje, um pequeno pedaço de chão, a que me sinto tão preso quanto as mangueiras e laranjeiras que eu e Juraci, minha mulher, nele plantamos com as nossas próprias mãos.

A caminho, eis que me surgem aos olhos, de repente, numa baixada, cobrindo-a de um verde amplo e ondulante, os canaviais de Sampaio Correia. E, alçando-se sobre eles, num perfil estático de sentinela, recortava-se contra o céu a chaminé de uma usina. Então, ante o súbito descortinar daquela paisagem tipicamente fluminense, senti-me devolvido às páginas de vosso romance, do qual, confesso, já não me lembrava muito bem, embora de sua antiga leitura me houvesse ficado a impressão inapagável de um livro que eu lera com encanto e amor. Numa perdoável confusão geográfica, produzida pela semelhança do ambiente, mas, em boa parte, gerada na minha emoção de leitor, feita de uma ternura alvoroçada, disse comigo mesmo: “Ah! foi aqui que José Cândido escreveu o Frederico...”

O ônibus fazia parada obrigatória naquele pequeno burgo canavieiro. Desci apressadamente, e por alguns momentos tentei descobrir, ajudado pela intuição, em qual daquelas casas esparsas havíeis porventura vivido. Fosse como fosse, vossa presença me parecia muito forte ali, conquanto não estivésseis em parte alguma, ou ali estivésseis apenas em espírito, como um pressentido fantasma de vós mesmo. E eu me perguntei, perguntando ao mesmo tempo aos canaviais, que indiferentes e solitários se estendiam até o horizonte: “Por onde andará José Cândido? Que é feito do romancista de "Olha para o céu, Frederico!?"

De retorno ao Rio, busquei em vão pelos sebos um exemplar do vosso romance, na ânsia de relê-lo, de com ele retomar o contato perdido. Queria, em suma, depois de lhe haver conhecido de perto o cenário, reavivar em muitos pontos a impressão que me ficara de sua primeira leitura, feita cerca de 20 anos antes. O exemplar que tínhamos em Andaraí se perdera, com muitos livros, meus e de Fernando, na mudança da família para o Rio. O mais estranho, porém, é que sendo vós o autor de um livro inencontrável, éreis vós próprio inencontrável nesta cidade. Devido à minha condição de diretor de uma editora, vim a conhecer, praticamente, todos os escritores que aqui residiam, e até mesmo os que viviam em outros Estados. Não apenas em função de meu trabalho, mas em encontros de livraria, em conferências, coquetéis, e até em simples apresentações de rua, travei conhecimento com quase todos os chamados Habitantes da Cidade das Letras. Não havia meio, porém, de pôr em vós sequer os olhos. Éreis um desconhecido. Nas rodas literárias, vosso nome era ignorado, ou, quando muito, vagamente referido, ainda que com simpatia. “Acho que ele mora em Niterói”, respondia-me alguém, a uma indagação minha a vosso respeito. E que dizer dos livros de crítica, de estudos literários? Neles não entráveis, neles não figurava o vosso nome, nem mesmo entre os saldos para balanço. Tudo indicava, meu caro amigo, estardes condenado ao mais fatal esquecimento.

Como todos sabem, o diretor de uma editora, além de estar exposto às pressões afetivas, exercidas por amigos que intercedem em favor das pretensões de um autor, tem, não raro, de ceder a certas injunções da própria empresa em que trabalha. Há livros que ele simplesmente edita por haver recebido ordem para fazê-lo, ainda que a ordem venha sob a forma disfarçada de uma sugestão. Comigo aconteceu isto algumas vezes. Afinal, em termos de injunções empresariais – o pedido de um banqueiro, de um político, enfim, de uma pessoa influente –, a edição de um livro nem sempre atende aos interesses específicos de uma editora.

Uma tarde, entrou em minha sala um tipo magro, de ar discreto e tímido, cabelo liso, colado na cabeça. Trazia na mão um pequeno embrulho. Aproximou-se de minha mesa e, informado de quem eu era, disse com precipitação, tentando disfarçar o possível encabulamento: “Sou amigo de Leão Gondim. Outro dia, por acaso, nos encontramos, depois de muito tempo que não nos víamos. Ele gosta muito de um livro meu, que está esgotado há vários anos. Quer reeditá-lo, e pediu-me que viesse falar sobre isto com o senhor.”

Logo me pus a pensar: estava ali um amigo do superintendente de O Cruzeiro, que a seu pedido me viera falar sobre a reedição de uma obra, o que lhe assegurava de antemão um livre trânsito na editora, como por efeito de uma espécie de habeas corpus preventivo. Ora, Leão Gondim, excelente chefe e companheiro de trabalho, espírito aberto às boas ideias da equipe que comandava, não raro se entregava a arrebatamentos de fecundo entusiasmo, com que impulsionava as realizações de sua empresa.

Contudo, seu entusiasmo era muitas vezes recebido com desconfiança e ceticismo pelos companheiros, especialmente quando o objeto do entusiasmo era algum desconhecido da equipe. Eu tinha ali, diante de mim, um desses desconhecidos: um cidadão magro, que eu não sabia quem era, que não me dissera o seu nome, mas que, no entanto, era amigo dele e publicara um livro de que ele gostara muito. Mas, que espécie de livro seria aquele de que Leão Gondim gostara tanto, a ponto de querer – num dos seus assomos de entusiasmo – vê-lo reeditado pela Cruzeiro?

Enquanto eu assim pensava, o desconhecido desfazia o seu embrulho, com uns dedos ágeis e nervosos. Por fim, desdobrado o papel do invólucro – que vejo eu sobre a minha mesa, ao alcance da mão? Oh, foi um instante de pasmo, de perplexidade! Ali estava, ante meus olhos atônitos, um exemplar do Olha para o céu, Frederico!
 
Mal pude balbuciar:

– Mas... você é José Cândido de Carvalho?
Era.
Sim; éreis vós, em pessoa.

No incontido regozijo daquele encontro, que eu já supunha impossível, ergui-me e apertei-vos demoradamente a mão. Falei-vos de minha admiração por vós, contei-vos em que circunstâncias conhecera vosso romance, num revolver de lembranças familiares, em que a figura de meu pai era evocada, tudo isto num tom de súbita intimidade, que me levava a arroubos de um velho amigo. Por fim, na sensação de um triunfo, anunciei-vos que uma semana antes conhecera o ambiente do vosso romance, na minha passagem pelos canaviais de Sampaio Correia. Foi quando, polidamente, corrigistes o meu desculpável equívoco fluminense: o livro se passava em Campos, vossa terra natal. Ao notar meu embaraço, viestes em meu auxílio, convidando-me para conhecer em vossa companhia o verdadeiro cenário da história de Frederico. Aceitei o convite, pois não podia renunciar a tão grande privilégio. De resto, logo compreendestes o que essa visita significaria para mim, em curiosidade, interesse e ternura. E juntos a fizemos mais tarde – vós, o romancista, e eu, vosso admirador.

O mais curioso, Sr. José Cândido de Carvalho, é que, por motivos que compreendemos muito bem, mas que, no entanto, muitas vezes, nos pareceram incompreensíveis, tão espantados nos mostrávamos da fulminante influência deles em nossa amizade, nos tornamos amigos desde o primeiro momento em que nos vimos. Enfim, deve ter sido um caso de amizade à primeira vista, o que prova que a Literatura nem sempre é fator de invejas e despeitos.

Em verdade, meu amigo, vosso livro não precisava de recomendação, pois eu – dependendo, naturalmente, de encontrar-vos – já o havia programado na Coleção Contemporânea, onde reeditei alguns importantes romances brasileiros: Fronteira, de Cornélio Pena, Maleita, de Lúcio Cardoso, Totônio Pacheco, de João Alphonsus, Navios Iluminados, de Ranulfo Prata, entre outros. A eles veio juntar-se o Olha para o céu, Frederico!, reeditado em regime de prioridade: mal deixastes, naquele dia, a minha sala, mandei-o para a composição. E, ainda no mesmo dia, telefonei a Arcindo Madeira, encomendando-lhe a capa, que ele fez sobre uma sugestão minha, sem precisar ler o romance, tal era a minha pressa de ver reposto em circulação o Frederico. Entretanto, a esse meu açodamento editorial de amigo não correspondeu o ritmo de venda do livro, que foi lento. Em verdade, o relançamento do vosso romance passou praticamente despercebido. Não porque ele tivesse envelhecido, e perdido com o tempo o interesse, mas por motivos que eu bem conhecia e não conseguia remover. Como sabeis, na medida em que a empresa implantava eficazmente o sistema de distribuição de O Cruzeiro, sua grande e principal revista, negligenciava inapelavelmente a distribuição dos livros que editava. Contudo, se o reaparecimento de Olha para o céu, Frederico! não se fez com o ruído de um best-seller, serviu, pelo menos, para mostrar que estáveis vivo. Tomando conhecimento de tão lisonjeiro fato, Odylo Costa, filho, vosso antigo admirador, convidou-vos a colaborar no Jornal do Brasil, que então se renovava em espírito e forma, sob a sua lúcida orientação. Por minha vez, convidei-vos a colaborar em A Cigarra, revista que então dirigia. Dessas colaborações, conhecido, pelo menos de mim, o tedioso sentimento de inutilidade que vos causava o ato de escrever, desincumbíeis a contragosto, submetendo-vos a uma espécie de sacrifício brilhante. Pois em verdade, ainda que produzidas com enfado e desinteresse, vossas colaborações faziam as delícias dos leitores. Na redação de A Cigarra não tardastes a formar um pequeno mas fervoroso fã-clube, que, reunido com alvoroço em volta da minha mesa, desfrutava o privilégio de conhecê-las em primeira mão, na leitura que eu delas fazia em voz alta, assim que me chegavam às mãos os originais ansiosamente aguardados. E não sabíamos o que mais admirar nelas: se o inesperado do vosso estilo, de acento tão pessoal, se a vossa prodigiosa inventiva, se o vosso senso mítico de humor, tudo isto, em suma, traduzido numa forma nova de falar de coisas velhas, de explorar com originalidade e graça todo um pequeno mundo provinciano desaparecido, povoado de figuras de um passado morto, que fazíeis reviver em suas fraquezas e ridículos humanos. Não raro, após a leitura eu corria ao telefone para vos dar, num ímpeto de arrebatado mas sincero entusiasmo, minha impressão de leitor: “A crônica está excelente! Quase me esbandalho de rir!”

Era, realmente, sob o rótulo convencional de “crônica” que vossas colaborações apareciam na revista, embora preferísseis chamar-lhes “historinhas”. E historinhas é o que elas são mesmo, tal o substrato anedótico que as animava. Diga-se, porém, que o diminutivo, ditado por vossa modéstia, não lhes retirava a categoria literária de conto curto, ou de miniconto, gênero que iríeis mais tarde valorizar nas páginas burlescas de Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon e Um Ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, já aí aparecendo sob a designação de contados, numa sugestão jurisdicional do vosso território literário.

Em resumo, meu amigo, a reedição do Olha para o céu, Frederico! repôs vosso nome em circulação na imprensa. Transcorridos uns poucos meses do seu reaparecimento fostes admitido, por sugestão minha, na redação de O Cruzeiro. E isto bastou para que apressadamente encerrásseis vossa colaboração no Jornal do Brasil de Odylo, com a boa desculpa de que tínheis sido contratado por outra empresa. A desculpa, porém, não valia para A Cigarra, revista editada por O Cruzeiro. Prevalecendo-me dessa circunstância, continuei a extrair de vós as deliciosas “historinhas”, tranquilizando-vos quanto ao pouco trabalho que iríeis ter com elas. Afinal, A Cigarra saía apenas uma vez por mês.

Na redação de O Cruzeiro fostes chefiar a Seção de Texto, onde, ajudado por excelentes redatores, revíeis a matéria da revista, com a tarefa suplementar de escrever a apresentação de cada número, o que fazíeis em forma de lírico bilhete ao leitor, subscrevendo-o com as vossas iniciais, numa coluna que seria a matriz do vosso futuro “Jornal de J.C.C.”.

Um dia, sem que nunca me houvésseis falado sobre isso, descobri que tínheis dissimuladamente publicado outro livro além do vosso romance de estreia. Era um volume de Literatura Infantil, raridade bibliográfica a que destes o título de Pinóquio em busca de Branca de Neve, e que até hoje teimais em omitir na lista de vossas obras, como omitistes, ao publicá-lo, vosso prenome bíblico, assinando-vos apenas Cândido de Carvalho. Assim encurtado, vosso nome assumia uns ares misteriosos de pseudônimo. Indaguei-vos sobre as razões do disfarce, e me respondestes que havíeis recorrido a ele porque o livro “não valia nada”. Convencido de que exageráveis em vossa modéstia, imediatamente me propus a reeditar o livro, mesmo sem lê-lo. E, ainda que isto pudesse ser uma temeridade editorial, insisti no meu propósito, que afinal se justificava, tal a minha incondicional admiração por vosso talento de escritor. Dois ou três dias depois me trazíeis o único exemplar que vos restava da esgotadíssima edição de Pinóquio em busca de Branca de Neve. Assinamos o contrato para a reedição dele. Já no dia seguinte, porém, me pedíeis de volta o volume, sob a alegação de que pretendíeis fazer algumas alterações no texto. Até hoje, porém, transcorridos mais de quinze anos, e já caduco o contrato, não me devolvestes o livro que eu tanto quis relançar. Não me destes, sequer, o prazer de lê-lo. Fiquei, assim, sem conhecer as aventuras em que metestes, por conta de vossa imaginação, o boneco de pau de Collodi e a companheirinha dos anões dos Irmãos Grimm.

Fosse como fosse, continuáveis autor de um único livro. E se não vos preocupava a expansão bibliográfica, este seu velho amigo, desejoso de ver ampliados vossos domínios literários, não se contentava apenas com haver trazido de volta ao público o Olha para o céu, Frederico! Foi quando, à falta de originais de um novo livro, concordastes, por insistência minha, em supri-la mediante o expediente de uma reunião, em volume, das vossas “historinhas”. Combinamos que elas apareceriam sob a designação de “crônicas”, gênero de boa tradição editorial no Brasil e para o qual havia um público certo. No fundo, temíamos que a designação de “historinhas” pudesse de alguma forma amofinar o volume. Por fim, um belo dia, me entregastes os originais tantas vezes reclamados. Li o título: O coronel e o lobisomem.

– Mas é um título excelente! – exclamei.

E vós me esclarecestes:

– Tirei-o de uma das minhas crônicas para o Jornal do Brasil. Aliás, é a crônica que abrirá o volume.

Assinamos imediatamente o contrato de edição. Entretanto, como as oficinas de O Cruzeiro estavam com uma avassaladora sobrecarga de trabalho, e em fase de instalação de novas máquinas, os originais dormiram em minha gaveta um longo sono de mais de um ano. E o mais curioso é que vós, ao contrário da maioria dos autores em tais circunstâncias, não demonstráveis nenhuma pressa em ver o livro na rua. Uma tarde, porém, entrastes na minha sala para me pedir de volta os originais.

Então, imaginando que com o pedido pretendíeis recorrer à mesma estratégia que havíeis adotado na irremediável evasão de Pinóquio em busca de Branca de Neve, relutei:

Calma, rapaz. Seu livro entrará em composição na próxima semana.

– Não se trata disto – me respondestes.

E procurando tranquilizar-me:

– É que resolvi transformar em romance O coronel e o lobisomem.

E em vossas palavras havia uma tão grande firmeza de decisão criadora, um tão forte apetite de produzir, que não tive como duvidar de que estáveis mesmo disposto a lançar-vos à dura empreitada. Afinal, tínheis todas as condições de levá-la a cabo com êxito.

Devolvidos os originais, retomastes à vossa sala, onde, a partir daquele dia, ou daquela semana, montastes vosso esquema de trabalho, em regime de clandestinidade literária, graças ao qual íeis escrevendo vosso romance na própria redação da revista. Pela manhã, trazíeis de casa uns rabiscados pedaços de papel, que aos poucos ganhavam forma e ordem nas laudas que saíam de vossa máquina, e que depois enchíeis de emendas, para passá-las afinal a um valente datilógrafo, encarregado de rebatê-las tantas vezes quanto se fizesse necessário, pois não raro refazíeis as páginas já rebatidas, numa penosa tarefa em que entravam tesoura e cola, para abrigar os acréscimos que nelas introduzíeis.

A princípio, ainda pudestes conciliar o vosso trabalho literário com as tarefas da rotina jornalística. Mas, a partir de dado momento, e por cerca de dois anos, conquanto pareça inacreditável, não fizestes outra coisa na Seção de Texto de O Cruzeiro senão escrever O coronel e o lobisomem. Os originais da matéria da revista só iam à vossa mesa para neles apordes os hieróglifos de vossa rubrica aprovadora. Afinal, tínheis à vossa disposição excelentes redatores, de vossa inteira confiança, amigos fiéis vossos e vossos cúmplices. Eles vos davam inteira e competente cobertura na seção. Por dever de justiça, citarei aqui os nomes desses vossos abnegados companheiros: Jânio de Freitas, Cipião Martins, Antônio Machado e Décio Vieira Ottoni, este já desaparecido. Enquanto eles mourejavam na matéria jornalística, vós, movido a cafezinho e cigarro de palha, criáveis o mundo mítico do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Aliás, o Azeredo desse nome maior da galeria das personagens do romance brasileiro se deve a uma homenagem que me quisestes prestar, pois sou parente afim, pelo lado materno, dos Azeredo de Campos de Goitacazes.

Um fato bem curioso é que, sendo vosso amigo fraterno e vosso editor, nunca me destes a conhecer uma linha sequer do vosso romance, durante a gestação dele. De resto, e isto me consola, não concedestes esse privilégio a ninguém – salvo, é claro, a Milton Reis, o valente datilógrafo.

Por fim, em certa manhã triunfal, entrastes como um pé de vento em minha sala, de originais em punho. Havíeis terminado o romance. Quis programá-lo imediatamente, embora com sacrifício do prazer e da honra de lê-lo em primeira mão. Foi quando, temente da má distribuição da Cruzeiro, me sondastes quanto à ideia de publicá-lo por intermédio de outra editora, desde que isto não me melindrasse.

– Não há problema – respondi-vos. – Na hipótese de não conseguir outro editor, é só trazer de volta o livro, que a Cruzeiro o editará.

Fizestes, então, uma consulta a José Olympio, mas a “Casa” não tinha como editá-lo antes de um ou dois anos, pois estava com a programação lotada para esse período. Talvez o próprio José Olympio já não se lembre hoje mais disso. Mas aí estais vós, que não me deixais mentir.

Voltastes de novo à minha sala com os originais.

A essa altura, outro grande editor, Ênio Silveira, vindo de São Paulo, promovia no Rio, à frente da Civilização Brasileira, uma verdadeira revolução no mercado livreiro, com uma cobertura nacional de enorme prestígio para as suas modernas e elegantes edições. Pensastes em procurá-lo e eu concordei com a ideia, mas havia um problema irremovível: não vos animáveis e muito menos eu, a ir ao encontro do solicitadíssimo editor, que conhecíamos apenas de nome. Lembrei-me, então, do nosso comum amigo Aurélio Buarque de Holanda, que tinha as melhores ligações com a Civilização Brasileira, sendo, inclusive, editado dela. E ele, prestimoso como sempre, levou a Ênio Silveira, a nosso pedido, os originais de O coronel e o lobisomem.

Durante três meses esperastes por uma resposta. Aurélio procurava acalmar-vos, explicando que a demora se devia ao fato de Ênio encarregar-se pessoalmente da leitura de todos os originais enviados à editora, e estes eram examinados por ordem de chegada. Mesmo que tivésseis bastante prestígio para furar a fila, havia muitos outros livros à frente do vosso, de autores que, já editados pela Civilização, desfrutavam a vantagem de uma natural prioridade. Entretanto, como a espera estava acima das forças de vossa paciência, pedistes a Aurélio que trouxesse de volta os originais e ele assim o fez. De resto, sabíeis que eu vos oferecia na Cruzeiro a certeza da edição imediata do vosso romance, ainda que com os inconvenientes de uma distribuição precária. Sim, meu caro amigo: na Cruzeiro o livro podia ter venda lenta, ser mal distribuído, mas, pelo menos, sairia logo.

E, tanto isto era verdade, que, recebidos os originais enviei-os no mesmo instante para as oficinas, com uma indicação, a lápis vermelho, recomendando urgência. Como me havíeis carregado da revisão final, deixei para lê-lo nas provas de página. E estas me vieram ter às mãos numa sexta-feira, véspera de sábado de carnaval. Levei-as comigo para São Pedro da Aldeia, onde, na calma do meu sítio, em regime de renúncia carnavalesca, teria vagares para ler o vosso livro, revendo-lhe ao mesmo tempo as provas.

Mal iniciei a leitura, fui dominado pela impressão, que a cada passo se confirmava, de que tínheis escrito um grande romance. Os capítulos se sucediam, mantendo-me preso ao desenrolar da ação, que eu deliciado acompanhava, num estado de pleno encantamento. De vez em quando, interrompendo momentaneamente a leitura, para acender um cigarro, eu comentava em voz alta:

– Extraordinário. Extraordinário.

Não raro, ao passar pela sala, minha mulher me surpreendia nesses arrebatamentos do meu solilóquio de leitor. E me perguntava:

– Está gostando tanto assim? – E eu, sem conter o entusiasmo.

– Se estou gostando? José Cândido escreveu uma obra-prima.
 
Sim: uma obra-prima. Foi com a convicta, inabalável certeza de que havíeis escrito uma obra-prima que cheguei à última linha de O coronel e o lobisomem. Então, com o olhar perdido nas amendoeiras e mangueiras do sítio, onde cantavam passarinhos, comecei a rememorar, na solidão daquela paz bucólica, as circunstâncias que vos tinham levado a produzir tão extraordinária obra. Não fora a demora da Cruzeiro em lançar vosso livro de crônicas intitulado O coronel e o lobisomem, cujos originais haviam dormido em minha gaveta o longo sono de mais de um ano, não teríeis escrito vosso genial romance homônimo. Em vez dele, haveríamos de ver hoje por aí, talvez encalhado nas livrarias, apenas um volume de circunstanciais “historinhas”.

De volta ao Rio, cessados os rumores carnavalescos, estava eu à porta do elevador de O Cruzeiro, com as provas embaixo do braço, quando vos aproximastes de mim. Antes de vos apertar a mão, bati-vos uma respeitosa continência. Estranhando meu ar circunspecto, me perguntastes:

– Que é que há?
E eu , sem relaxar a circunspecção:
– José Cândido, você escreveu uma obra-prima.

Ristes, ristes muito, e ristes ainda mais quando eu, com sincera modéstia, acrescentei:

– Não sei se poderei continuar a merecer sua amizade. Sou pequeno demais para ser amigo de um autor que acaba de escrever uma obra-prima.

E vós, redobrando o riso:

– Não diga tolices. Qual obra-prima, qual nada. Você está louco!

Lançado O coronel e o lobisomem, numa tiragem de três mil exemplares, que não tardou a esgotar-se, a melhor crítica do país veio confirmar meu vaticínio: obra-prima. “Obra-prima”, dizia-se ao Norte. “Obra-prima”, dizia-se ao Sul. E por toda parte, na unanimidade opinativa do público, repetia-se o estribilho consagrador: “Obra-prima”.

Um dia, Valdemar Cavalcanti me telefonou perguntando se porventura concordaríeis em fazer uma colaboração diária para O Jornal, em substituição a Antônio Maria, o grande cronista prematuramente desaparecido.

Não vacilei na resposta:

– Colaboração diária? Num jornal? Ora, Valdemar. Colaboração de José Cândido, só se for para um anuário. O homem detesta escrever.

Contudo, vos transmiti o convite. E vós, em pânico, declinastes polidamente dele, como eu de resto esperava.

A essa altura, os dez mil exemplares da segunda edição do coronel iam de vento em popa, malgrado nossa má distribuição. Sabíamos que com uma distribuição mais eficaz ele poderia estar mais longe. Contudo, a nova edição se avizinhava do fim. Já então, porém, os grandes editores andavam no vosso encalço. Ainda outro dia, Arnaldo Giácomo, da Melhoramentos, me confessou que chegara a pensar em vir ao Rio com Francisco Marins e propor-vos um contrato de reedição, quando soube que vós já o tínheis firmado com José Olympio, de resto o editor com que sempre sonhastes, desde a vossa estreia. Então, bafejado pelos bons ventos da “Casa”, vosso romance pegou uma embalagem vertiginosa, chegando em pouco tempo à sua triunfal décima quarta edição.

Na esteira do sucesso de O coronel e o lobisomem publicastes outros livros, em que reunistes uma parte da volumosa e solicitadíssima produção que passastes a divulgar na imprensa, para espanto e surpresa de quem vos conheceu tão inimigo de escrever. Mas isto se explica: é que descobristes, meu velho amigo, que com o prestígio do vosso nome hoje tão famoso, podíeis – com o perdão de tão vulgar palavra – faturar.

Como era natural, com esses livros novos fizestes ressurgir vosso livro mais antigo, o Olha para o céu, Frederico! Destes-me, há poucos dias, um exemplar da quarta edição desse romance por mim tão querido. Vi que lhe havíeis suprimido o subtítulo: “Romance da cana-de-açúcar na Baixada Fluminense.” Suprimistes, também, as dedicatórias que eu conhecia, inclusive a que fizestes à Rua do Aquidabã, curiosa e terna dedicatória ligada à casa em que morastes, nos dias de vossa juventude, em Campos. Em compensação, introduzistes no livro coisa nova: o prefácio intitulado “Um velho amor de 1939”, em que contais a história editorial do vosso romance de estreia. Nessa história, página modelar, escrita com a graça habitual do vosso estilo, nada encontrei, entretanto, que me dissesse respeito. Certamente, ao escrevê-la, esquecestes o pequeno papel que desempenhei na carreira desse livro. Mas isto se compreende: a memória nunca foi o vosso forte. Enfim, não precisa de boa memória quem tem, como vós, para suprir o esquecimento dos fatos do passado, tão extraordinária capacidade para inventar fatos novos: os fatos de vossa imaginação. Em todo o caso, na dedicatória do exemplar que me ofertastes, e que passou a ter uma função de errata, descontados, naturalmente, os exageros de vossa generosidade, escrevestes: “Para Herberto Sales – meu irmão, amigo maior e escritor de eternidades (que saudade do Marcelino!), esta pobre lembrança que você lançou em 1955.”

A nota mais curiosa dessa quarta edição do Frederico, pelo menos para mim, é a fotografia que ela ostenta, e que aliás serviu para a montagem da capa. Nela aparece uma velha usina, já em ruínas, com a vossa simpática figura em primeiro plano. Bastou- me olhar a fotografia para logo reconhecer nela a usina de Sampaio Correia, na mesma paisagem que eu, por equívoco, tomei como a do vosso romance, quando ali passei pela primeira vez, e da qual desapareceram já os canaviais. Quereríeis vós, ao posar para essa foto, prestar uma homenagem ao comovido equívoco do vosso amigo? Ou tudo terá sido mera coincidência?

Sr. José Cândido de Carvalho,

Não precisáveis ter escrito outro livro além de O coronel e o lobisomem para que se vos abrissem de par a par as portas da Academia. Encarregado de saudá-lo em nome dela, aqui fiz o que melhor me competia fazer, como vosso amigo e editor: contar a história de vosso ressurgimento literário e de como chegastes às alturas de O coronel e o lobisomem, história que poucos, muito poucos, talvez apenas três ou quatro amigos nossos conhecessem. Ela aqui termina. Só me resta, agora, dizer-vos:

– Estais em casa. Esta Casa é vossa.

1º/10/1974