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Artigos

  • Embargando cá, embargando lá

    Não tenho completa certeza, mas acredito que a maioria de nós ainda não se esqueceu do julgamento do mensalão, um processo iniciado há aproximadamente dez anos que vinha dando muito o que falar e, superado apenas pela derrota do Botafogo e pelo início da recuperação do São Paulo, deve ter sido o assunto mais comentado na semana passada, pois não é que Seedorf perdeu um pênalti crucial e Murici Ramalho volta a mostrar sua estrela? Sei que alguns de vocês, os que não se esqueceram, pensam que faço chiste, mas não é verdade, pois há também o vastíssimo contingente de nossos patrícios que não entende nada do que está acontecendo. Uma vez ou outra, lá em Itaparica, à porta de sua casa, o hoje finado seu Manuel Joaquim esperava sorridente minha passagem, para me cumprimentar e revelar seu orgulho conterrâneo por ter ouvido falarem em meu nome no rádio, um menino que ele vira nascer, parecia que tinha sido ontem. Ah, muito obrigado, e o que foi que disseram, seu Manuel Joaquim? Bom, isso ele não sabia informar direito, mas o homem tinha falado bastante tempo em mim, uma coisa muito especial mesmo, ele estava seguro de que me tinham elogiado.

  • Atenção à espionagem

    Enganam-se os que acham que, assim como nos faltam natais nevados, ondas havaianas, uma língua mais moderna e tantas outras benesses que a Natureza e a História nos negaram, também somos pobres em episódios de espionagem. Manda a honestidade reconhecer que não temos nenhum James Bond, embora advirta a verdade, irmã da honestidade, que os ingleses também não, ainda mais com aquela estampa de Sean Connery e saindo do mar numa roupa de mergulho que, despida, revela por baixo um smoking impecável. É, não temos, do mesmo jeito que não temos filmes com Jeffrey Hunter, em que ele, armado apenas de um fuzil-metralhadora (que só tinha a vantagem de nunca precisar ser recarregado), tomava sozinho uma ilha do Pacífico, mais cheia de japoneses que a fila do Louvre. Ou Audie Murphy, encarapitado na torre de um tanque Sherman, destroçando oito divisões Panzer da Wehrmacht e tomando de volta a Ucrânia, ou a Polônia, ou ambas, bons tempos.

  • Vocês pensam que é moleza

    Assim como pimenta no uropígio do próximo é refresco (alieno culo piper refrigerium, no sábio dizer de Terêncio, ou Sêneca, ou Juvenal, ou alguém assim — ninguém vai checar), o trabalho alheio parece sempre mais fácil que o nosso. Há muitos e muitos anos, o famoso cronista José Carlos Oliveira, talvez o mais lido do seu tempo, de vez em quando levava a máquina de escrever para o bar. Lá pedia seu drinque e escrevia sua crônica. Um dia, um visitante deslumbrado foi apresentado a ele e comentou, emocionado:

  • Sob nova orientação

    Talvez a tarde amena e clara, que se firmou depois de uns chuvisquinhos matinais, tenha contribuído para a placidez quase silenciosa, então reinante entre os frequentadores do boteco. Nenhuma novidade. O pessoal do cânter, já disposto nas mesas mais próximas da calçada, apreciava, com animação discreta, a passagem de moças e senhoras indo e vindo da praia, “potrancas esplendorosas, cujo baloiçar de ancas sublimes transporta o homem aos píncaros do delírio erótico, ai se eu pudesse dar uma alisadinha em cada uma”, no dizer arrebatado do doutor Amoroso, que não por acaso ostenta este cognome. Em mesas bem próximas, Dick Primavera, diante de um notebook e três celulares, harmonizava, com a desenvoltura costumeira, seus múltiplos afazeres comerciais com o atendimento à extensa rede de admiradoras, sempre em busca de alguns minutos de seu tempo; Coração de Leão descrevia em minúcias seus mais recentes achaques, que incluem quase todas as doenças do catálogo médico que ele sempre consulta; doutor Leo Bom Gogó anunciava que vai puxar dois sambas e uma marchinha no próximo carnaval e ainda dispunha de um dia livre na agenda.

  • Perspectiva histórica

    No domingo passado, andei repisando aqui umas verdades, bem sei que meio cediças, sobre como os contemporâneos dos fatos se enganam quanto às consequências ou a importância daquilo que testemunham. Tem sido sempre assim e as gerações presentes não constituem exceção. Muitos de nós — inclusive eu, é claro — podemos estar chegando a conclusões ou fazendo comentários sobre o mensalão que se revelarão completamente equivocados, aos olhos de nossos pósteros. Ninguém sabe, nem pode saber, o que será relevante no futuro e o que será esquecido.

  • Novas assombrações

    Vocês devem ter lido nos jornais, ou ouvido nos noticiários. A Amazon, cujo assustador objetivo é vender tudo a todo mundo, começou a testar um novo método de entrega expressa, por meio do qual o freguês receberá mercadorias de até pouco mais de dois quilos no prazo de trinta minutos, a partir da encomenda. A entrega poderá ser em qualquer ponto do território coberto pelo sistema, inclusive a sacada de um apartamento ou mesmo, imagino eu, um quarto de dormir. O transporte será tarefa de um drone (que quer dizer “zangão” em inglês, mas ninguém fez a tradução e ficou “drone” mesmo, em português), isto é, uma pequena ou minúscula aeronave sem tripulantes, cujas tecnologias se vêm aperfeiçoando com uma velocidade que torna quase impossível acompanhá-las.

  • Tudo certo com seu santo?

    Acho que quase todo mundo faz alguma coisa para que o ano novo seja propício. Há os que se vestem de branco e lançam oferendas ao mar, os que tomam banhos de descarrego e ainda os que adotam providências para mim sempre meio confusas — enfiar um nhoque na orelha, encher a cueca de sementes de romã, misturar uma nota de cem dólares na salada e comê-la, botar um prato de lentilhas embaixo do travesseiro, não compreendo bem, tento aprender, mas esqueço logo tudo. Entretanto, que eu saiba, são relativamente poucos os que, no início do ano, procuram o alto patrocínio de um santo. E um bom santo padroeiro é mais que meio caminho andado para o contentamento e a prosperidade. Seu esquecimento não diz bem de nossa prudência e revela deplorável desleixo para com as tradições nacionais.

  • O fim do mundo e outras novidades

    Já tive oportunidade de denunciar aqui a aleivosia segundo a qual, quando o mundo acabar, lá na ilha nós só iremos saber uns cinco dias depois. Isto é fruto de inveja e despeito contra a pátria itaparicana. Pelo contrário, a julgar por certas circunstâncias, deveremos estar entre os primeiros a ser informados ou até convidados especiais. Em meio aos nossos inúmeros filósofos, pensadores, visionários e estudiosos de alta escatologia, muitos têm opiniões sólidas sobre o assunto e diversos conhecem datas e pormenores copiosos. O finado Americano, que nunca esteve sóbrio um só instante em toda a vida e morreu com uns noventinha, me disse uma vez que um belo dia o mar ia felver, ia felver, escaldar a ilha toda e, logo em seguida, o resto do mundo. Hélio Bríbria, que não larga a Bíblia e sabe de cor todas as profecias terríveis, fica checando tsunamis, terremotos, erupções e outras catástrofes, lê um trecho da Bíblia que julga apropriado para o evento e, os olhos brilhando, dá umas casquinadazinhas de satisfação. “Hi-hi-hi!” faz ele. “Vocês todos vão se lascar, tá tudo escrito aqui, tá tudo acontecendo!”

  • Almoço com celular

    - Alô! Me chama o Jefferson aí. Ôi, Jefferson, tudo bem? Teu celular só vive ocupado, você gasta tempo demais com ele. Tu tá lembrado da reunião que eu marquei com todo o pessoal de vendas, às quatro horas, não tá? É, eu sei que te falei antes de sair, mas tu sabe que meus negócios são sempre tipo cinto e suspensório; se um não segurar, o outro garante, isso já ensinava o velho desde que eu me entendo. Eu... Segura aí um instante, agora vou ter de interromper, o Gustavo acaba de chegar para o nosso almoço. Gustavão, parece uma eternidade, mas você está ótimo, que prazer! Desculpa que eu não te vi chegar, estou atendendo a um chamado urgente lá do escritório.

  • Arrecadação criativa

    Não sei se é verdade e pode não passar de outra invencionice das que circulam na internet, mas já me contaram mais de uma vez que vem sendo aplicado o golpe da multa do lixo zero. A multa do lixo zero é a que o cidadão do Rio de Janeiro paga, se jogar ou juntar lixo em local não destinado a isso, como ruas e calçadas. O golpe da multa do lixo zero é quando um fiscal corrupto lhe comunica que achou, amassado no chão à porta de sua casa, um lixinho que só pode ser seu, já que se trata de um envelope aberto, com seu nome no endereço. Não adianta negar, a ligação é inequívoca. O golpista então propõe um acerto e, se você não topa molhar a mãozinha dele para os festejos de Momo, a multa completa lhe chega depois, ameaçando-o com todas as penas do inferno. Dá para recorrer, mas isto é também tido como pena do inferno.

  • A ilha está com todos e não abre

    Hoje em dia, tem gente que, não sei qual a razão, não gosta de lembrar-se muito disto, mas quem está por dentro de nossa História sabe que, sem o empenho decisivo dos itaparicanos, o Brasil não teria conquistado sua independência política, não me canso de repetir aqui. Os tempos são muito outros e lá se foi a época em que imperadores e nobres nos visitavam. É fugaz a glória deste mundo e quem hoje cavalga, amanhã pode ser cavalgado, já advertiam os antigos. Não é sem certo amargor que essa situação é vista e receio que a posição majoritária tem sido de descrença e repúdio quanto aos governantes, pelo menos na voz de alguns itaparicanos de destaque.

  • O aluguel do xodó e outros espantos

    Não faz muitos anos, sempre que eu voltava de qualquer estadazinha no exterior, por mais curta que tivesse sido, caía em cima de jornais e revistas brasileiros com uma fome de javali, lamentando sempre não ter estado presente a tal ou qual episódio. Só não lamentei em 64, porque mandaram me prender, acho que em meados do ano, e eu, Deus é grande, desde fevereiro estava, vejam vocês, estudando na Califórnia, com bolsa americana. Eu devia ser um tremendo subversivo safado mesmo, disseminando ideologias exóticas com a maior desfaçatez, no seio da pátria capitalista e ainda por cima às custas dela, sem tocar num miligrama do ouro de Moscou.

  • Soluções radicais

    Parece que todo mundo saiu da cidade no feriadão, de forma que a rua está quase silenciosa, vazia de carros e mesmo de passantes, o desfile feminino é apenas uma sombra do costumeiro e houve quem temesse falta de quórum no boteco. Seus frequentadores mais fiéis, contudo, consideram meio vulgar esse negócio de viajar no feriadão, em vez de ficar, sensatamente, no boteco de todo fim de semana. E, assim, o meio-dia chegou para encontrar a postos praticamente a freguesia habitual completa, inclusive o comandante Borges, sorridente e afável, exibindo um surpreendente bom humor, depois que a bateria de sua moderníssima bicicleta elétrica pifou. Mas o Inimigo detesta a paz e a harmonia e, com suas maquinações diabólicas, está sempre montando armadilhas para atiçar a discórdia. Assim se deu, lamentavelmente, quando o comandante resolveu colaborar com a tradição de cultura da mesa, partilhando algo que tinha aprendido recentemente.

  • O negro e o macaco

    Uma das mais clamorosas — e para mim enervantes — manifestações do atraso da espécie humana é esse negócio de raça. A importância que damos à raça, a ponto de odiar-se, matar-se e morrer-se por causa dela, leva inevitavelmente ao lugar-comum: seria ridícula, se não fosse trágica. É difícil encontrar um assunto sobre o qual se digam tantas besteiras quanto este, sempre ignorando não só evidências antropológicas como dados da própria realidade cotidiana. E é também bastante difícil falar sobre ele ou debatê-lo. Muita gente perde o controle, espuma de raiva e afoga o debate em gritos e denúncias.