Antes de seu mais recente sumiço, no que se acreditou ser um afamado torneio de pôquer internacional em Pilão Arcado, Zecamunista andou conversando muito sobre consultorias.
— Não sei se você já notou — disse ele. — Agora só se fala em consultoria. Alguém recebe ou paga uma bufunfa que não dá para explicar e aí diz que foi por serviços de consultoria. É mole, qualquer um pode dar consultoria e qualquer assunto serve. O consultor não precisa nem saber ler, basta ser bom em cuspe à distância, por exemplo. O sujeito explica à Polícia Federal que depositou cem milhões na conta do compadre roceiro, em paga por serviços de consultoria sobre cuspe à distância. Sempre apreciou esse difícil esporte e pagou a consultoria para melhorar sua marca e atingir um nível internacional. O jornal agora anda cheio dessas coisas, acho que não tem mais nenhuma roubalheira ou lavagem de dinheiro sem consultoria no meio. Era de uma atividade econômica assim que a gente estava precisando aqui na ilha.
— E você acha que uma coisa dessas ia dar certo aqui?
— Não, assim nesses moldes, claro que não, até porque íamos chegar muito atrasados, o campo está todo tomado. E sozinhos não temos força para bancar a ideia que estou tendo aqui, é coisa para a união de todo o Recôncavo.
Seus olhos brilharam, sob a aba do boné com as insígnias do Pacto de Varsóvia estampadas, recebido como herança do falecido companheiro de lutas clandestinas Marcelino Kremlin, que não foi registrado com este sobrenome, mas nunca se soube qual o verdadeiro. Não, disse ele, soterrando a cabeça no boné com decisão, não me contaria o que ia fazer, depois eu viria a saber, através dele próprio. E, sem mais uma palavra, deixou o Bar de Espanha e aparentemente a ilha, para dar as caras somente muitos dias depois.
Cabe agora um parêntese para informações importantes. Em algumas poucas ocasiões, mencionei aqui o Lupanar do Moura Ltda., tradicional firma do ramo do entretenimento erótico, sita em Nazaré das Farinhas e já por várias gerações administrada, com discrição, espírito público e competência, pelo clã dos Mouras, desde o dia remoto, ainda no fim do século XIX, em que aportou à cidade o português Nuno Almeida Moura, disposto a jamais pôr os pés de volta em Portugal. Pois que, segundo até hoje narram os contadores de histórias, entre arrepios e esgares, fora vítima de tão medonho corneamento que ouvi-lo descrito enregelava nas veias o sangue de qualquer marido. Mas, espanou a poeira dos borzeguins, ergueu a cabeça com altivez, percebeu a demanda reprimida, abraçou a cidade, fundou seu estabelecimento e foi à luta.
Começou, então, a trajetória vitoriosa do Lupanar do Moura, que inovou desde seus primeiros dias, oferecendo uma tabela com preços adequados a vários segmentos de consumidores e iniciativas promocionais de grande visão mercadológica. Havia descontos especiais para o desfrute simultâneo das atenções de duas mulheres-damas (tipo “pague uma e meia e leve duas”), para estudantes, para militares e assim por diante. As promoções funcionam até hoje, embora, nestes tempos politicamente corretos, algumas tenham sido postas de lado, como a do Dia do Anão, que fez tanto sucesso que foi transformado na Semana do Anão — e dizem que, durante os vários anos em que rolou, vinha anão até da América do Norte, para tomar parte na indescritível fuzarca.
Assim de cabeça, não dá para rememorar nem uma pequena fração dos feitos e episódios que fizeram o renome do Lupanar, a exemplo do sucedido com o finado Zenóbio Merdinha, donzelão já quase desenganado para o sexo, com uns quarenta anos de irresignada virgindade nas costas, por todos deplorada, para grande vergonha sua e de seus familiares. Quando soube do caso, o então gerente da casa, Manelão Moura, considerou afrontosa tal ocorrência em seu território, mandou buscar Zenóbio em Itaparica, chamou uns amigos, deu uma festa e tacou em cima dele o Trio Maravilhoso Regina, conjunto poderosíssimo, composto por Regina Roda Viva, Regina Vai-Vai e Regina Boa Manobra, uma carioca, uma paulista e a outra sergipana, uma coisa fatal mesmo. No início, Zenóbio confirmou a reputação de astenia das vias luxuriosas, mas, após umas duas horas de empenho por parte do Trio, dizem que passou a ser homem de entrar lá na quarta de tarde e só sair na segunda ao meio-dia, obrigando todo mundo a fazer hora extra, até se dar seu glorioso passamento, quase aos noventinha e ainda freguês às terças, quintas e sábados.
E bem mais poderia ser contado, mas isto já é suficiente para que se compreenda o alvoroço instaurado depois que Zecamunista regressou à ilha com a novidade de que havia armado um esquema envolvendo não apenas o Lupanar do Moura, mas diversos congêneres respeitados em todo o Recôncavo. Previa que esse esquema iria reviver o dinamismo da economia da ilha e da região. Os serviços prestados pelos estabelecimentos filiados continuariam os mesmos de sempre, mas agora funcionários públicos, prefeitos e políticos em geral iam poder pagar normalmente por esses serviços com dinheiro público, sem precisar esconder nada, até com um sub ou um superfaturamentozinho, para adoçar a situação. Abrira-se um grande mercado, ia entrar dinheiro.
— Ah, vai ser tudo consultoria, como você falou antes.
— É, mais ou menos, só que eu vou aproveitar para fazer uma campanha educativa e usar o nome certo para esse tipo de transação, seja no Moura, seja em Brasília. O que se faz aqui no Brasil tem outro nome.
— Eu não sabia que havia um nome certo para isso.
— Mas há — disse ele. — Não é consultoria, é consultaria. E o consultor não é consultor, é consulteiro. Acompanhou meu raciocínio?
O Globo, 20/4/2014