Não faz muitos anos, sempre que eu voltava de qualquer estadazinha no exterior, por mais curta que tivesse sido, caía em cima de jornais e revistas brasileiros com uma fome de javali, lamentando sempre não ter estado presente a tal ou qual episódio. Só não lamentei em 64, porque mandaram me prender, acho que em meados do ano, e eu, Deus é grande, desde fevereiro estava, vejam vocês, estudando na Califórnia, com bolsa americana. Eu devia ser um tremendo subversivo safado mesmo, disseminando ideologias exóticas com a maior desfaçatez, no seio da pátria capitalista e ainda por cima às custas dela, sem tocar num miligrama do ouro de Moscou.
Havia rumores horripilantes e diziam que as cartas eram lidas pelos órgãos de segurança, além de todo mundo ser suspeito de deduragem. Os jornais eram difíceis e estavam sob censura ou severa marcação. Glauber apareceu em Los Angeles, vindo do México, onde lhe contaram que pegaram um colega de turma nosso, lhe enfiaram uma granada na boca e puxaram o pino. Bem mais tarde, já em Salvador, eu soube que esse colega tinha morrido mesmo, mas de um tumor no cérebro — sabe como é, tumor no cérebro, cabeça explodindo, clima de boataria sinistra, o pessoal vai confundindo as coisas. A gente acreditava em tudo, é claro, e aí, quando assustaram minha mãe, botando na televisão minha cara e meu nome completo (que é indecentemente comprido) e dizendo que eu estava sendo procurado por subversão ou crime contra a segurança nacional, fui me aconselhar com um ilustre professor meu, dr. Sherwood, e disse a ele que, com aquela conversa de granada na boca e similares, eu não voltaria ao Brasil nem arrastado. Ele me tranquilizou, daríamos um jeito.
Mas não precisou. Transcorrido o tempo que passei em Los Angeles, já tinham esquecido minha subversão, até porque fui um subversivo de quinta categoria e nem acertei a me tornar comunista, apesar de haver chegado a encarar “O Capital” — se bem que mande a honestidade confessar que não passei das primeiras cem páginas, se tanto. Mas, até mesmo por causa do clima político da época, minha avidez de saber tudo o que sucedera em minhas ausências do Brasil só fez crescer.
Agora não. Cheguei de volta e não corri atrás de revista ou jornal nenhum, mal e porcamente espiei os noticiários da internet. Estava fora e minhas duas crônicas mais recentes foram, digamos, de viagem. Agora talvez esteja na hora de voltar aos assuntos locais. É, pode ser, mas, espero que com a vênia dos gentis leitores, resolvi que não volto. Semana que vem, eu volto, quem sabe, aí já deve ter havido tempo bastante para a descompressão. Mesmo a passada de olhos rápidos e apreensivos que dei nas notícias mostrava que as novidades eram as velhidades de sempre, em suas cada vez mais exuberantes manifestações. Não há teclado que aguente, nem juízo que não amoleça.
Explicado o transe, passo a comentar, a troco de nada, um documentário a que assisti, complementado por um par de leituras curiosas. É sobre uma novidade japonesa. Segundo essas fontes, o Japão está longe, muitíssimo longe de ser uma nação pudica e de sexualidade reprimida, como muita gente acha. Dizem elas que o negócio lá é da pá virada e tudo quanto é serviço ou prática sexual tem uso corrente e aceito socialmente, dentro de algumas linhas mestras (que eles não dizem quais são, mas devem ser todas abaixo da cintura).
Bem, não sei direito, nem vem muito ao caso. O caso é que agora estão comerciando por lá o xodó. É o seguinte, por exemplo: o freguês ou a freguesa não querem casar ou ter compromisso. Comumente, compram o sexo que desejam, do jeito que desejam, com os parceiros que desejam. Mas cada vez mais se espalha entre eles a falta de um elemento presente nos antigos namoros, noivados e casamentos. Aquele chameguinho, a convivência de segredos, mãozinhas dadas e dedinhos entrelaçados, bolinação discreta no cinema, ciumeirinhas e arrufos, pipoquinha na boca, risadinhas cúmplices, mãos dadas na calçada — enfim, namoro mesmo, namorico. Tudo isso abrange romance nos gestos, olhares e palavras, mas sem envolvimento emocional de nenhum dos dois lados e imagino que cobrado por hora. O contratado faz uma espécie de papel teatral, o contratante também. E há quem goste de repetir o parceiro e quem não goste, há quem não faça sexo com o contratado, há todos os tipos. Os japoneses são danados, daqui a pouco aparecem com um aplicativo de Iphone que baixa papos chameguentos de vários tipos, debitados na conta do celular. Acho que o próximo passo será contratar cônjuges por hora ou temporada. Ou já se faz isso, inclusive aqui? Será que Nelson Rodrigues tinha razão, quando disse que o dinheiro compra tudo, inclusive amor sincero?
P.S. — Sei que disse que não ia tocar em certos assuntos, mas acaba não dando para segurar e aí me despeço com umas perguntinhas locais. Caso sejam descabidas ou asnáticas, perdoem a ignorância — e perguntar não ofende. A primeira pergunta é sobre o prejuízo da Petrobras, com a compra da tal refinaria. Já que ninguém sabia do negócio, a compra se fez sozinha? E, mais uma coisa, não havia um tal “domínio do fato” no caso do mensalão, ou seja, quem está no comando não tem responsabilidade ou culpabilidade? Ninguém tinha domínio do fato, na cúpula da Petrobras? Assinaram sem ler a aprovação de um negócio que já foi qualificado de criminoso, contra o patrimônio da empresa. Não pega nada? Segundo eu soube, o deputado Genoino não escapou da cana em parte por ter assinado uns cheques sem lê-los. Finalmente, uma homenagem a meu saudoso amigo Zózimo: “E o pessoal do kkkkk, hein? Vai continuar cacacacando.”
O Globo, 13/4/2014