Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos

Artigos

  • A base aliada na ilha

    Da mesma forma que o Bar de Espanha, o Mercado Municipal Santa Luzia, em Itaparica, sempre foi palco de debates sobre todos os assuntos, de biológicos a políticos. Entre suas paredes, ainda ecoam discursos de Piroca Vieira, que denunciava tudo, todos e todas, conferências de Sete Ratos, que testemunhou várias vezes jararacas cruzando com caramurus, narrativas autobiográficas de Gueba, onde ele sempre provava que todo mundo é avariado da ideia, e um sem-número de lembranças de afamados tribunos conterrâneos que já se foram. Os saudosistas se queixam que, depois do desaparecimento de vultos dessa estatura, o Mercado nunca mais foi o ágora de antigamente. Comparado ao dos velhos tempos, hoje seria até uma pasmaceira completa.

  • Impressões de viagem

    Nesta época do ano em que todo mundo viaja - inclusive eu, que estou saindo de férias - é bem possível que o distinto amigo e a cativante leitora estejam agora num aeroporto. Não menciono rodoviárias, ônibus ou carros por falta de experiência, pois as estradas me aterrorizam muito mais que os aviões, no que, aliás, acredito que tenho razão, diante da carnificina que costuma deflagrar-se nelas, nos períodos de maior movimento. Sinto grande inveja de quem lê em aeroportos. A única leitura que consigo fazer é a dos monitores que mostram informações e não posso me concentrar em nada, porque tenho certeza de que vão mudar a hora do embarque, depois o portão, depois ambos e, em seguida, vão cancelar o voo.

  • Volta das férias

    Como alguns - ou muitos, quem sabe - de vocês temiam, não foi ainda desta vez que desapareci em Itaparica, para nunca mais ser visto. Houve a tentação e a oportunidade, mas resisti, desconfiado do que queriam dizer os sorrisos dos interlocutores, quando se inteiravam dessa possibilidade. E aí eis-me de volta, naturalmente trazendo-lhes a narrativa de alguns dos empolgantes acontecimentos que marcaram minhas férias. Como todos os escolares de meu tempo, treinei para isso no colégio. A diferença está em que, nessa época, a maioria de nós contava as piores lorotas sobre as férias, ou com o objetivo de impressionar uma colega e talvez a professora (eu mesmo era suspirosamente apaixonado pela minha professora de português, no antigo ginásio), ou porque as férias de verdade não tinham sido das mais famosas. Mas o que se segue não são lorotas e está aí Itaparica inteira, que não me deixa mentir.

  • Tudo dentro da normalidade

    O comecinho de tarde anunciava mais calor, no famoso boteco leblonino Tio Sam. Ainda mais agora que uma porta do meio, dessas corrediças de ferro, quebrou e resolveu ficar permanentemente fechada, bloqueando a ventilação. Segundo a opinião geral, a situação deverá perdurar mais alguns meses, enquanto Chico, o filosófico português da Beira Alta que é dono do estabelecimento, resolve se vai consertá-la. Chico pauta sua conduta pelo que chama de Filosofia da Normalidade, segundo a qual ele é normal e tudo o que é diferente dele não é normal. Ele não me falou, mas tenho certeza de que está ponderando sobre se é normal querer a reabertura da porta. Além disso, os calorentos contam com os ventiladores da casa, embora se avolumem as queixas de que a aragem deles esquenta o chope nos copos.

  • Seremos todos telefones

    Esse negócio de Google tirou a graça de muitas coisas. E dificultou a vida dos que mourejam nas letras, obrigados por profissão e ganha-pão a escrever com regularidade, fazendo o que podem para atrair o interesse de leitores e mostrar serviço, pois bem sabem que a mão que afaga é a mesma que apedreja e o quem-te-viu-quem-te-vê será o destino inglório daqueles que dormirem no ponto. Antes do Google, o esforçado cronista recorria a almanaques e enciclopédias e deles, laboriosamente, extraía novidades para motivar ou adornar seu texto. Agora todo mundo pode fazer isso num par de cliques. Além do mais, o cronista podia também exibir-se um pouco, o que talvez trouxesse algum benefício ao combalido Narciso que carrega n'alma, além de realçar-lhe a reputação. Somente alguns poucos, entre os quais ele, tinha tal ou qual informação, ou lembrava certos pormenores, em relação ao assunto comentado. O Google acabou com isso e quem hoje em dia chegar ao extremo de escrever algo do tipo "você sabia?" se arrisca a desmoralização instantânea.

  • O Plano Borges

    Pouco mais de meio-dia, no aclamado boteco Tio Sam, tudo parece estar de acordo com a filosofia do proprietário do estabelecimento, ou seja, a normalidade. O domingo não se apresenta dos mais gloriosos, mas não chove e, a cada trinta segundos, passa uma bela moça ou formosa senhora, a caminho da praia. Às mesas do Tio Sam e do boteco que lhe é vizinho, os coroas de sempre — nenhum dos quais jamais precisou de Viagra ou semelhante, mas sempre tem um amigo que precisa — se postam tão perto quanto possível da calçada, para desfrutar da paisagem e comentar as qualidades organolépticas das desfilantes. Amavelmente cafajestes, denominam isso “apreciar o cânter” — e o cânter aqui desta calçada leblonina nunca decepciona os aficionados.

  • Peitos pelo progresso

    Como já tive oportunidade de comentar aqui diversas vezes, Itaparica sempre esteve na vanguarda e não raro puxou o bonde nacional. Assim foi quando, depois de os aturarmos durante quase um ano, na época do padre Vieira, enchemos o saco de tantos vanderdiques e vanderleis e botamos os holandeses da ilha para fora — e tudo às carreiras, tanto assim que vários ficaram para trás, para usufruto das conterrâneas mais necessitadas ou mais assanhadinhas, assim se originando as flores que são nossas mulatas de olhos verdes, as quais vem gente de todo o mundo para conhecer. Quase dois séculos mais tarde, se não fosse a ilha, talvez não houvesse independência, pois a convicção dos historiadores sérios é de que o grito do Ipiranga não passou de gogó e sair mesmo no tapa com os portugueses foi na ilha e redondezas.

  • Saúde!

    Hoje, cativante leitora, airoso leitor, é o Dia Mundial da Saúde. Eu não sabia, descobri enquanto estava na cozinha, esperando a água do café esquentar e, por falta do que fazer, lendo uma folhinha de padaria pendurada atrás da porta. Imagino que, pelo País afora, devem estar sendo realizados inúmeros eventos oficiais para dar serventia à data, conforme é costumeiro em nossa diligente administração pública. Tomada da pressão arterial na pracinha, fornecimento gratuito de camisinhas à juventude, palestras sobre alimentação sadia e exercícios físicos, caminhadas coletivas em parques públicos, farta distribuição de escovas de dente e lenços de papel e o que mais ocorrer à renomada criatividade nacional, principalmente se render uma propagandazinha comercial, uns votinhos ou um desviozinho de verba maneiro.

  • Medo e controle

    Essa estupidez inqualificável perpetrada em Boston aviva o receio de um futuro de insegurança, desconfiança e medo para toda a Humanidade. Grande parte dela já enfrenta isso, mas todos podemos esperar um futuro bem diferente do que os que cresceram no século passado imaginavam. Acreditávamos possível uma vida privada, sem partilhar com ninguém nosso comportamento pessoal, práticas, idiossincrasias e mesmo esquisitices que não fossem da conta alheia. Encarávamos como um pesadelo distante e evitável o mundo descrito por George Orwell em 1984, com sua omnipresente teletela sempre ligada e a vida dos governados escrutinada em todos os detalhes.

  • Cui prodest? Cui bono?

    Antigamente, na faculdade de Direito, pelo menos na Bahia, a gente encarava Direito Romano logo no primeiro ano. No vestibular entrava latim, que já tinha sido ministrado durante todo o então curso secundário. Mas a maior parte do pessoal não aprendia a língua, propriamente. O comum era decorar às vezes traduções inteiras, em edições bilíngues das Catilinárias, da Eneida e de De Bello Gallico. Quando chegávamos ao Direito Romano, a decoreba se estendia a brocardos e máximas jurídicas, que a gente salpicava nas provas para impressionar o professor e declamava nos concursos de oratória que todo ano eram realizados, com torcida e grande empolgação. E, claro, gastávamos farto latinório nos corredores da faculdade e para impressionar terceiros, pois onde já se viu bacharel baiano que volta e meia não solte um latinzinho, se bem que, hoje em dia, o que me contam é que a maior parte dos bacharéis se forma sem saber se expressar nem em português, quanto mais latim. Deve ser maledicência e, de qualquer forma, não vem ao caso.

  • Governantes e governados

    Essa capadoçagem burra, arrogante e irresponsável, tentada no Congresso Nacional, para intimidar e desfigurar o Poder Judiciário, mostra de novo como somos atrasados. Antigamente, éramos um país subdesenvolvido e atrasado. Fomos promovidos a emergente - embora volta e meia me venha a impressão de que se trata de um eufemismo modernoso para designar a mesma coisa - e continuamos atrasados. Nosso atraso é muito mais que econômico ou social, antes é um estado de alma, uma segunda natureza, uma maneira de ver o mundo, um jeito de ser, uma cultura. Temos pouco ou nenhum espírito cívico, somos individualistas, emporcalhamos as cidades, votamos levianamente, urinamos nas ruas e defecamos nas praias, fazemos a barulheira que nos convém a qualquer hora do dia ou da noite, matamos e morremos no trânsito, queixamo-nos da falta de educação alheia e não notamos a nossa, soltamos assassinos a torto e a direito, falsificamos carteiras, atestados e diplomas, furamos filas e, quase todo dia, para realçar esse panorama, assistimos a mais um espetáculo ignóbil, arquitetado e protagonizado por governantes.

  • Comida, essa desconhecida

    Entre as doenças mais modernas que um catálogo cada vez maior põe à nossa disposição, está, como aprendi faz poucos anos e até a mencionei aqui, a ortorexia. A palavra ainda não foi dicionarizada, mas a experiência sopra que alguma multinacional farmacêutica já está desenvolvendo um medicamento poderoso para combater o novo mal e ser vendido com tarja preta, ao custo de uns quatrocentos contos a cartelinha. Em breve, teremos o anúncio dessa descoberta nos noticiários de tevê e nas páginas de saúde dos jornais e assistiremos a tocantes depoimentos de doentes, notadamente os que conseguiram recuperar-se a tempo de refazer suas vidas destroçadas.

  • Preservando as espécies

    Em Itaparica, não existe muita preocupação com esse negócio de privacidade, visto que, desde o tempo em que a luz era desligada pela prefeitura às dez horas da noite, o sabido saía com a moça, se esgueirando entre os escurinhos do Jardim do Forte e, no dia seguinte, na quitanda de Bambano, o fato já tinha alcançado ampla repercussão, com fartura de pormenores. O mesmo acontecia em todas as outras áreas e diz o povo que, quando meu tio-avô Zé Paulo, tido como mais rico que dezoito marajás, soltava um pum, sozinho numa sala de seu casarão, os puxa-sacos já ficavam de plantão no Largo da Quitanda e, no instante em que ele passava, se manifestavam efusivamente.