—Esse menino só me dá preocupação. Quando eu penso que o pior já passou, que ele já aprendeu alguma coisa, lá vem ele com besteira de novo.
— Eu não acho tanta besteira assim. Você mesmo se candidatou pela primeira vez com a idade dele e se elegeu.
— Me admira você, parece que não acompanhou minha carreira a vida toda. As coisas mudaram! Em política, não se pode deixar de prestar atenção nunca, tem que dar o pulo certo na hora certa. Aquilo era no tempo do coronel Afonsino, do senador Bernardo, dos bons cabos eleitorais e do caminhão de eleitor, a eleição era uma formalidade. Ele não tem nada que se candidatar agora, tem que cumprir esse tempo na prefeitura. Tem gente que daria o bem-bom na hora, pela colocação que eu consegui para ele, e ele despreza tudo.
— Mas, como deputado, ele ia ganhar mais e ia trabalhar muito menos.
— Tanto tempo de casada comigo e até hoje não aprendeu a ter visão política, eu canso de dizer e mostrar, tem que ter visão política! Você sabe quanto ele vai ganhar na Prefeitura?
— Ele não é equiparado a procurador?
— Ah, e você pensa que eu quero ele na prefeitura para receber esses vencimentos de pobre? Pense certo, Creuza, pense como eu! Pense aí!
— Estou pensando e não sei aonde você quer chegar.
— É porque você pensa pequeno, nunca perdeu o vício de ser pobre. Não pode pensar como pobre, isso só dá atraso! Claro que o que o Nélsior Luiz está ganhando na prefeitura não é só essa merreca, eu não posso dispensar um filho meu, uma pessoa de minha inteira confiança, na posição em que ele está, trabalhando nas licitações. Tem que falar baixo, as paredes têm ouvidos, sente aqui. Escute bem, que eu vou falar baixo e nunca mais vou repetir. Então, minha filha, você não compreendeu que, com Dudu como prefeito, seu primo Hélio na Secretaria de Obras e Natanael Barrica secretário de Finanças, esta é uma oportunidade de ouro? Entendeu, ou quer que eu faça um desenho?
— Vocês… Ah!
— Claro! É por isso que o Nélsior tem que ficar onde está, eu não faço as coisas à toa. Se Dudu abrir todas as concorrências que ele diz que vai abrir… E vai, e vai, aquilo é um verdadeiro gadanho de oito dentes, tem de ficar de olho nele, senão ele pega tudo pra ele, é um inescrupuloso e, quando se trata de dinheiro, chega a ser desonesto, o que ele diz não se escreve.
— Compreendi tudo. É que, no começo… Eu não tenho seu tirocínio político, você pensa que todo mundo é inteligente como você, mas não é.
— Isso não deixa de ser verdade, sou forçado a reconhecer. Qualquer um vê que eu sou dos políticos mais bem-sucedidos de minha geração. Nunca perdi eleição, sempre estive em posições invejáveis e, graças a Deus, consegui amealhar um patrimônio decente, para dar uma bela condição aos meus, eu soube me fazer. Com muito trabalho e noite perdida, mas eu soube me fazer.
— E fez muito por este povo daqui. E continua fazendo.
— Isso também é verdade. Ninguém pode me acusar de virar as costas para o povo. Pelo contrário, acho que não tem um que tenha vindo me procurar pedindo um auxílio, uma internação, um caixão, umas telhas e por aí vai, que eu tenha negado, inclusive tirando dinheiro de meu bolso várias vezes.
— E você ainda se esquece da festa de Natal.
— A festa de Natal! Aquele safado do jornal escreveu lá que eu chamava as crianças pobres para distribuir quinquilharias baratas. É por isso que jornalista me dá nojo, pessoal recalcado que não tem o que dizer e difama um homem público de ficha limpa por todos conhecido, tinha que fechar essas merdas desses jornais destrutivos, ninguém precisa deles, só servem para causar distúrbios sociais e incitar a desordem, é para isso que eles servem.
— E o Bolsa Família?
— O Bolsa Família! Quantos e quantas eu já botei no Bolsa Família? Somente aqui na cidade, nós tivemos o maior aumento na concessão de bolsas família em todo o estado! Em todo o estado! Isso o sacana do jornal não escreve! Quantos não se enquadram no programa, mas eu mando fazer vista grossa, porque sei que não custa nada uma ajudinha a mais para esse povo sofrido? O político tem que ter sensibilidade, não pode se ater à letra fria da lei, isso é desumano. Minha contribuição para o aprimoramento do Bolsa Família vai se revelar muito importante, ainda vão ter muito que me agradecer.
— Mas você mesmo sempre diz que, na política, uma das coisas mais comuns é a ingratidão.
— E é mesmo, mas a gente tem de estar preparado, tem muito canalha sem princípios neste mundo, é a lei da vida. Se um dia eu abrisse a boca para contar as barbaridades que eu já vi, ia ser um escândalo. Mas eu não sou palmatória do mundo e outro mandamento da política, ainda mais importante que o cuidado com a ingratidão, é o realismo, é o pé firme na realidade. A realidade é a realidade, não adianta querer dar murro em ponta de faca, a realidade não muda. É por isso que o Nélsior às vezes me preocupa.
— Mas acho que você não tem razão, ele tem futuro, não fique preocupado. Só a admiração que ele tem por você já é a garantia de que ele vai se dar bem. E é sangue de seu sangue.
— Agora quem está com a razão é você. Tem a genética e a formação rigorosa que eu dou a ele desde menino.
— Não é por ser nosso filho, mas ele vai ter uma grande carreira política. Filho de peixe peixinho é, quem sai aos seus não degenera.
O Globo, 12/5/2013