AFORISMOS ESPARSOS
...quisera (se coubesse no meu fraco talento) que cada palavra encerrasse um período.
FILINTO ELÍSIO, Obras completas, I, 75.
1. Ideal e Literatura
O ideal da Literatura seria uma filosofia da vida, em aforismos gnômicos, à grega; ou em breves diálogos, faiscantes, nítidos, perfeitos. Ser breve e conciso. Tirar do espírito, não pensamentos associados, — mas cristais. Ideias em contraste, embebidas de arte, e cadenciadas, a capricho, na música interior das grandes posturas. Implantação genial de archotes e de esfinges, frente a frente: César a dizer ao mundo o que é... e a ignorância do mundo a dizer a si mesma o que pensa de César; deuses, torturados para não ser e a martirizar os homens que insistem em afirmá-los, — e os homens, intransigentes e heroicos, a mostrar os deuses.
2. Terra e Homem
Entre os povos e os territórios, as paisagens, as montanhas, o todo térmico, estrutural e cromático, em que vivem, há longa, sutil e indefinível intimidade, que parece, aos espíritos, efeito estético, intelectual ou moral de suave compenetração recíproca, mas que apenas é profunda e obscura sensação da igualdade das influências que no homem e na terra se exerceram.
3. Aforismos
O aforismo é forma de pensar corajosa e superior: superior, porque sintetiza; corajosa, porque se sente capaz de viver sem companhias. Raríssimos são os pensamentos que resistem à prova depuradora da soledade; e os aforismos são como certos espíritos que mesmo em companhia estão sempre sós.
4. História e Realidade
Na vida da árvore os momentos em que a ventania a desfloriu, e um braço humano lhe quebrou um galho, são os dois acontecimentos “históricos” mais importantes que a seu respeito podem ser mencionados. Todavia continuou de viver, normalmente, como se nada houvesse acontecido. Mais cedo ou mais tarde haviam de cair as flores; e um pobre ramo tirará muito pouco à imponência da copa. Assim na vida do Homem: os fatos “históricos” são apenas os mais visíveis e raramente perturbam o curso natural e inflexível das coisas; esplendem, mas não queimam; dão impulso, porém não desviam; dinamitam, sem que destruam. Os grandes fatores da evolução são os fatos não-históricos; vêm quando irrompem, sem serem desejados, sem serem vistos.
5. Felicidade
Para seres feliz basta que possas dizer: sou homem forte, porque me sinto capaz de ser indiferente a todas as consequências do meu orgulho.
6. Real
Todo o real só existe sob a condição geral de ser sentido, isto é — deixar de ser um mundo em si, an sich, como dizem os alemães, para ser um mundo para nós, für uns. Dependem do nosso espírito as formas do último, como dependem dos vasos as superfícies dos líquidos. Só a parte superior poderá ficar livre do contorno. Em verdade, escrevemos impressões, ao lado dos fatos, — não “dizemos” fatos. Os acontecimentos são frases que somente podem ser “ditas” pela Natureza, pelo Todo. Num grão de areia fala o universo. Em cada pensamento humano, como fato, expressão atual do que foi e essência do que será, fala o universo de todos os tempos. Uma simples palavra tem história infinita: ritmos do que passou e indícios do que virá. Cada partícula espiritual é uma soma: tudo é soma no universo. Gastar-se-iam séculos a narrarem-se a formação e a vida de um vocábulo... Kant bem percebeu o valor do nosso espírito, e foi por isso que se reportou à função específica do intelecto: legislar para o mundo. Todas as filosofias são puras leis, e leis atuais, falíveis, provisórias. A harmonia só existe no mundo em si. No mundo “para nós” só é integral e coerente o nosso critério. Colocado entre dois abismos, só um meio tem o homem para tentar a verdade: utilizá-la. No passado, — o ponto de partida, o fieri ex nihilo, que é impossível, porque admite efeito sem causa; no futuro, — o fato último seria causa sem efeito, sem nexus effectivus. Daí a esfinge, o grande enigma dos pensadores, a dupla interrogação do conhecimento: por toda a parte, o Infinito.
7. Palavras
Viciamo-nos, pouco a pouco, a figurar os homens, as coisas e os fatos sob aspectos mesquinhamente físicos e materiais. Vemos demais em todos eles, mas sabemos de coisas que em nada nos adiantam. Uma porção de palavras de que nos servimos parecem flores murchas, — verdadeiros nomes que já tiveram ou que ainda não têm a pessoa ou ser a que se apliquem. No entanto muitas qualidades nos passam despercebidas, que mereciam vistas. Não possuímos os olhos dos indiferentes, nem o sentido inexprimível, mas integral, dos rústicos e dos intuitivos: ficamos no meio-termo para que possamos fazer injustiças!
8. Ego e Eternidade
Os moribundos têm sempre a mesma filosofia da vida, simples, mas profunda: “E todo este mundo!? e todas essas pessoas amigas!? Ninguém o verá mais com os meus olhos?!... Ninguém os quererá mais com o mesmo amor?!”
9. Pensamentos
Os melhores pensamentos são os que não têm palavras. Fazem-se em nós, da nossa substância, porém não se evolam no exterior, nem se adulteram na futilidade dos vocabulários: pensam-se, mas não se dizem.
10. Pintura e Realismo
Tenho visto poentes, que eu mesmo estranharia se mos mostrassem pintados. Muitos indivíduos chegariam a chamar idiotas aos pobres artistas. É que os homens, não satisfeitos com a falsificação visual, humana, inevitável, da Natureza, querem um mundo artístico convencional, estritíssimo, a seu modo e gosto. Bem inimigos do Real, esses realistas!
11. Escrita e Música
Entre os escritores e os homens que pensam, há uns que nos lembram Schubert e Berlioz, e os descritivos, outros que têm alma sinfônica, como Bach, Beethoven e Wagner. Ao redor deles estão “ateus da Ideia”, como os antigos músicos falavam dos “ateus da expressão”. As grandes ideias espontâneas exprimem-se em palavras, como poderiam expressar-se em ritmos ou em cores. Os pensadores de escol são antes de tudo grandes músicos, — o espírito deles ondula e estremece em allegretos e scherzos, ou irrompe, profundo, nos ariosos dolentes de uma sonata de Beethoven. Mas são sempre músicos: apenas não precisam de órgãos, nem de pianos; têm violinos e harpas dentro da alma.
12. Serenidade
Sede cada vez mais serenos e instintivos. Não tenteis nunca, ó homens, guiar a vossa vida e o vosso eu conforme o que concebeis. A vossa cultura estará em essência na própria matéria dos vossos instintos. Estes sabem mais do que vós mesmos: veem mais do que vós, porque os vossos olhos foram feitos para os campos, o mar, o céu, o universo das coisas materiais, e os deles para a escuridão dos que vos cerca. Tende em boa conta o que sabeis; mas ponde sempre em sério exame o valor das coisas que se exprimem. Dai sempre estreitos limites à inteligibilidade das formas imediatas da vida; desconfiai mesmo de todas elas: muitas das que aparecem nada mais representam do que sombras do vosso espírito e imagens falsas das próprias coisas. Não podem ser imutáveis e únicas, se tão irregulares e tantos são os espíritos em que se refletem, se fundam e se complicam.
13. Almas sem Cor
Os espíritos frágeis, perversos, medíocres e incolores são dignos do nosso cuidado, da nossa benemerência e da nossa gratidão, ainda quando nos ferem, não por serem obedientes e cordatos, mas porque nos proporcionam seguras razões para os desprezar. As longas campinas sem árvores e sem cômoros, apenas ondeadas em variantes de pequeno relevo, suscitam, de si sós, a nossa indiferença, o nosso desdém sem fel, o nosso ódio intelectual sem negativa. No mundo dos sentidos, deixar de ver ou de escutar é mais grave e mais deprimente do que julgar indigno o que se viu, ou desagradável o que se escutou. Os olhos só não veem as coisas que merecem mais escárnio do que eles poderiam dar-lhes, se as vissem. Aí está a explicação de Jesus de Nazaré. Viver para os outros, — e não para si; é modo sábio de só nas outras pessoas encontrar necessitados de coisas úteis: processo divino de se fazer oásis, refúgio, exceção, tornar una, incaracterística, toda a multidão compacta que o rodeia, — impersonalizar pela caridade infinita, pelo infinito amor do próximo, ou pelo máximo desprezo, que é a piedade, toda a massa dos maus, dos doentes e dos fracos. Só o Cristo se salvou: será deus, exceção; somente ele será capaz de receber com serenidade todas as dores e privações, no meio da humanidade esquálida, pecadora e gemente.
14. Ideias Novas
Ideias novas? Basta que encontremos a posição nova, pessoal. Para quem já possui a lente mágica, tudo mais será imprevisto, original e belo, porque a natureza mudará com a estrutura e a cor dos vidros.
15. Fé
Chega o homem ao grau definitivo de superioridade quando pode elevar-se acima da sua própria fé.
16. Instinto
Há indivíduos que desejam sempre mandar, ainda que para isso se escravizem. Será por si mesmo um fim tal vontade? ou o simples meio de um instinto: o instinto de ser escravo?
17. Leitores
Feliz o autor que encontra três leitores sábios. — Os bons livros são aqueles em que se nos depara um pouco para todos, ao passo que o livro forte é o em que cada um se encontra a si mesmo. Espiritualmente, cinco mil leitores para nós outros nada valem. É grave prejuízo para o escritor que cerca de cinco mil medíocres se encontrem nele.
(A sabedoria dos instintos, 1921.)
INSCRIÇÕES DA ESTRELA INTERIOR
FEITIÇARIA
Eu te convido
ao meu covil de feiticeiros,
onde borbulha
o ouro, o ouro liquefeito, o ouro espumante, das paixões,
e as chamas
das ideias
giram,
sobem no ar, coleantes, lambendo o sangue das paredes.
Feitiçaria! Feitiçaria!
Aqui, na iluminada escuridade,
eu manipulo,
com os meus passes
originais,
com o dinamismo interior,
os rútilos cristais
de um Pensamento plácido,
de uma Forma
tranquila.
DUPLO
Eu tenho a ânsia obsidional de conhecer.
Fausto sou eu.
Eu convido minha Alma ao Bem e ao Mal,
eu verto o sangue,
assino,
e guardo, eu mesmo, o meu funesto
pergaminho
simbólico.
Mefistófeles sou eu.
Em torno de mim mesmo
bailo,
ora Fausto,
ora Mefisto,
e, rodando,
rodopiando,
fundo os dois
no meu Eu.
Eu o mau. Eu o bom.
o meu destino
está,
criança,
na tua
Mão.
VIAGEM
Sob o esplendor lunar,
a Noite,
imensamente silenciosa,
com ruídos
roucos,
nas toiceiras de ácidos perfumes.
Além, na longa estrada, o carro.
Avança. Vem.
¿Quem eras tu, Viajante?
Passou.
Nunca saberás.
Uma estrela cadente
cintila
¿Quem eras tu, no Espaço?
Fugiu, foi-se.
Nunca saberás.
Só saberás a ninharia
circundante
da tua vida.
Mas livra tua Alma
de todas as estreitezas.
Vê o infinito
do gesto bom
e
sem causas finais,
o gesto que brilha
como o Sol.
Vê a órbita dos planetas
e dos elétrons invisíveis.
Se quiseres, se puderes, vê Deus.
Mas nunca, nunca desprendas os teus olhos
da Beleza
inatingível.
INVISÍVEL
Quando duas vezes
cem vezes,
mirando o Sol,
andar, em torno, a Terra,
a Terra
em que nós dois habitamos,
Eu, hoje, neste dia esplendente que passa,
que passa
para não mais volver,
e Tu,
na desconhecida manhã de um dia de sol futuro,
— Tu, talvez, me lerás.
Lerás
o que escrevi com os meus dedos
passageiros,
mas firmes,
no pouco de tempo que vivi,
que vivi,
a pensar e a sentir.
Será velho, amarelecido das idades,
este novo papel cor de pérola, que eu acaricio
com a minha pobre mão
intelectual e lasciva,
com a minha pobre mão,
signo de uma alma propiciatória,
que já hoje parece, como, então, te parecerá,
ter morrido há séculos
e
em séculos
futuros
ter vivido.
O meu tempo, que eu vi,
que vivi,
que perpassou em mim,
e me nutriu,
enganou-se em pensar
que vivia comigo.
Com o meu corpo, sim.
Com a minha alma, não. Minha alma é solta,
frequenta
e bebe
em todos os festins
da Eternidade.
(Eu sou a sombra sonâmbula que segue,
seguida de outras sombras
que eu sensibilizo...)
Na ignota manhã da segunda centúria.
Tu lerás
a frase misteriosa que escrevi,
compreenderás,
— e beijarás,
com a tua alma,
os meus dedos
invisíveis.
TRANQUILIDADE
A água misteriosa
pelas montanhas
desce,
sem cessar,
sem se ouvir...
Tranquilidade.
Longe, na curva do oceano,
as velas
silenciosas,
sem se moverem,
sem se ouvirem,
avançam...
Tranquilidade.
Espaçadamente,
mais uma pétala murcha
no chão recoberto de flores
aparece,
sem se ver,
sem se ouvir.
Tranquilidade.
O perfume das árvores, dos campos,
canta, nas urnas de pólen,
o silencioso canto de amor...
Tranquilidade.
Descendo às furnas úmidas
de mim mesmo,
paro,
e
debruço-me
sobre o lago inestanque,
imóvel,
do meu Pensamento.
Tranquilidade.
(Obras literárias: prosa e poesia, 1960.)