CASO DE MENTIRA
Morávamos nós em São Francisco Xavier, perto da estação, numa boa casa de dois pavimentos, jardinzinho com repuxo na frente e fresca varanda do lado onde nascia o sol, se bem que por essa época não andasse ainda meu pai muito certo da sua vida para arrastar, sem alguma dificuldade, o luxo de residência tão ampla e confortável, mas temos que perdoar a ele, entre outras fraquezas, esta da ostentação, já que a perfeição foi negada por Deus à alma das criaturas. Eis, senão quando, meu irmão Aluísio, o demônio em figura de gente, ao praticar certa travessura arriscada na sala de visitas, aliás sempre fechada a chave e que, a não ser aos sábados para a limpeza, raras vezes se abria para receber gente de fora, pois poucas eram as nossas amizades, caiu e deitou por terra a elegante peanha de canela, que ficava por trás do sofá de palhinha.
Isso, convenhamos, pouca importância teria se, sobre a peanha, não estivesse, como em precioso nicho, o rico vaso da China, um legítimo Sé-Tchun, que papai frequentemente gabava - isto é que é a verdadeira arte, meninos! - e que mamãe admirava por seu outro valor: ser das únicas coisas que escaparam à voracidade de tio Alarico, um desmiolado, quando foi feita a partilha dos bens do seu avô, que era barão e morrera na Europa.
De tarde, papai chegando, ainda nem tinha tirado o chapéu de lebre, que usava desabado, e já mamãe o punha ao corrente, com meticulosa exposição, do desgraçado acidente.
- Aluísio!
A voz de meu pai foi tão estranha, diversa e violenta, que minha mãe, coitada, ficou branca, arrependida imediatamente de ter nomeado, precipitada, o santo do milagre.
Aluísio, que se eclipsara, mal praticado o ato, apareceu, lembro-me como se fosse hoje, sem fazer barulho, de pé no chão, cabeça baixa, com aquela cara que tia Alzira classificava de “cara de boi sonso”; chegando perto de papai, levantou o rosto de fuinha, encarou-o de revés, cravando nele os olhos pequenos e irrequietos, o instante suficiente para sondá-lo com profunda sagacidade; abaixou novamente a cabeça, o cabelo nunca penteado, que mamãe ameaçava mandar cortar à escovinha, a cair-lhe em farripas pela testa enrugada e suja.
Todos nós tremíamos a bom tremer pela sua sorte, que papai, de ordinário calmo, sossegado, muito brincalhão, sabia ser violentíssimo quando para tal lhe davam fortes motivos, e na fúria de que se enchia era fugir-lhe da frente, pois até a pancada fazia parte da sua maneira de ser severo. A preta Paulina, que nós chamávamos de Lalá, e que trouxera o nosso herói ao colo desde o seu primeiro dia, chorava e rezava no corredor, espiando.
- Como foi isso? - meu pai o interpelou com o cenho carregado.
Aluísio era muito imaginativo e, sem titubear, inventou-lhe ali mesmo não sei que história fantástica em que entrava um bandido, verdadeiramente o autor do lamentável desastre, fugindo logo após praticá-lo, sem que ninguém visse, pois ele, Aluísio, tinha sido a única pessoa que presenciara tão misteriosos fatos, por acaso, acrescentava com razoável dose de modéstia, quando fora buscar na sala o álbum de retratos para folhear, o que, inexplicável dado o seu gênio incapaz de ficar parado um segundo, era inegavelmente uma das suas maiores distrações.
- Nada pude fazer - continuou num tom diferente, porque um medo, para que mentir?, um medo terrível tinha-o invadido, paralisando-lhe os movimentos, tirando-lhe a fala, tornando-o mudo, incapaz de gritar por socorro, como seria natural, não é mesmo?
Meu pai ouvia de boca aberta, numa admiração indisfarçável pela inteligência fantasiosa do pequeno. Eu e mamãe estávamos bestificados, Paulina, arregalando medonhamente os olhos, nem podia acreditar.
Aluísio descreveu ainda, com brilhante colorido e absoluta segurança de ânimo, o aspecto do sujeito: trazia compridas suíças, cor de fogo frisava, com aquele sutil amor pelo detalhe, um dos seus mais brilhantes característicos e uma meia máscara roxa nos olhos; as botas vinham até os joelhos, parece que estava armado, mas isso não garantia porque uma imensa capa preta envolvia-o todo.
Depois, quando percebeu que poderia, sem receio, terminar, fez um silêncio brusco deixando cair os braços, que agitara adequadamente no correr da sensacional narrativa.
Papai não se conteve - soltou uma tremenda gargalhada. Sentou-se na cadeira mais próxima a se estorcer, chamou-o para junto de si, passou-lhe a mão pela cabeça: Você ainda há de dar coisa na vida! - sentenciou com legítimo orgulho paternal. Em frases truncadas, sem continuidade, para o restrito e ainda boquiaberto auditório, traçou-lhe um esplendoroso porvir, e mandou-o passear.
Pegando na palavra paterna, durante umas tantas semanas, Aluísio pôs os livros de banda e não parou em casa, soltando papagaios no morro, jogando gude na rua, no meio de molecada. Chegou dia, porém, em que tanta liberdade precisava ter um freio; papai ralhou - vagabundo! - e mamãe passou o cadeado no portão de ferro. O acidente é que jamais foi esquecido, ficando conhecido na família, e contado às visitas entre gargalhadas, como o caso do bandido, ao invés do vaso da China, como seria mais justo, dada a sua origem.
Mas, origens e transformações, tudo são injustiças neste mundo, rótulos de ouro e mercadorias baratas, tanto assim que falhei, redondamente, na primeira ocasião que tentei empregar o mesmo método do mano Aluísio, hoje advogado, e se, incontestavelmente bem colocado, com uma bonita carreira na sua frente, nem por sombra tem aquele portentoso futuro que profetizara meu pai, posto para sempre distante do nosso afeto, bom pai, quando naquele ano, tão doloroso para a minha gente, chegavam os primeiros rigores do verão.
Havia uma moringa em nossa casa, da qual somente papai lhe bebia a água. Ficava dia e noite, cheia, na varandinha da copa, à sombra plácida da mangueira, para a água ficar mais fresca e se impregnar do leve sabor a barro que papai tanto prezava. Em domingos de verão, se não era infalível, frequentemente aparecia Seu Sousa para palestrar algumas horas; mamãe achava-o extremamente cacete, mas atendia-o com especiais finezas, porque o marido, que ela colocava pouco abaixo das coisas celestes, elogiava-o, com sincero ardor, como sendo um homem de peso e medida! Seu Sousa não escondia, como poderia fazer usando colarinhos mais altos, uma velha cicatriz no pescoço e era bastante enjoado, não variando nunca de conversas questões de terrenos para vender - e de graças: Você tem água gelada com gelo, compadre?
Papai respondia logo:
- Gelo é um perigo, seu burro! Mas tenho a minha bilha fresquinha e gritava para dentro: - Onde está a moringa? Olhem que o Sousa também quer.
Como se acabou de ver, este privilegiado senhor era o único mortal com quem meu pai dividia o precioso conteúdo da sua moringa. Este célebre objeto, externamente, não correspondia em absoluto a tão súbitas distinções, comuníssima moringa, dessas que se encontram nas menos sortidas das quitandas. Talvez custasse poucos tostões mais, não duvido, por ser pintada, porque lá isso era ela, com casinhas e beija-flores, dentro de um oval que era uma espécie de grinalda de florezinhas róseas e azuis. - No mais uma banalíssima moringa, como já se disse.
Já que falamos de moringa, falemos também de peteca, o que à primeira vista parecendo extravagante, senão absurdo, tem memorável relação nos acontecimentos da minha existência.
Fora uma das minhas grandes ambições, ideal de criança, bem se nota, mas, pela vida adiante, não creio que, das muitíssimas que me vieram, todas tivessem sido maiores ou melhores que a da ingênua posse duma peteca.
Numa loja de brinquedos meus olhos ansiosos tudo punham de parte, trens e velocípedes, jogos e rema-remas, para buscá-la humilde e escondida. Como, quando ia à cidade, voltava sempre com as mãos abanando e sofria horrivelmente no bonde o fato de ter, mais uma vez, deixado na sua vitrine o objeto dos meus caros sonhos, o ir à cidade era motivo para mim de secretos padecimentos, e, infelizmente, isso acontecia com certa regularidade semanal, pois mamãe, não gostando de sair sozinha, e como eu era o filho mais velho, preferia-me para acompanhá-la. Tem mais juízo! - falava. Talvez por isso mesmo fizesse o Aluísio tanta diabrura - não gostava de ir à cidade. Preferia ficar em casa, longe dos ralhos da mãe, a fazer o que lhe desse na cabeça, pedras nos quintais vizinhos, estripulias no alto do muro, maldades até, como no dia em que cortou, com o machado, o rabo da gata malhada que Lalá tinha criado com papinhas.
Uma tragédia os meus passeios, porque mamãe não chamava de outra maneira as minhas saídas. Voltava sucumbido. À noite sonhava com ela, a peteca querida, via-a minha, pular no ar, ao bater das palmadas estrepitosas, lept, lept, com as penas vermelhas, lindíssima peteca! Interessante é que não ousava pedi-la aos meus pais, sabendo perfeitamente que pouco seria o seu preço para que eles ma negassem. Idiota, poderão dizer, ilógico, poderão argumentar, levando em conta a facilidade de pedir que é própria das crianças. Nada me fará mudar: pura verdade é o que conto e a mim é quanto me basta.
Vivi assim, longo tempo, sonhando com petecas e ambicionando-as nas montras, quando um belo dia, um dos domingos do Seu Sousa - parece incrível - ele me presenteou com uma.
Nessa tarde excepcional eu compreendi o segredo difícil das simpatias. Olhei de frente o velho amigo de meu pai e, se continuei a achá-lo feio, é impossível esconder que achei-o infinitamente agradável. A grosseira cicatriz do pescoço, longe de qualquer piedade pela má aparência que causava, infundia-me, pelo seu dono, uma notável admiração, tentando ligá-la heroicamente a um episódio desconhecido da sua vida, um ataque inopinado que sofrera, de inimigos covardes, ficando aquele ferimento por lembrança, amarga e sempre viva, da sua coragem reagindo. Cheguei a rir das suas eternas piadas, corria a buscar a moringa quando era hora, ficava perto dele, ouvindo-o conversar (soube aí ser proprietário de não sei quantos terrenos em Botafogo), esperava por ele no portão, levava-o até o bonde quando se ia, largos passos, que eu mal acompanhava, o chapéu-chile de abas para cima.
Pois da moringa e da peteca nasceu uma desgraça: minha mão inexperiente impeliu a última contra a primeira e esta ficou em cacos. Ninguém se alarmou: “moringas há milhões por este mundo, iguais como as formigas” - serenou-me minha mãe, que fazia comparações engraçadas.
Tínhamos já acendido a luz quando papai chegou, atrasado, para jantar, e como fizera demasiado calor durante o dia, entrando suado, com sede, gritou logo:
- Vejam a minha moringa!
Contaram que se quebrara e eu fora o culpado por andar jogando peteca dentro de casa. Chamou-me. Dirigi-me a ele serenamente e tratei de inventar a aventura de um gato que perseguindo um rato...
Eu era, porém, pouco imaginativo e até a meio da minha história, trivialíssima, não conseguira encaixar nenhuma passagem de extraordinário realce. Verdade seja dita, não passei além do meio: papai deu-me um tabefe na boca:
- Mentiroso!
Puxou-me pelas orelhas, levou-me para o quarto, sem jantar, disse-me, com dureza, “que um homem que mentia não era um homem”, pôs-me de castigo uma semana, preso em casa, sem pôr os pés fora, na varanda que fosse. Aluísio, insensível à minha prisão, folgava, não parecendo sentir a falta do companheiro. Era de vê-la a facilidade indiferente com que supria, nos seus brinquedos, a minha pessoa ausente. Da janela do meu quarto, enquanto descansava as mãos doloridas de copiar, com boa letra e sem nenhum erro, as trinta páginas da minha geografia, que papai, pela manhã, antes de sair, inflexivelmente, me marcava, ficava vendo-o correr, subir às árvores, com desembaraço e agilidade. E invejava-o surdamente. Tinha dez anos.
(Oscarina, 1931)