Médico que nunca clinicou, professor que poucas aulas deu, filho de um português de aristocrática linhagem, Domingos José Gonçalves de Magalhães – Barão e depois Visconde de Araguaia, com grandeza, pela graça imperial a que, honra lhe seja feita, tanto e fielmente serviu aqui e no estrangeiro, aqui formando no circunspecto areópago palaciano, secretariando com pena eficiente a espada pacificadora de Caxias no Maranhão e no Rio Grande do Sul, engrossando como deputado geral o rebanho liberal do Imperador, que mantinha também o seu rebanho conservador, e que ao súdito intelectual pagava com atenciosa e admirativa moeda, lá fora como diplomata no Reino das Duas Sicílias, no Piemonte, na Rússia, na Espanha, na Áustria, nos Estados Unidos, na Argentina e na Santa Sé – Domingos José Gonçalves de Magalhães, conquanto a Poesia fosse a sua fascinação, a sua incurável doença, não nos legou uma alta obra poética. Multo aquém disso até, o que é assunto incontroversamente julgado pela melhor crítica do seu tempo aos nossos dias, crítica que não em poucos momentos chegou às portas da negação absoluta e da inútil crueldade. Enfática, enfadonha, pegajosa e sem brilho é a sua lira ao imitar os arcadianos, ao vestir com intuitiva decisão a fantasia do Romantismo – e aperfeiçoava estudos em Paris, integrando um grupo de valiosos brasileiros, quando a onda romântica lá se desenrolou – ou a embicar pelo indianismo, oportunista e interessada, e menos mal por tal lado, que a Literatura, independentemente da qualidade, é sempre interessada, mesmo que às vezes não o pareça, e, do contrário, é definida e irrevogável subliteratura. Indigente, adjetival e de superfície, como certas ladainhas, é a sua religiosidade versificada, e dela abusou, que a fé era condimento do Romantismo assim como a Mitologia fora tempero neoclássico; não tão pobre é o seu ensaio crítico, histórico e filosófico, devemos-lhe mesmo o nosso primeiro livro de Filosofia que não tenha sido um simples compêndio da matéria, devemos-lhe o Ensaio sôbre a História da Literatura do Brasil, verdadeiro manifesto das novas posições literárias, como lhe devemos a desassombrada memória Os Indígenas do Brasil Perante a História, oferecida ao Instituto Histórico, na qual concorre para reabilitar o nosso aborígine, tão impiedosa e cegamente atacado pelo prussiano Varnhagen. Péssimo e ridículo se apresenta na única tentativa de novelista; canhestro o seu teatro, louvavelmente fabricado para incentivação do incipiente palco nativo; baldo de faro se mostrou, atrevemonos a dizê-lo, ao traduzir para o ator João Caetano a tragédia de Otelo, pois não foi o imortal texto shakespeariano o que escolheu, mas o do bondoso e apagado acadêmico Jean François Ducis, a quem só resta um mérito – o de ter sido o primeiro a pôr em cena na França, embora em deploráveis adaptações, o teatro de Shakespeare, pouco respeitado ali e que o ciumento Voltaire considerava uma abominável farsa.
Seu nome, contudo, grave e cantante – Domingos José Gonçalves e Magalhães! – jamais poderá ser apagado da nossa história literária, jamais! É que, dando a lume em Paris os dois números a revista Niterói, com o lema “Tudo pelo Brasil e para o Brasil”, se torna em ponta-de-lança do nacionalismo literário, variação do nacionalismo político, que precisava ser exercitado e desenvolvido para vital afrouxamento dos velhos laços lusos, que não poderiam nem deveriam ser resolvidos à moda do nó górdio; com os seus Suspiros Poéticos e Saudades, tirados em prelo parisiense, cheios de modernidades que entusiasmaram um ávido contingente da juventude pós-colonial e sugeriram-lhe novos rumos – a nova idéia! – foi o iniciador do movimento romântico em nossa terra recém-emancipada, movimento que revelaria tão esplendorosos estros nacionais e nacionalistas, que contaminou os costumes e a índole da nossa gente, gerando correntes de uma política sentimental, temperamental e personalista, refletindo-se em muitos artigos da Constituição, movimento que afinou tão bem com a alma brasileira despontante que dele até hoje não nos conseguimos libertar, o que para nossa afirmação e singularização como povo talvez seja benéfico, e nunca na Literatura Brasileira uma influência se fez sentir com tanto peso e extensão quanto a dele; por mais de um decênio se constituiu a incensada glória oficial, a bem dizer, na própria Literatura brasileira, e nela só se ingressava pela sua mão apostólica – era considerado gênio fundador, guia, bússola, patriarca –, reinado à margem do outro de manto de papo de tucano e que somente José de Alencar, com a força telúrica da sua improvisação, viria derrubar do trono para encarapitar se nele. Cônscio e vaidoso da condição predestinada e fulgurante chama, quando não passava de modesto vaga-lume renovador, orgulhoso do seu sangue, da sua posição e da sua classe, Domingos de Magalhães levou rigorosamente a sério o encargo divino de criar a Literatura nacional e, queiramos ou não queiramos, com ele se inicia a carreira literária no Brasil – é um fundador! – a sua fria e orgulhosa brasinha acendeu a pólvora do paiol nativista, explosão que iluminou os céus da pátria nascente com a mais bela, eterna e auriverde pirotecnia. E cabe a moral, se a moral na Literatura fosse coisa que nos afligisse, de que não são os grandes astros que promovem as revoluções literárias, mas, no comum das vezes, os inocentes pirilampos ou os fugazes meteoros.
De sorte que quando o lúcido e fino Carlos Magalhães de Azeredo, um humanista acima de tudo, foi buscá-lo para patrono da sua Cadeira de fundador na Academia Brasileira – a Cadeira 9, que pela generosidade dos membros desta Casa ilustre acabou entregue à minha humilde guarda – não fez mais do que um ato de sensível e inteligente justiça literária. Sim, como olvidar, ao serem escolhidas quarenta figuras patronais, e houve tanta escolha sentimental em detrimento do mérito, aquele que quando a sociedade do tempo não oferecia condições para outro tipo de atividade literária, salvo a bafejada pelo mecenato, pela proteção e beneplácito do erudito D. Pedro II, às Letras se dedicara com paixão, constância, zelo, multiplicidade e devoção? Como não reconhecer e perpetuar o esforço de quem, na aridez de um meio colonial, limitado e caturra, pregou idéias novas, “sonhou com o ideal de um lirismo de alta envergadura, a um tempo brasileiro e universal”, e fundou revistas, lançou manifestos, congregou confrades, aliciou prosélitos, empurrou companheiros, concorreu para o desenvolvimento das Artes plásticas e cênicas, estimulou um Martins Pena para os primeiros passos de uma ribalta de cunho nacional, auxiliou todos os empreendimentos culturais com o poder e o respeito público e oficial que amplamente desfrutava e que poderia ter aproveitado para o seu exclusivo e pessoal interesse?
Não escapou Domingos de Magalhães ao fascínio que a morte exerceu sobre os primeiros românticos, a ela consagrou um volume inteiro – Cânticos Fúnebres – onde tantos trechos se confundem com o grotesco, com o caricatural, e está presente, com menos tarja preta e menos mau gosto, nos Suspiros. Juntando-o à nostalgia do exílio, vezo também romântico, que todavia nos deu a imorredoura “Canção do Exílio”, termina o livro:
Adeus, ó terras da Europa!
Adeus, França! adeus, Paris!
Volto a ver terras da Pátria,
Vou morrer em meu País.
Sonhava morrer aos vinte e cinco anos, e nas doces plagas natais:
Terras em qu’eu nasci, como sois belas!
Como és formoso, ó céu da Guanabara !
pondo os olhos moribundos nas águas da Guanabara, que ele ainda na Confederação dos Tamoios, donde extraímos os dois versos acima, por pura ênfase, consideraria
“cerúleo golfo”:
Contemplando esse mar que em flor se quebra
Nessas longínquas praias e enseadas,
Que recortando vão da terra as orlas,
Como uma argêntea franja abrilhantada;
E esses contínuos montes verdejantes,
Que o vasto Niterói cingem e fecham
Como em profundo lago, salpicado
De graciosas ilhas. Ah! disseras
Um pedaço do céu cheio de estrelas,
Guardado entre muralhas de esmeraldas!
Ressupino gigante de granito
Protege a entrada do remanso equóreo;
E coo pé colossal, penedo ingente,
Ao longe mostra a barra ao viajante,
Que absorto fica a ver a maravilha!
Sonhava morrer aos vinte e cinco anos e nas doces plagas natais, repitase. Morreu quarenta e seis anos mais tarde e em Roma, como embaixador, coincidência que se verificaria quanto ao fundador da Cadeira 9, que serviu no Uruguai, na Santa Sé, em Cuba, na Grécia, e novamente no Vaticano, junto ao qual permaneceu vinte anos, quando se aposentou em 1934, pela lei compulsória.
Com raízes no Romantismo, Magalhães de Azeredo traz bastante marcado o cacoete da morte em seus primeiros versos – Procelárias publicados no Porto em 1898 e louvados por Machado de Assis. Tinha vinte e seis anos, vinte e seis anos prósperos, risonhos e saudáveis, e a sua estréia nas Letras se dera três anos antes, com os apenas promissores contos de Alma Primitiva, estampados no Brasil e com simpatia recebidos pela crítica mais destacada.
Morte, ó Morte, quando eu quero o teu beijo frio...
Assim começa o soneto “A Morte”, para terminar com a mortuária chave de ouro:
Morrer, sair enfim desta pocilga imunda...
Para Deus? para o Nada? Embora! é diferente...
E em “A Caveira” o artificialismo, que cheira à Noite na Taverna, se repete:
Ela me diz fatídica: Repara
Onde é que findam sonhos de poetas...
Na “Velhice de Don Juan”, o espanhol suspira:
...Vem a noite eterna; ó alma,
Que voaste tanta vez nas asas da procela,
Busca da sepultura a desejada calma!
Lá está em “Seu Nome”:
Porque teu braço, justo Deus, lhe nega
O refúgio suavíssimo da morte?
E pulemos para o “Soneto Negro”:
Que valeu caminhar e sofrer tanto?
Sem ter um eco, sem deixar memória,
Comigo, e breve, morrerá meu canto!
Eis de uma curta vida a amarga história;
Compreendei-o vós, que sabeis quanto
É triste a decadência antes da glória !
Citemos agora o fim de “Póstumas”:
Eis, ora, o que de mim resta no mundo,
Um corpo que sem vida se consome,
Ermo túmulo fundo
E um simples epitáfio que é meu nome.
E por fim, para não exagerarmos as citações, vamos a outra chave de ouro, a do sonêto “Oblivion”:
Até que venha o dia em que se plante,
Na sombra do meu túmulo ignorado,
A eterna cruz do esquecimento eterno!
Mais veraz, mais autêntico seria pouco depois nas Baladas e Fantasias, lançadas em 1900 no Brasil, quando vaticinaria: Sim, sou moço! e eis o que muitos secretamente invejam. Sou moço, e tratarei de o ser por longo tempo ainda, e defenderei enquanto puder o sacro tesouro da juventude!..
E viveu muito – quase um século.
Filho único, órfão de pai muito cedo, nasceu Carlos Magalhães de Azeredo de família conservadora e abastada, em que o sentimento monárquico era muito acentuado. Cercava-o a mesma tendência no colégio dos jesuítas, Colégio São Luís, em Itu, para onde fora, após cinco anos de permanência em Portugal, quando fizera as primeiras Letras no Colégio São Carlos, do Porto. Mas na tradicional cidadezinha paulista, como depois na Faculdade de Direito de São Paulo, na qual se bacharelou em 1898, e destacou-se como talentoso orador e neófito jornalista, dava-se como um político loquaz e apaixonado, com inclinações liberais, sobretudo abolicionistas, seduzido pela contagiante eloqüência de Nabuco. Após a vitória da Abolição, vitória moral mas não econômica e que viria apressar a queda da Monarquia, a “febre partidária sofreu um rebaixamento repentino”, porque teve a intuição de que se encerrava ali um período heróico. Essa febre denunciava apenas, disse mais tarde, em 1922, em Dom Pedro II, traços da sua fisionomia moral, “uma crise de crescimento, como em outros a febre poética”. No decurso dos anos, acrescentou, talvez por falta de um “motivo de agir”, que o inflamasse, nunca mais o seduziram “as sereias daquele pélago insidioso”. E devotou-se à Literatura.
No seio da Arte pura depus a ambição. Que alto prêmio vale o de humildemente servi-la. Esse me basta.
Declama nas Odes e Elegias, tão corretas de forma, tão belas de linhas, sons e cores, tão eloqüentes e puras de linguagem, um livro de qualidade, inegavelmente o melhor livro da sua não pequena e tão valiosa bagagem literária.
Mas a memória do escritor não foi fiel. Teve ainda um outro “motivo de agir”. Quando rebentara a revolta de 1893, e estava evidente que o movimento escondia uma tentativa de restauração monárquica, haja vista as forças que a ela aderiram, os homens de letras se dividiriam em duas facções radicalmente opostas, sob o influxo das paixões políticas. E que estivesse com a dos revoltosos não há dúvida. Se não se enfiou de corpo inteiro na ação, dado o seu gênio, meteu a alma ou um pedacinho dela, para se usar uma imagem de feição machadiana, tanto assim que, para evitar perseguições florianistas, que as cadeias andavam repletas e até execuções haviam sido praticadas, a família, em boa hora, envia-o para São João del-Rei e daí se refugia em Juiz de Fora, longe das rigorosas vistas policiais, quanta vez mais florianistas do que o próprio Floriano e encorajadas e acobertadas pelo estado de sítio. E foi na abrigada terra mineira, muito orgulhosa da liberdade embora tardia, que trabalhou muita poesia das Procelárias e se ligou mais intimamente a Olavo Bilac; foi lá que escreveu a maior parte dos contos da Alma Primitiva, coisa fácil de se verificar porquanto cada conto traz a data e o lugar da sua fatura; como foi lá que compôs, de parceria com o poeta da “Via-Láctea”, o romance O Sanatório, aparecido sob o pseudônimo de Jaime de Ataíde na Gazeta de Notícias, reduto da mais fina intelectualidade da época.
Passada a borrasca, e venturosamente não há borrasca que sempre dure, consolidada a República, mesmo a trancos e barrancos, Magalhães de Azeredo torna ao Rio de Janeiro, e estamos em 1894. Seu desejo manifesto era entrar para a magistratura, mas acabou nomeado para os quadros da diplomacia. Vai servir no Uruguai. Não permanece muito tempo em Montevidéu. Apenas um ano, mas tempo bastante para noivar e casar-se com Maria Luísa, de grandes olhos azuis, bonita, inteligente, elegante, musicista, possuidora de linda voz de contralto, anjo cubano, filha de emigrados políticos – os Caymari; já haviam eles morado no Rio, gente honrada, distinta e trabalhadora, e esperavam com ardor que Cuba ainda fosse livre, quando iriam a Havana erigir uma cruz de pedra aos famosos mártires das frustradas liberações.
As sogras não merecem muita fé, porém a de Magalhães de Azeredo, escrevendo a Quintino Bocaiúva, de quem os Caymari ficaram devotados amigos, participava o noivado da filha: “O jovem tem talento e boas qualidades.” E diria mais: “Os dois valem o que pesam e perdoe-me minha falta de modéstia, pois é a pura verdade.” E está perdoada porque era assim mesmo – um casal exemplar, que carregou por toda a vida uma única tristeza: a de não deixar descendência.
Do Uruguai, Magalhães de Azeredo é transferido para o Vaticano.
Roma em lua-de-mel é um céu aberto.
Vale a pena viver aqui uns dois anos para conhecer tudo o que se deve conhecer – escreve a Quintino, de quem se fazia amigo e protegido. –Roma é uma cidade admirável, em que os olhos e o espírito muito tempo podem gozar cada dia um espetáculo novo.
E acabaria verificando que Roma poderia ser vista com crescente interesse, por toda uma longa existência. Naquele céu aberto, porém, sofreria uma injustiça: seria demitido do cargo por embuçada denunciação do ministro residente, cavalheiro que, segundo o próprio Magalhães de Azeredo, era “intrigante, caluniador e de baixas qualidades morais”, além de reconhecidamente relapso, e só “por deferência para com o Brasil, e por um sentimento de generosidade mal-entendida, a Santa Sé nunca tomou a iniciativa da denúncia”.Alegava o antepassado do “dedo-durismo”, que Magalhães de Azeredo facilmente identificou, não estar o segundo-secretário de legação “de acordo com as instituições da República”, esquecendo-se das palavras do insuspeito Nabuco, em Um Estadista do Império:
Nada abalava as duas idéias do imperador: que não se devia tocar na imprensa, e que as opiniões republicanas não inabilitavam nenhum cidadão para os cargos que a Constituição fizera só depender do mérito.
Esqueceu-as o ministro das Relações Exteriores, esqueceu-as, ou jamais as deveria ter lido, o vice-presidente da República em exercício. E Magalhães de Azeredo por tais esquecimentos e omissões foi demitido em 16 de fevereiro de 1897, mal chegado ao posto. Na desagradável emergência, a sua correspondência com Quintino Bocaiúva, prócer da nova e encrencada República, varão por todos ouvido e respeitado, se faz assídua e necessária. Este querido Brasil é, felizmente, tão Brasil, apesar dos oportunistas e delatores, que não iria negar fogo na hora exata – as coisas se acomodaram e o segundo-secretário foi readmitido:
A reparação não podia ser mais completa, pois não só me reintegraram,mas me restituíram o mesmo cargo que eu ocupava, confundindo assim plenamente a perfídia... Mais uma vez se demonstrou que nada é impossível ao prestígio do nosso tão prezado Amigo – agradece a Quintino, que por trás dos bastidores andou tecendo os pauzinhos,agradecimentos que a gentil Maria Luísa reforçaria: “...realmente só um coração nobre e afetivo como o seu podia fazer tanto.”
E, graças a Quintino, Roma voltara a ser para o jovem par o mesmo ninho ditoso. E não ficaria aí o desvelo do velho político e amante das Letras pelo escritor e diplomata. Graças a Quintino remoções foram tornadas sem efeito. Graças a Quintino seria promovido, mas não removido, permanecendo no Vaticano, onde o papa o honrava com a sua simpatia. E foi uma troca de favores e cartas que só terminaria com a morte do líder republicano na sua chácara suburbana, afastado da militância política, melancolicamente – e são palavras epistolares de Magalhães de Azeredo
– comparando o sonho que trouxera e nutrira em si por largos anos, com a realização dele,forçosamente imperfeita e incompleta, quando a essa decepção intelectual se junta a hostilidade dos que deveriam ser amigos,a ingratidão dos que deveriam ser reconhecidos, a sôfrega ambição dos medíocres que para alcançar o poder e a influência não hesitam e afastar brutalmente aqueles que podem fazer da autoridade um verdadeiro instrumento do bem público.
Há, porém, uma outra correspondência, mantida por Magalhães de Azeredo durante vinte anos e que somente findaria também com a morte do destinatário carioca – a correspondência com Machado de Assis, cuja importância, extensão e grandeza não tem similar na nossa vida literária. Iniciou-se quando Magalhães de Azeredo ainda estudava no colégio de Itu, tinha ele dezessete anos incompletos e Machado entrava nos cinqüenta. Foi o vínculo postal do homem que não tinha filhos com o adolescente que não conhecera o pai; foi o colóquio, através dos mares, do mestre afetuoso e discreto com o aluno atento e respeitoso; são lições de maturidade e sabedoria de um lado, são explosões de encantamento, entusiasmo e descobertas do outro. Nelas o fechado habitante do Cosme Velho, para surpresa de muitos, se abriu em confissões literárias e íntimas, nelas o diplomata se mostrou em toda a sua claridade. Nelas o moço incita o sedentário a viagens, e o velho encontra sempre pretexto para recusá-las. Trocam opiniões e inquietações, trocam comentários miúdos, trocam Literatura, trocam retratos, e o visitante que no recatado chalé do Cosme Velho entrasse, embora não passasse da sala, verificaria que só uma fotografia adornava aquelas paredes severas – a de Magalhães de Azeredo, quando jovem.
Se o jovem queixava-se de esplim, o infatigável trabalhador de Dom Casmurro aconselhava: “... nada mais verdadeiro e eterno do que aconselhar o trabalho à mocidade... não resvale do repouso necessário no ócio excessivo”. Se o moço dá notícias da saúde, que andara abalada, o velho, depois de se alegrar, confessa:
Já não posso dizer a mesma coisa de mim. Cansado de longos anos, não robusto, vejo irem-se os anos mais depressa do que vieram, enão sei se breve terei de parar, à espera que passe o derradeiro trem.Veja que bom consolador lhe saio hoje! Acabo falando em cousas tristes.Há minutos desses que não se podem tirar do relógio da alma, o mais que se alcança é dar outro aspecto ao mostrador. O ponteiro marca a alegria, enquanto a mola interior vai na direção do pesar.
Se Magalhães de Azeredo lamenta as canseiras diplomáticas, lá vem o sábio mocho: “Cada ofício tem os seus tédios, e cada tédio faz-se suportável com a continuação.”
Admirável é o estudo de Magalhães de Azeredo sobre Leopardi, e mestre Machado felicita-o: “Leopardi é um dos santos da minha igreja, pelos versos, pela filosofia, e pode ser que por alguma afinação moral; é provável que também eu tenha a minha corcundinha.”
Mas na copiosa correspondência encontra-se uma carta, que muito interessa aqui e agora. É quando surge a idéia da Academia Brasileira. Magalhães de Azeredo dirige-se prontamente ao mestre a 4 de janeiro de 1897:
Li nos jornais ultimamente chegados daí que grande número de escritores brasileiros se reuniu para fundar a Academia de Letras, aclamando-o presidente, como era de justiça. Aplaudindo a idéia e achando-a capaz de produzir benefícios e brilhantes resultados, peço-lhe quena primeira reunião que houver, depois de recebidas estas linhas, declare aos sócios em meu nome que, embora de longe, me identifico com eles no mesmo intuito, e me ofereço para prestar à nova Academia os serviços que eu possa prestar aqui.
Machado de Assis vai além do recado – manobra com a sua habilidade e prestígio pessoal e, a 28 do mesmo mês, os trinta fundadores elegem os dez sócios que completariam o quadro de membros fundadores da Academia e Magalhães de Azeredo obtém a unanimidade dos sufrágios – tinha 25 anos e derrotava um Rio Branco, um Augusto de Lima, um Constâncio Alves, que só mais tarde pertenceriam à Casa.
Logo após esse triunfo, vem a desolação já abordada da exoneração. As cartas do Brasil mínguam. A do mestre e amigo não chega. Magalhães de Azeredo reclama, queixoso, ao que lhe responde o grande eleitor:
Não creia em mudança alguma da minha parte... A correspondênciapode ter desses hiatos alguma vez... Ultimamente tenho andado assaz fatigado.
E sem tocar muito na demissão:
“Ainda bem que os desgostos pessoais e da carreira não vêm atrasar os seus trabalhos de escritor e de poeta.” Conclua o seu livro sobre Roma. E, pouco depois, em carta para Veneza, é consolativo: “Em verdade, só uma cousa perdura: todas as mesquinharias da vida não valem o tempo que se gasta com elas.”
A diplomacia sempre foi um problema nosso de afastamento da pátria, progressivamente intenso e que podia chegar à total anestesia; uma moderna mentalidade funcional tem procurado coibir o desgaste, e esperemos que ainda mais se aprimore no propósito. Magalhães de Azeredo era diplomata do antigo molde; tendo passado quase inteiramente a sua longa existência longe do Brasil, contudo jamais ficou a ele indiferente. São versos de 1900 este “Carme Secular”:
Pátria: não cuides que, egoísta,
Em Roma, na áurea torre ideal, eu me encerrasse,
Para, sonhos só de artista
Sonhando, te voltar ingratamente a face;
E, à tua voz desatento,
Sepultar-me em tranqüilo e fundo esquecimento.
E como percebesse a amnésia por parte de muitos compatriotas, possivelmente diplomatas:
Outros há, sei, que por menos
Te olvidam, Pátria doce e amarga, e são felizes;
Vivem fortes e serenos,
Tais como plantas no ar crescendo sem raízes...
A orgia os nutre e os degrada;
E não pensam em ti... pois não pensam em nada!
Esses toda a glória nossa
Desdenham: pouco a pouco o nosso mesmo idioma,
Na língua, que tarda e grossa
O obsceno rir lhes fez, tons estrangeiros toma.
Enquanto ele, cada dia apurando mais a sua língua literária, que é de primorosa categoria, tentava com isso ficar mais perto do Brasil. E procurava inovar a métrica portuguesa, adaptando a ela, tal como vários poetas fizeram para a Poesia italiana, os metros da Poesia latina, a que Carducci chamaria de bárbaros, em oposição aos metros clássicos gregos e latinos, metros que os modernistas retomariam com mais liberdade, e cujo exemplo melhor é o modulado final das Odes e Elegias :
Não me coroes, Alma querida, de rosas: o encanto
da Juventude é efêmero; e a minha é quase extinta.
Também não me coroes de louros: a Glória não fala
ao coração, nem o ouve; passa, longínqua e fria.
Coroa-me das heras, que abraçam as graves ruínas:
são da humildade símbolo, e da tristeza eterna...
A prolongada ausência, porém, inexoravelmente corrói, abre insoterráveis distâncias, cria oceanos ainda maiores, e, ao percebê-lo, Magalhães de Azeredo, tomado pela saudade, reage:
Oh! recordar... recordar.., um dia daqueles anos, cujas reminiscências,
de modo particular, me são caras, por terem sido os únicos
integralmente brasileiros da minha existência! Um dia!... na antiga chácara
para sempre saudosa, onde a velha mangueira reinava, conheci eu
todas as horas do dia, e dias de todas as estações.
E a mangueira amiga era um ponto fixo na sua saudade:
Ó velha mangueira! ó matriarca do bosque brasílico! ó velhaamiga encantadora! Não raro, nas horas da dúvida angustiosa e da saudadecruciante, em que o homem volve os olhos ao passado com aamarga certeza de não poder ressuscitá-lo, e discute de si para si ovalor e a inutilidade da própria existência, eu me pergunto se não houvera sido mais justo voltar, apenas conseguida a felicidade, para juntode ti, edificando o meu lar à tua sombra hospitaleira – em vez de lançar por alheio solo raízes de costume e de afeto, tão fortes como astuas... Então, empolga-me um desejo frenético de ir procurar-te, além do oceano, lá, no fundo da chácara antiga, no sopé da colina banhada pelo córrego fresco, e de pendurar o meu coração, perpétuo dom votivo,como um pomo entre os teus pomos.
Apesar disso, ao aposentar-se no estrangeiro ficou. Precisamente em Roma que ele tanto amava, como homem e como artista, amor que nunca escondeu, que, pelo contrário, sonoramente, proclamou nas Odes e Elegias, que são de 1904, e o livro todo um hino de amor e compreensão à Cidade Eterna:
Roma, nas ondas sacras do Tibre, nas auras sonoras,
que vão pelos Hortos Farnésios
e pelas fundas vilas, de tanto arvoredo cingidas,
levando perfumes e lendas,
eu embalei meus sonhos mais caros: as doces quimeras
do espírito jovem e ousado,
as rútilas imagens que à mente sorriam, as flamas
do meu coração amoroso,
as alegrias simples, as trépidas melancolias,
que em mim se alternavam lutando...
Todo o meu ser, ó Roma, vibrou no teu seio materno.
o que constitui confissão de legítima filiação espiritual. Ou então:
A planta da poesia, que ingênua em meu berço brotara
na gleba do trópico ardente,
cresceu, abriu-se (foi-lhe lustral a água nívea das Fontes que as moles
colinas te banham,)
abriu-se vitoriosa num basto rosal purpurino.
Ó Roma, estas rosas são tuas !
o que de algum modo relegava a poesia da sua iniciação em favor daquela que
o contato fecundo e purificador com a cultura latina sazonaria.
A descoberta do mundo romano foi-lhe deslumbramento e entrega!
É a hora ideal do ocaso. Dulcíssimo ocaso de Roma!
As cúpulas airosas fulgem no céu ardente;
nas vilas, nos palácios, as brancas estátuas parecem
de quase imperceptíveis frêmitos agitadas,
pela aura vespertina, que aromas de rosas e mirtos
– pagãos aromas – move. Do Tibre as flavas ondas
no curvo dorso levam o sangue do poente abrasado
– elas que tanto sangue de povos já levaram...
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Apóias-te à janela. Contemplas a pulcra paisagem.
Oh! céu em que as violetas da tarde empalidecem!
Ora se vão teus olhos ao nobre Janículo, ao cimo,
onde entre verdes troncos a Água Paulina rola
vagas harmoniosas em leito de róseo granito;
e às monacais e frias ceias de Santo Onofre,
que viram o ígneo gênio do Tasso, lembrando Eleonora
e Godofredo o invicto, fugir à vida ingrata...
ora, passando o sumo Zimbório, que esbelto, nos ares,
firmara o hercúleo braço de Buonarroti, fitam
o túmulo orgulhoso do artista Adriano, onde, mesto,
compadecido, o Arcanjo recolhe o gládio férreo;
e estendem-se mais longe, no baço crepúsculo ambiente,
e Roma inteira abrangem – o Píncio, o Capitólio,
o Palatino – cinza de régios orgulhos! – a torre
hirta, que tem o nome de Nero, o campanário
de Cósmedin, que as gralhas rodeiam em vôos ruidosos,
e, ao fundo, os montes de Alba, do Túsculo, esfumados.
A citação foi longa, e quanto gostaria de ir mais além, que é belo relembrar as coisas belas e belos são os versos de Magalhães de Azeredo nas Odes e Elegias, impregnadas de paganismo, “esta fonte inesgotável contra a qual” – diz José Veríssimo comentando o poeta – “lutou em vão o Cristianismo...”o único manancial verdadeiramente fecundo de inspiração poética e estética, o único donde haurimos o nosso amor à vida, o nosso sentimento da Natureza, a nossa sensação de beleza, o nosso gosto de liberdade, até a nossa profunda aspiração do bem.
Como poderia se sentir à vontade voltando ao chão em que nasceu, mas no qual tão pouco viveu? Quarenta anos de profissão: distante dele não são uma bagatela, e ainda uma apreciável porção da meninice passara em Portugal, onde aprendera a ler...Outros se fizeram os seus hábitos na prolongada ausência, outras se fizeram as suas necessidades, outro era o seu círculo de relações e as suas leituras, outros eram os seus contatos e seus conceitos de vida. Que amigos da mocidade encontraria aqui? Talvez nenhum! Da fornada de fundadores da Academia apenas seis ainda e precariamente viviam. Machado de Assis, que o impulsionara nas Letras, amigo e mestre dileto com quem durante vinte anos mantivera tão alto comércio de idéias e sentimentos, há muito estava morto, e das primorosas cartas trocadas, perfeita antologia epistolar da sensibilidade e da inteligência, que sabiam delas as novas gerações? Que poetas novos o conheciam? – que estranhos caminhos tomara a Literatura Brasileira! Com que companheiros de carreira poderia contar? Raríssimos! e doentes, acabados, à beira da sepultura. Monarquista de formação, com elogios impressos a D. Pedro II, conquanto tivesse sempre servido leal e dignamente a República em toda a sua prolongada carreira, como poderia escapar ao barulho republicano a que aperfeiçoamos os nossos ouvidos? Ou pior, como suportar “as épocas de opressão política” – e as palavras são de Magalhães de Azeredo, escrevendo sobre Garrett em Homens e Livros – “em que a inteligência tem tão pouca parte no governo, toda a perspicácia dos déspotas e dos esbirros se concentra na adivinhação das idéias subversivas?” – ele que já a experimentara, sob a ditadura de Floriano Peixoto, quando, para escapar a perseguições, refugiara-se na terra de Tiradentes?
Difícil seria, se não impraticável, para quem já fizera o elogio da vida calma e contemplativa: “Entre tanto barulho ensurdecedor e vão, tanta velocidade vertiginosa e sem meta... empolga-me dez vezes por dia um desejo louco de fugir para longe, bem longe”... na delícia de “mirar sem pressa, gostosamente, árvores, ondas, nuvens, estrelas, pensando em coisas transcendentes e inatuais”.
E sempre fora amante das horas solitárias, sempre, desde os tempos infantis:
Lembra-me que, no colégio, quando cometia alguma falta, me era infligido, por pretenso castigo, passar as horas de recreio numaaula, sozinho. Pretenso castigo; mas antes deleitoso prazer. Porque eu preferia à garrulice dos companheiros aquele ermo cheio de silêncio e mistério. Com um bom livro diante dos olhos, ou com estes a flanar simplesmente, desde a janela da aula, por sombria avenida de bambus,que a enfrentava, ou pelo denso arvoredo, um pouco distante, da chácaracolegial, eu gozava ali de inolvidáveis momentos de íntima, pura,espiritual volúpia.
Fez bem, portanto, em ficar na sua amada Roma – e mais trinta anos ficou! – cidade imortal, que tão elevadamente soube cantar em prosa e verso, a ponto de Tristão da Cunha considerá-lo “um romano” – “romano dos papas, isto é, cristão e pagão”, “que preza o espírito da Igreja, sua economia, sua disciplina”, e “preza também na Igreja a pompa, a volúpia, a mística”, “entregou-se a Roma. E Roma dá-lhe bom pago”.
“A pátria é, antes de tudo” – escreve em O Eterno e o Efêmero, que data de 1936, como explicação talvez da sua permanência romana– uma sensação, e a memória de uma sensação; sensação múltipla, tão intensa como difusa, que penetra e satura todos os sentidos, e por meio deles se infiltra nas camadas mais recônditas da existência; sensação de temperatura, de clima, de vária, mas característica fisionomiadas horas e das estações; é cor, densidade, aroma, sabor, da atmosferae do solo; é o desenho, policromia, relevo, movimento da paisagem; é consórcio sutil, incessante, da luz e da sombra; é música dos ventos e das águas, é consciência de seguro agasalho, em uma terra que nos pertence, e à qual pertencemos; é, nas figuras, nos gestos, nas falas,nos costumes, dos que nos rodeiam, comunhão cotidiana com criaturas,que, no essencial da vida, vivem como nós vivemos, são o que somos nós mesmos.
Senhores acadêmicos:
A vossa Cadeira 9 é plena de coincidências. E de mais uma eu vos dou prova aqui, caso aliás único entre as quarenta: carioca era o patrono, carioca da Praia Grande; carioca era o fundador, carioca da chácara com mangueiras, aclimado à frescura das fontes e à sombra dos pinheiros de Roma, fontes e pinheiros que Respighi musicalmente retratou; carioca é o vosso novo companheiro, carioca de Vila Isabel, bairro que tem nome de princesa, mas é proletário e pequeno-burguês, e cuja gente humilde foi o básico material da sua ficção e do seu amor. E por que não pensar que esta Casa, que é de todo o Brasil, querendo talvez homenagear a Cidade Quatrocentona, que é a cidade de todos os brasileiros, não tenha só por isso preferido o carioca nato que aqui vos agradece e termina?
28/5/1965