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Luís Edmundo

           RISUM TENEATIS

Teus olhos claros me disseram,

Como se fossem tua voz:

Ama-me... Os olhos também falam;

E quando os nossos lábios calam

O gesto e o olhar falam por nós.

 

Quando os teus dedos se encontraram

Nos dedos meus cheios de ardor,

Tua alma cálida fremia;

A tua mão nervosa e fria

Disse-me todo o teu amor.

 

Sorrias tu como uma estátua;

Lívida e cheia de emoção

Tu não falaste... a boca mente,

Tu foste minha inteiramente,

Foi meu teu virgem coração.

 

Passou no entanto aquele dia

Em que com febre e embriaguez

As nossas almas amorosas

Se uniram, trêmulas, ansiosas,

Pela primeira e última vez!

 

A boca mente... tu falaste...

Sem pressentir a minha dor...

Tu me negaste o amor ardente

Que em ti vibrava... a boca mente...

E tu mentiste, meu amor!

                                                                                  (Poesias, 1907.)

 

                     OLHOS ALEGRES

Há uma lágrima, sempre, atenta em nossos olhos,

Uma lágrima branca, uma lágrima pura,

E assim como no mar os traiçoeiros escolhos,

Ela, escondida, a flor das pálpebras procura.

 

Aí fica parada; os íntimos refolhos

Da nossa alma reflete, e, quando uma ventura

Em riso nos entreabre os lábios, com doçura,

Ela, a lágrima fica a nos tremer nos olhos.

 

Tu, que és moço e que ris e não sabes da mágoa

Do mundo, tem cuidado, olha essa gota d’água,

Se não queres da vida achar-te entre os abrolhos;

 

Ri, mas ri devagar, que a lágrima traiçoeira,

Talvez, vendo-te rir assim dessa maneira,

Trema e caia afinal um dia dos teus olhos!

                                                                                  (Poesias, 1907.)

 

                        OLHOS TRISTES

Olhos tristes, vós sois com dois sóis num poente,

Cansados de luzir, cansados de girar,

Olhos de quem andou na vida alegremente

Para depois sofrer, para depois chorar.

 

Andam neles agora a vagar lentamente,

Como as velas das naus sobre as águas do mar,

Todas as ilusões do vosso sonho ardente.

Olhos tristes, vós sois dois monges a rezar.

 

Ouço ao vos ver assim, tão cheios de humildade,

Marinheiros cantando a canção da saudade

Num coro de tristeza e de infinitos ais.

 

Olhos tristes, eu sei vossa história sombria

E sei quando chorais cheios de nostalgia,

O sonho que passou e que não torna mais.

                                                                                  (Poesias, 1907.)

 

                 FIM DE UM POEMA

Termina a nossa história aqui neste soneto.

Senhora, o meu amor tinha a expressão sincera

Que os corações abala e as almas dilacera,

E não fostes Ofélia e hoje eu sou como Hamleto.

 

Esquecer vossa graça e o vosso amor prometo;

Que eu sinto dentro em mim esse poder que gera

As firmes convicções, ó flor da primavera,

De lábio cor-de-rosa e de cabelo preto!

 

Punge-me, é certo, a dor que inda em vossa alma existe,

Que também eu não sou um satã de maldade

Para rir da expressão do vosso olhar tão triste!

 

Mas, enfim, é a razão, e eu me curvo e submeto...

E, crede, deste amor só me resta a saudade.

Termina a nossa história aqui neste soneto.

                                                                                  (Poesias, 1907.)

 

                        CLAUSTROS

Pelas arcadas altas e sombrias

Destes claustros sinistros e tristonhos,

Anda o segredo místico dos sonhos

Das brancas monjas pela morte frias.

 

E o som dos passos, que nas galerias

Rolam numa cadência combalida,

Não acordam jamais a história e a vida

Dessas que foram como a luz dos dias.

 

Pois, como os claustros, esses claustros, onde

O misticismo que domina esconde

Dos monges tudo que a sonhar levaram,

 

Há corações tristonhos e doridos

Que guardam de outros tempos, tempos idos,

O segredo de tudo que sonharam.

                                                                         (Rosa dos Ventos, 1919.)

 

VIVA LA GRACIA!

Calle Alcalá: Manolita

Que vais a Puerta del Sol.

Consuelo, Concha ou Paquita,

És de Madri, senorita,

De SegÓvia ou de Ferrol?

 

Tens dos versos de Zorilla

A essência meridional.

Com o teu manton de manilla

Lembras noites de Sevilla

Perfumes de naranjal.

 

Dias de toiros, fanfarras,

O estouvamento febril

Das seguidillas bizarras

Com Xerez e com guitarras

E requebros de quadril.

 

De onde vens, flor rescendente,

Nessa alegria louçã

Que perturba toda gente?

De um livro de Benavente?

De um quadro de ZurbarÁn?

 

E Manolita, apressada,

Indiferente e veloz

Nem vê minha alma abrasada

Que a segue pela calçada...

Viva la Gracia. Por Diós!

                                                                             Madri, 1913.

                                                                      (Rosa dos Ventos, 1919.)

 

                 VERSOS A CLÁUDIO

Olha este riacho azul que vem da serra

E é um fio de cristal que vai rasgando

O seio bom e ubérrimo da terra,

O campo das lavouras fecundando.

 

Veio claro brotado entre açucenas,

Junto a um rochedo negro e luzidio,

Nem vai ao mar, que o pobre rio apenas

É o simples tributário de outro rio.

 

No entanto, olhe-se o campo em que ele desce,

A paisagem que o beira e que o emoldura,

O arvoredo copado, o trigo em messe,

Das campinas, a esplêndida fartura.

 

Tudo é fecundação, vida. A semente

Cai sobre a terra e brota. E, caminhando,

Lá vai ele descendo, lentamente,

A riqueza dos homens espalhando.

 

Vai; adiante, na curva de um caminho,

Num movimento de águas, em cachão,

Ele é que faz mover o velho moinho,

O trigo moendo e preparando o pão.

 

E, quando a noite, pelo céu sombrio,

Desce por sobre o campo e sobre a vila,

O homem na paz dos seus bendiz o rio

Que a existência lhe torna mais tranquila.

 

Deus, ao fazer a natureza, um dia,

Pôs nela toda a luz do seu ensino.

Por isso este regato cristalino

Vale um compêndio de filosofia.

 

Busca nele, meu filho, o teu retrato.

Sê útil, simples, bom, pra ser humano.

Muita vez a humildade de um regato

Vale todas as glórias de um oceano.

                                                                        (Rosa dos Ventos, 1919.)

 

NESTA VIDA DE ÁSPEROS CAMINHOS

Nesta vida de ásperos caminhos,

A Ventura, querida, é como a rosa:

Nasce cercada de cruéis espinhos.

E é por isso que a vida é tormentosa.

 

Punhais agudos, ríspidos, daninhos,

Servem de escudo à nossa mão nervosa.

Ventura, tu que embriagas como os vinhos,

Por que és, assim, tal falsa e caprichosa?

 

Meu amor, tu que a buscas, tem cuidado;

Que o teu gesto não seja desastrado

A erguer, assim, a tua mão formosa.

 

Não imaginas como sofreria,

Se te visse chorar, descrente, um dia!

A Ventura, querida, é como rosa...

                                                                          (Rosa dos Ventos, 1919.)

 

              CANTARES

                      I

A rosa da tua boca

Que é uma flor linda e viçosa,

Deixa beijar... Mas que asneira!

Que ideia insensata e louca,

Fugires dessa maneira!...

Vem cá, escuta, formosa:

Eu posso colher a rosa,

Sem fazer mal à roseira...

                        II

Ganhei-te um dia no jogo

(Que foi por sorte, querida,

Que chegaste à minha vida)

E a alma em febre, e a alma em fogo,

Sinto, por isso, em revolta,

Porque sempre ao jogo volta

O que se ganha o jogo.

         (Rosa dos Ventos, 1919.)

 

O RIO EM 1750

O abade De la Caille, astrônomo e membro da Academia de Ciências de França, podia gabar-se de ter sido dos raros estrangeiros que conseguiram romper, nesta parte do Atlântico, a Muralha da China com que Portugal colonizador, pelo correr do século XVIII, tentava isolar o Brasil do restante do mundo.

Tendo partido a bordo do veleiro Glorieux, em fins do ano de 1750, cá chegou a 25 de janeiro do ano seguinte, por um dia de sol e céu azul.

Tínhamos, então, na governança do país o Sr. Gomes Freire de Andrade, Sargento-Mor de Batalhas, Conde de Bobadela e que, com l7 anos de fecunda e simpática administração, já gozava do renome gentil de Pai da Pátria, com que o povo o crismara. Justo nome.

Entrou o abade indo fundear o seu navio, próximo à ilha das Cobras, mas não pôde descer como desejava e devia. É que, pela altura da barra, o Glorieux, que navegava sob o comando de certo Mr. D’Après, recebia os soldados da colônia, escalados para cheirar, pesquisar e indagar dos propósitos atrevidos daquela nau de França que, na sua empavonada armação de palhabote, achava de enfiar, sem a menor cerimônia, por águas muito pouco navegáveis a quilhas que não fossem portuguesas. Compunha-se o troço de quadrilheiros do mar, de um sargento e nove soldados, todos no mais formidável dos pés de guerra, encartuchados até aos dentes, e, prontos para que o desse e viesse. Cercando a nau pacífica de França, havia, ainda, três embarcações, em esquadrilha de resguardo, uma à popa, uma a estibordo, e, outra a bombordo, todas elas pejadas de soldados.

Não nos fala, no entanto, De la Caille, da azáfama em que, muito naturalmente, por esse mesmo tempo, deviam andar as fortalezas da cidade, com a guarnição ensarilhada e de morrões acesos, no apresto importante daquelas tremendíssimas e numerosíssimas bocas de fogo que, por tremendas e numerosas, não conseguiram pedir, quarenta anos antes, a passagem de uma pequena esquadra de navios ao mando do francês Duguay-Trouin.

Só no dia imediato, porém, vieram a bordo os Srs. oficiais de justiça da terra, incumbidos de constatar, oficialmente, por parte do Sr. Governador da cidade, os motivos da singular arribada, alegando que seria o navio imediatamente confiscado, no caso de não serem justificáveis tais motivos. Diga-se de passagem: o Conde de Bobadela era um governador magnânimo, porém, estava cumprindo ordens, embora das mais absurdas, vindas da Metrópole.

Alegou Mr. D’Après, o comandante, que arribara para concertar certo navio que fazia parte de seu comboio, navio esse que, todavia, não havia podido, até então, entrar.

A razão, se não era bem de cabo de esquadra, era de cabo de comboio. O caso foi que os oficiais de justiça, depois de ouvirem Mr. D’Après, deram ao navio de Luís XV o desembaraço legal pela justificação plena da arribada. Não obstante, só a 28, mediante ordem do Governador puderam descer os oficiais e os passageiros de bordo. Proibição expressa de retirar, do navio, o menor dos objetos, sem uma licença. Só poderia sair, do mesmo, o tripulante que tivesse necessidade imediata e imprescindível de descer à terra; os soldados e o sargento de serviço no porto com direito de apalpar, revistando, rigorosamente, os que cruzassem a linha do portaló.

Não diz o abade, mas referem outros viajantes que aqui vieram pelo tempo, que os que desciam de bordo, tinham, em geral, sempre, ao pé de si, o estafermo de um guarda, que se encarapuçava de guia, mas que nada mais era, no fundo, que um espertíssimo espião, de olho aberto e de orelhas em concha, cioso do seu ofício.

Vê-se, pela amostra, quanto era, pelo tempo, o Brasil escondido aos olhares de um mundo que bem nos poderia dar, sem prejuízo do colonizador, um pouco de adiantamento e de progresso, que nos faltavam e que, durante muitos séculos, jamais, aqui, conseguiram entrar.

Deram a De la Caille, para residir, uma casa à Rua do Rosário, vers le milieu de la rue, diz ele, no seu Journal historique.

Pela cidade não havia hotéis. A casa referida era a residência de um particular, forçosamente, outro espião ladino e atento...

Por essa época, isso não nos explica o abade, depois da Rua Direita e da dos Ourives, a Rua do Rosário era a melhor das nossas ruas, mesmo com as suas horríveis rótulas coloniais forradas a urupema, horríveis no feitio e na higiene, a sua valeta mal sulcada ao centro na terra crua e onde, além das águas em decomposição, davam rendez-vous os animais mortos, o cisco e até as dejeções humanas, desafiando a mais benevolente das pituitárias.

A De la Caille, porém, ao que parece, tais coisas não desagradavam completamente. Dizemos isso porque as não comenta, conduzido apenas pelo justo empenho de encontrar, em tudo que então via, o pitoresco que nos leva, ainda hoje, achar muito interessantes certas ruas ignóbeis do Cairo, de Constantinopla, ou de Tânger.

Vamos, porém, ao Journal historique do frade que, por demasiado curto, não deixa de ser interessantíssimo, e vejamos o que ele ainda nos diz desse sórdido tempo, quando o Rio nada mais era que um abandonado e triste desvão de terra, povoado, apenas, por um número bem escasso de brancos, alguns pretos e muitíssimos padres.

Começa De la Caille, o astrônomo, por declarar a cidade fort considerable, não sem acrescentar que ela possuía 50.000 habitantes. Possuía menos de 30.000, uma vez que em 1799, isto é, 50 anos depois, a nossa população (como se vê nas estatísticas oficiais publicadas no Almanaque do Rio de Janeiro do mesmo ano, organizado por Duarte Nunes e inserto no número 29 da Revista do Instituto Histórico Brasileiro) não chegava a esse número.

Gostou, entretanto, do que viu, o amável visitante, espojado ao sol da paisagem magnífica, um olho na terra, outro na lente do seu óculo de ver longe, por onde observava, como bom astrônomo, em detalhe, o clarão das menores estrelas... Fala das igrejas que copiávamos, pelo tempo, às igrejas mais pobres de Portugal, mas que, assim mesmo, interiormente, eram bastante curiosas e ricas.

Falando das casas, daquelas mesmas detestáveis construções que o edital de 9 de julho de 1808 mandava demolir por julgar indignas da civilização que sucedia à era dos vice-reis, diz, apenas, que elas eram toutes couvertes de tuiles... Talvez cheio da mais justa admiração por não vê-las só cobertas de palha.

Fala dos oratórios das esquinas de rua, feitos de madeira, vidro e pano, com a imagem da virgem ou de algum santo, e uma lanterninha de azeite de peixe, acesa dia e noite.

Pela hora do ângelus, o povo ajoelhava em torno a essas capelinhas improvisadas que serviam, ao mesmo tempo, a Deus e à iluminação da cidade. As loas erguidas ao céu, em voz alta, pela multidão prosternada junto às mesmas, era algo impressionante.

Cita, depois disso, o chafariz que, no Terreiro do Paço, antecedeu ao que hoje ainda se vê na Praça Quinze de Novembro.

Não diz, De la Caille, onde saltou. Pela época não havia o cais da Praça, só construído, muito mais tarde, na governança dos vice-reis. Era natural, entretanto, que ele tivesse saltado numa das pontezinhas que, no mapa de André Vaz Figueira, figura pela altura da Quitanda das Cabunas, avançando em direção ao mar.

Junto a essas pontes, também não nos informa o abade, havia, sempre, uma sentinela. Quem por ela passasse teria que fazer uma profunda cortesia, das chamadas “de mergulho”, mas, que eram feitas fora d’água... E triste daquele que, por um desses soldados passasse sem observar tais normas da etiqueta, sem fazer o seu salamaleque, o tricórnio a mamar no sovaco! Graves complicações tivemos com os estrangeiros que não se submetiam a tão ridícula observância.

Falando da alimentação do Rio, diz o abade que ela consistia quase que, exclusivamente, de peixe e farinha de mandioca.

Esqueceu-se de dizer, entretanto, que, por vezes o menu era variado com pratos que pela época se chamavam tigelas de galinha com gema d’ovo e canela por cima, sopas de vaca ou frangas caseiras lardeadas sobre sopas de natas, guarnecidas de biscoitos la Reyna, pombos de folhado francês ou, para a sobremesa supimpa: sonhos passados por açúcar e graxa, receitas essas que se encontram nos livros portugueses de cozinha, até então publicados.

Vejamos, porém, no capítulo modas, o que havia por cá.

Os homens traziam, em geral, uma véstia, espécie de longuíssimo colete, morrendo em dois longos bicos sobre as coxas, mas não usavam casaca, nem rendigote, deixou de explicar o abade, envolvendo o corpo, apenas, com um vasto manto ou capa que os cobria quase completamente, de forma a torná-los irreconhecíveis. Uma carapuça na cabeça ou uns chapelões de aba larga, iguais aos que se usavam no século XVII, enterrados até às orelhas, completavam a obra de déguisement. Um tipo desses só podia ser adivinhado pelos que o conheciam na intimidade. Para os outros era um simples fantasma que passava.

Imagine-se que essa exótica indumentária viu-a De la Caille em pleno mês de janeiro, em pleno rigor do estio!

Registra, em seguida, o viajante, a figura grotesca dos médicos de então, com os seus enormes óculos embutidos em couro “pour se faire respecter des passants...”

Não eram só os médicos que os usavam. Os merceeiros que enriqueciam depressa também se davam ao luxo das cangalhas, que o povo conhecia por mochos ou quevedos.

Vejamos, agora, como se vestia a mulher de l751 e que em nada recordava a bandarrinha portuguesa, sua avó, tão bem pintada por Júlio Dantas. Fala o abade, ao que parece, fraco leitor das Horas marianas, muito preocupado com uma reportagem completa sobre a roupagem feminina: “vestem, as mulheres, saia, camisa aberta como a dos homens em suas toilettes de interior. Para sair, põem um manto enorme (que apesar de todo o seu tamanho, é conhecido por mantilha) e que se coloca da seguinte forma: um ângulo do pano caindo na altura do quadril, outro cobrindo a cabeça; os dois restantes correndo a linha dos ombros e cingindo-os.

Era essa moda de colocar a mantilha, muitíssimo incômoda, pois que a mulher precisava ajustá-la, alinhá-la, a todo momento. Algumas, necessariamente, (as que tinham pouca vocação para o martirológio da elegância), conservavam a mantilha naturalmente sobre os ombros e envolviam a cabeça com um pano fino ou um lenço da Índia. O necessário era que se lhes tapassem a cabeça.

Diz de la Caille: um marido não sai, jamais, à rua ao lado da mulher mas à frente dela, a alguns passos de distância, levando uma espada nua debaixo do braço ou sob o manto.

Assim foi até o primeiro Império. Está no livro de Debret, como nas estampas do precioso livro de Chamberlain.

A mulher, atrás do Pater familias, podia ser acompanhada de parentes, amigas, mas formando, avolumando, encompridando a cauda da bicha que terminava sempre com a tropilha dos escravos de estimação.

Pela época as mulheres saíam muito pouco. Iam à missa das quatro da madrugada, e só em dias de procissão ousavam suspender a urupema das rótulas, pondo o nariz sempre embiocado numa mantilha de renda, para ver passar o Santíssimo.

Naturalmente, o abade não teve tempo para se impressionar com esses detalhes. Em compensação, com muita sutileza, notou que a pouca sociabilidade entre os habitantes não impedia o deboche, que era enorme, por toda esta cidade.

Há pontos sobre os quais os estrangeiros que aqui aportavam, na época colonial, não discordam, o que se refere ao mau gosto da arquitetura, a imundície das ruas e a imoralidade que transformava este simpático recanto da Guanabara numa pequenina Sodoma. Leia-se, para isso, Froger, Hell, Parny, John White, Stanton, John Barrow, Aguirre, Langestad para citar apenas alguns viajantes que por aqui estiveram, quase que pela mesma época.

E, para De la Caille, sacerdote antes de ser astrônomo, os próprios frades e padres eram os primeiros a dar o exemplo da sem-vergonhice.

As pretas, cortesãs coloniais, representavam, nesta pequenina Citera, um papel importante. Saíam em bandos, pelas ruas, muito paramentadas de joias, seguidas de criados, e faziam ponto pelas alturas do Terreiro do Paço, quando não se metiam pelo Arco do Teles onde, à luz dos oratórios, podiam, então, mostrar, mais à vontade, as suas africanas seduções.

Como a luz das ruas, à noite, fosse um tanto escassa e não houvesse grandes diversões, pela cidade, às 6 horas, pelo inverno, e 7 pelo verão, ia-se para a cama, uma arapuca armada em forma de palanque, com cortinas de pano e onde os cariocas experimentavam as torturas pouco amáveis das chamas do purgatório.

Raras eram as casas que não conservavam, para necessidades eventuais, a clássica lamparina de azeite acesa. Nas cozinhas mantinha-se o borralho, mais ou menos esperto. E, ao lado do fogo adormecido, umas duas ou três boas cabeças de alcatrão.

Sigamos, porém, o abade que foi ao palácio de Bobadela, cometendo o crime de não descrevê-lo. E era o mais belo edifício da cidade! Vasto, acaçapado, com um andar térreo de menos de três metros e uma linha arquitetônica que não pôde melhorar nem depois das reformas feitas pelo vice-rei Conde de Resende.

Pois Bobadela quis ter à sua mesa um astrônomo de França e teve-o.

De la Caille, porém, ao que se depreende do que escreve, não gostou do repasto. É que só havia peixe, no menu, iguaria pouco apetecível para uma criatura que, como ele, após tão longa travessia, vinha ansioso por coisas que não fossem, justamente, do mar.

Não diz se comeu com garfo e faca. Pelo tempo, o talher nem era objeto decorativo. Meio século depois, no mesmo casarão transformado em Paço Real, o Sr. D. João VI comia galinhas com as mãos... E as lambia, depois, como o gato quando se besunta com azeite.

Uma coisa feriu a suscetibilidade do francês: os guardanapos, na mesa de Bobadela, estavam sujos, negros, de luto pelo sabão. Nos guardanapos do conde, de resto, refletia-se o desasseio da cidade, a mesma que, na frase de certo escritor que aqui esteve, anos depois, cheirava a almíscar, odor que lembra um pouco a catinga do bode. Cheiro de natureza...

O que não podíamos exigir é que o Rio, de tão imundos tempos, cheirasse a rosas ou a água de Córdoba, que foi o perfume do século.

Impressão que se encontra no diário do frade sobre a pessoa do governador:

Un monsieur que se pique de beaucoup savoir vivre...” Acertava.

Dias após ao jantar em palácio, foi de la Caille jantar na casa de certo holandês de origem, chamado Paul Vincent. E, como a Holanda, por esse tempo, fosse já um país de grande limpeza, quando o abade fez o sinal-da-cruz para atacar a peixada do convite encontrou guardanapos limpos.

Com tanta alegria comeu a limpar-se nas alvuras do linho holandês que acabou por escrever no diário: refeição magnífica, metendo um adjetivo que não lhe soube inspirar a peixada bobadélica.

Um leitor malicioso, porém, continuando a ler a polegada da prosa que fala do amabilíssimo repasto, talvez emprestasse a auréola de bem-estar do abade epicurista menos aos guardanapos limpos, que a certa mulher que, pela hora em que o vinho nos traz aos lábios as ânsias de gostosos pecados, apareceu entre pratos da sobremesa, fora do menu.

Estava ela “vestida de um tafetá cor-de-rosa” (o cor-de-rosa e o azul-rei foram as cores de grande predileção colonial que, por vezes, não se esquecia da cor preta). Trazia, porém, a cabeça nua, sem carapuça e... completamente rapada!

Não revela o amável viajante as razões de tão insólita toilette capilar, muito principalmente numa época em que saíam colchões de dentro dos toucados. O que parece mais certo é ter havido, por parte do holandês, homem inteligente e esperto, um grande gesto de defesa. Por causa das dúvidas, tendo ele que apresentar uma mulher moça e bonita, e, logo numa ocasião propícia a certas expansões e a um padre, achou de melhor aviso apresentá-la sem cabeleira... No que fez muito bem.

O que não padece dúvidas é que a dama da sobremesa devia ser criatura muito bonita, uma daquelas cariocas de tez morena e lábios cor-de-rosa que, quando, à noite, punham, por acaso, o olho brilhante e meigo à urupema das rótulas, a rua inteira, fora, se iluminava toda como que batida por um clarão de luar.

                                                             (Recordações do Rio antigo, 1950.)