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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Viriato Correia

O Rio de Janeiro ao alvorecer do século

Nos primeiros dias do século, o Rio de Janeiro era outro Rio de Janeiro e Luís Edmundo outro Luís Edmundo, diferente, inteiramente diferente do escritor glorioso que hoje transpõe as portas ilustres da Academia.

O Rio era uma cidade de cunho colonial, feia, velha, suja, a cidade que a gente encontra saborosamente descrita em O Rio de Janeiro do Meu Tempo. Cidade, ainda tinha muito de aldeia. Ruas estreitas como caminhos de roça, casas acaçapadas como moradias de fazenda. Rouco mais ou menos como se descreve em A Corte de D. João no Rio de Janeiro.

A vida que aqui se vivia era tão pouco parecida com a que hoje se vive, que passará por mentiroso quem a quiser descrever com exatidão. Os homens usavam bigodes retorcidos e as mulheres (contado não se acredita), as mulheres não punham ruge no rosto, nem batom nos lábios. O paletó saco, a camisa de colarinho mole, o chapéu de palha eram peças de vestuário sem cotação nenhuma. Quem se prezava, fosse no tempo fresco, fosse nos dias infernais de sol, vestia fraque ou sobrecasaca pretos, gravata de plastrom, cartola ou chapéu coco e colarinho duro, muito duro e muito alto, tão alto que, usados na atualidade, dariam a impressão de arranha-céus. As mulheres magras ou gordas, moças ou velhas, apertavam, por elegância, as costelas na tortura do espartilho, e usavam vestidos que arrastavam a cauda pelas calçadas.

Havia aspectos que eram evidentes reminiscências de O Rio de Janeiro do Tempo dos Vice-Reis. Encontravam-se nas ruas, impedindo a marcha das criaturas e dos carros, bandos de trinta, cinqüenta, cem perus, andando tranqüilamente, com um homem atrás, a vendê-los. As vacas leiteiras vinham roceiramente às nossas portas e, diante dos nossos olhos, os vaqueiros as mungiam para nos vender o leite.

O veículo mais rápido era o tílburi com o seu cavalinho magro e sonolento. Da Cidade à Tijuca levava-se mais de uma hora, em bondes puxados a burros. Copacabana era uma praia deserta que imenso pitangal cobria de verde. Do Leblon não se ouvia ainda falar.

A existência marchava a compassos lentos. Não se conhecia a fúria da velocidade dos aviões modernos. Em vez dos sambas e das batucadas que fazem cócegas cadenciadas nas pernas, cantavam-se modinhas que amoleciam os corações. Em vez de foxtrote e das marchinhas carnavalescas, dançavam-se, nos bailes, as valsas langorosas de Aurélio Cavalcanti.

Tudo diferente. Grassava a praga dos trocadilhos e dos cartões postais. Não havia a Avenida Central. Não havia luz elétrica. Não havia cinemas. Não havia automóveis.

Mas as criaturas eram alegres, risonhas, folgazãs, como Luís Edmundo há pouco nos disse. O tom de irreverência que caracteriza a gente carioca já existia com o cunho encantador da atualidade. O gosto pela pilhéria, pela malícia, pela mordacidade, pela pimentinha da facécia, pela anedota apimentada, era o mesmo gosto do presente. Até o fraco pelo Carnaval, que está na massa do sangue do nosso povo, era exatamente o mesmo fraco.

A cartola, o fraque, a sobrecasaca não conseguiam esconder o bom humor dos homens. As mulheres só eram graves nos vestidos compridos, nos chapéus emplumados e na botina de abotoar. No mais tinham a mesma graça fresca, o mesmo dengue, a mesma fascinação e até o mesmo it das carioquinhas de hoje, ainda que a palavra não existisse na época.

A paisagem – a mesma maravilha que agora nos ofusca o espírito.

Somente a cidade não prestava. Não tinha “uma só rua digna de se mostrar ao estrangeiro, um edifício público notável, um grande hotel, um bom teatro”, ao que nos conta o cronista de O Rio de Janeiro do Meu Tempo. Era, ao que ele próprio nos informa, “um monturo onde as epidemias se albergavam dançando sabats magníficos, aldeia melancólica de prédios velhos e acaçapados a descascar pelos rebocos, vielas sórdidas, cheirando mal”.

O sopro renovador

Mas o destino havia determinado acordar a capital do Brasil do seu longo sono colonial. E para isso reuniu, num só momento, no governo, cinco homens excepcionais, cinco titãs capazes de pôr nos ombros o peso e a responsabilidade do grande momento histórico: Pereira Passos, Paulo de Frontin, Lauro Müller, Osvaldo Cruz e Rodrigues Alves. Traziam eles seiva nova no espírito, traziam no senso patriótico a visão clara do papel que o Rio devia desempenhar na comunhão brasileira.

Ainda tenho na cabeça o atordoamento que senti ao primeiro contacto do sopro renovador que eles desencadeavam. A quem chegava de fora pareciam verdadeiros doidos. Tinha-se, realmente, a impressão de que um bando de malucos estava arrasando a cidade. Ruas inteiras desapareciam de um dia para outro, ao golpe das picaretas. Quem passasse um mês em casa sem sair à rua, nas ruas se perderia porque elas modificavam a fisionomia do dia para a noite. Tudo se passava rapidamente como nos cenários das velhas mágicas.

Lauro Müller erguia a muralha do cais do porto que nos poria definitivamente em contacto com o mundo civilizado.

Frontin, abrindo a clareira da Avenida Central, preparava aquilo que os jornais da época denominaram a “sala de visita” do país. Osvaldo Cruz, com a novidade do seu exército de mata-mosquitos, criava a defesa higiênica da cidade, apagando-lhe a fama assustadora de terra inabitável. Pereira Passos remoçava-a destruindo-lhe as rugas da velhice, atacando-lhe os reumatismos da rotina e o gogo do atraso colonial.

Era a revolução do progresso, a marcha para a frente, o avanço para a conquista do que era novo, do que era limpo, do que era higiênico, do que era bom, do que era confortável, do que era civilizado. Era a guerra contra o mofo, contra o bolor, contra a letargia, contra a decrepitude e contra a sujeira.

E eu assisti à guerra. Houve guerra, senhores! Do fundo dos armazéns, das vendas, das tascas e dos quiosques, rebenta a resistência. O industrial, o capitalista, o “comerciante a quem o país deve o seu enorme progresso”, enfim os chamados “homens que têm alguma coisa a perder”, atiram-se contra os malucos que se atrevem impatrioticamente a modificar a fisionomia da velha cidade de Estácio de Sá, limpando-a, saneando-a, embelezando-a e civilizando-a. Toda a sorte de imoralidade atribuem às mãos imaculadas de Lauro Müller, Frontin e Pereira Passos. Contra Osvaldo Cruz vão até ao ataque pessoal. Agridem-no, uma vez, em plena rua a pedradas e aos gritos de mata e lincha!

Mas os renovadores têm, em alta dose, a força sempre vitoriosa da pugnacidade. E a renovação se faz.

A escolha do cronista

A natureza, nos seus altos desígnios, nada faz para perder. Aquela é a fase máxima da cidade e não pode ficar no esquecimento. É preciso alguém que a testemunhe e que testemunhe sentindo-a, amando-a. É preciso um cronista de fina raça, de pura brasilidade, para lhe realçar a alta significação evolutiva.

O destino tem sempre um homem excepcional para os seus momentos excepcionais.

E foi Luís Edmundo o escritor que o destino elegeu para perpetuar, no livro, aquela quadra maravilhosa.

A natureza é sempre sábia. Foi buscar o mais brasileiro dos cariocas para fazer a história do mais belo surto de progresso da capital do Brasil, e foi buscar o mais carioca dos brasileiros para contar ao mundo o que foi o período da maior avançada progressista que já houve no país.

A natureza, em vez de ir buscar o cronista entre os velhos cronistas da cidade, preferiu criar o cronista na figura de um moço da época. As impressões recebidas na mocidade não trazem rugas nem pigarros. São límpidas, frescas, cantantes, cheias de boa vontade e de rutilações. O livro em que Luís Edmundo pincelou os panoramas daquela fase excepcional é um desses livros que a gente escreve na madureza com o ouro de lei e as pedrarias extraídas das minas generosas da juventude.

O Luís Edmundo do começo do século

Naquela época, o autor de O Rio de Janeiro do Meu Tempo era outro Luís Edmundo, diferente, inteiramente diferente, do escritor glorioso que a Academia hoje incorpora à sua família.

Era moço. Era rapaz. Não havia, com certeza, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, desde Botafogo à Tijuca, desde Catumbi ao Saco do Alferes, mocidade mais estouvada, mais brincalhona, mais jubilosa, mais boêmia, mais irreverente e, ao mesmo tempo, mais simpática e mais amável.

Era já alto como é hoje, esbelto como já não é, bigodinho atrevido e uma basta cabeleira castanha que os ventos da Guanabara levaram quase toda. E elegante. Elegantíssimo. Guerra Duval, consagrado dos salões, não vestia melhor do que ele. Os paletós sacos, as casacas, os fraques do seu guarda-roupa numeroso, mandava-os cortar no Pool. Não perdia uma conferência, não perdia um garden-party. Era o mesmo Luís Edmundo tanto nos salões dourados de dona Germana Barbosa, do Visconde de Schmidt, de Heitor Cordeiro, como nos bailes de costureiras em Itapiru, ou nos batizados da Cidade Nova, ou na Caixa d’Água do Pedregulho, por ocasião dos piqueniques do cordão carnavalesco Tira o dedo do pudim.

Havia nele um excesso de vida, um transbordamento de jovialidade que esguichavam numa verdadeira gula de rapaziadas. Ninguém poderia imaginar que no estróina que a gente via enchendo as ruas de pernas e de alegria, estava o homem que a natureza havia escolhido para ser, no futuro, o cronista da cidade.

O dançador de Calke-Walke

Lembro-me bem, Sr. Luís Edmundo, do dia em que vi pela primeira vez a vossa figura física. A figura intelectual eu já a conhecia da minha terra natal, na escalada que fiz à vossa Turris Eburnea.

Eu havia chegado, alguns meses antes, do Maranhão, para lutar pela vida.

Um dia (lembro-me como se fosse hoje) o dia 31 de março de 1904. Era a inauguração das obras do porto.

Um dos dias mais bonitos, mais alegres e mais festivamente ruidosos que já teve a velha cidade de Estácio de Sá.

A Guanabara esplendia de vida. Não havia um barco, dos grandes, dos pequenos, dos pequeninos, que não estivesse vogando, arriado de bandeiras e ressonante de vozes humanas.

A cidade estava toda ali, na baía. Toda. Tudo que o Rio tinha de notável na política, nas letras, nas artes, na indústria, no comércio, no mundanismo.

Havia orquestras e bandas de música nos tombadilhos. Dançava-se em todas as proas.

Eu havia conseguido um lugar numa das barcas da Cantareira. Desconhecido de toda a gente e não conhecendo ali ninguém, satisfazia-me em ver os outros brincarem.

De súbito, na barca, a alegria cresce estouvadamente. Era um grupo de rapazes que chegava. Entre eles um mais alto do que os outros, calça listrada, fraque maravilhosamente talhado. As moças, ao vê-lo, correm-lhe ao encontro. Começa o baile.

Naquele tempo, a nota exótica dos salões era o cake-walk – uma dança horrível dos negros dos Estados Unidos.

O rapaz alto convida uma moça e atira-se a dançar. Um camarada de momento apontou-mo. – Esse, que está dançando, é o Luís Edmundo.

E eu, Sr. Luís Edmundo, fiquei cinco, dez, quinze minutos a admirar as vossas peregrinas virtudes coreográficas. Éreis Terpsicore vestida de calças e fraque.

E não fui eu só a admirar-vos. A barca inteira. Formou-se roda. E, quando terminastes, uma trovoada de palmas estrondou, saudando-vos.

Lembro-me bem. Defronte de mim estava um moço que batia palmas mais quentes do que todo mundo. O seu entusiasmo era tão aceso que chegou a gritar bis, oito ou dez vezes. Era um rapaz dos seus dezoito ou vinte anos, belo, elegante, cabeleira farta e bigodinho petulantemente retorcido. Alguém me informou com exatidão: era Olegário Mariano que, naquela época, começava a emplumar-se para o grande vôo poético que tanto enche de orgulho o Brasil.

As gerações gloriosas

Os tempos não mudam: nós é que mudamos, afirmastes há pouco. Mas é consolador acreditar que eles mudaram e que mudaram para pior. Para os velhos, nunca deixa de ter travos a vida que eles estão vivendo. Pois se eles são velhos...

As recordações dos tempos que se foram tiveram sempre o condão de remoçar o coração dos que envelhecem. Eu, que já estou de cabeça branca, sinto um grato arrepio de adolescência em fitar o companheiro querido da época em que eram pretos os meus cabelos. Vós me recordais os tempos daqueles cabelos.

Os moços de hoje ririam de mim se eu aqui dissesse que a época em que éramos rapazes foi maravilhosa. Mas ao vosso coração, Sr. Luís Edmundo, as minhas palavras teriam ressonâncias agradáveis.

Foram realmente prodigiosos os tempos que vivemos, quando rapazes.

Ninguém, no Brasil, se poderá gabar de ter assistido à fulguração de tantas mentalidades como nós assistimos. Fomos contemporâneos das gerações intelectuais de maior culminação que já houve no país. A sorte brindou-nos com a ventura de contemplar o ocaso esplendente dos homens, que deram tonalidades de ouro à geração mental do Império. Ainda vimos Joaquim Nabuco em plena majestade de espírito; vimos José do Patrocínio ainda em alto fogo de eloqüência, vimos Rui Barbosa, vimos Quintino, vimos Machado de Assis. O destino nos premiou com a fortuna de ver atingir a sua mais brilhante ascensão a geração que começou a florescer nos primeiros dias da República. Assistimos ao meio-dia e ao entardecer do Parnasianismo, acotovelando-nos com Raimundo Correia, com Bilac e Alberto de Oliveira. Fomos à Câmara ouvir José Mariano, Barbosa Lima, Pedro Moacir. Nas livrarias estivemos em palestras com João Ribeiro, com Sílvio Romero, com Capistrano, com José Veríssimo, com Constâncio Alves, Francisco de Castro, Artur Orlando, Araripe Júnior. Falamos de perto com Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque, Clóvis Beviláqua, Afonso Arinos, Inglês de Sousa, Vicente de Carvalho, Augusto de Lima, Afonso Celso, Euclides da Cunha. Vimos Teixeira Mendes em pessoa, vimos em pessoa Osvaldo Cruz. Testemunhamos a inspiração musical de Henrique Oswald, Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno e Francisco Braga.

Assistimos a tudo que o Brasil teve de grande, de belo, de avançado e de luminoso. Nada é novo para nós. Nem essa vibração que aí está pelo que é moderno. Nem essa febre de mudanças que faz bater o pulso dos moços da atualidade. Nem o espírito de renovação que agita a época presente. Nem sequer as extravagâncias literárias de hoje para nós são novas.

O tufão demolidor

Já vimos tudo. Até mesmo o redemoinho de demolição que aí está não é mais violento do que no nosso tempo. Os “modernos” da atualidade serão mais extravagantes do que os “novos” da nossa geração? Terão maior fúria de originalidade do que tivemos? Farão guerra maior aos nomes feitos do que fizemos na nossa época? Qual de nós não negou valores incontestáveis? Qual de nós não demoliu? Eu demoli. Vós demolistes. No tempo em que dançáveis o cake-walk tínhamos em cada mão um punhado de bombas de dinamite para derrubar os ídolos literários. Todos nós demolimos. Vede o caso do nosso companheiro Antônio Austregésilo. Austregésilo, hoje, é professor dos mais provectos, mestre dos mestres, criatura serena, conservadora e de bons costumes, enfim, modelo primoroso do que no presente se chama passadismo. No entanto, foi um revolucionário das letras. E que revolucionário! Poeta simbolista dos mais vermelhos, demolidor incrível, diabólico, que, se não satisfazendo em arrasar os “velhos” (assim eram chamados os nomes feitos) com o bico da pena e com a flama da palavra, procurava destruí-los com os dentes daquele serrote de que há pouco falastes.

Os moços de hoje não são nem mais nem menos do que éramos. A mesma vaidade nossa é a deles. Vivíamos na convicção de que a nossa mentalidade dava rumo novo à Arte; rumo novo à Arte pensam eles que estão imprimindo com o que escrevem. Imaginávamos que o pensamento universal éramos nós. Atualmente são eles que pensam como nós pensamos outrora.

O tufão iconoclasta que soprava no nosso tempo não era maior do que o tufão que hoje sopra.

Recordo-me vivamente do espanto que aquele tufão me causou quando pus, pela primeira vez, os pés no Rio de Janeiro. Eu vim do Maranhão onde o culto da mentalidade era uma nobre idolatria, onde a veneração pelos altos valores da inteligência resistia a todas as labaredas revolucionárias. Eu vinha também do Recife, com passagem pela Faculdade de Direito, velho e glorioso solar de espíritos que tinham a febre alta da cultura.

Quando aqui cheguei, trazia lidos a maioria dos clássicos portugueses e todos os clássicos do Brasil.

Havia mesmo em mim uma certa preocupação pedantesca em citar João de Barros, Manuel Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, João Lisboa, Bocage, Gregório de Matos, Mont’Alverne, Tomás Antônio Gonzaga.

Dos modernos já havia devorado o Alencar inteirinho, o Macedo inteirinho, o Pompéia e tudo que Machado de Assis, João Ribeiro e Aluísio haviam escrito até ali.

Trazia pelo Eça, pelo Ramalho e pelo Fialho, principalmente pelo Eça, um entusiasmo belicoso, capaz de esbordoar quem fizesse a menor restrição aos meus ídolos. O Guerra Junqueiro, o Macedo Papança, o Gonçalves Dias, o Castro Alves, Casimiro, o Fagundes, o Bilac, o Alberto de Oliveira, o Raimundo, sabia-os de cor de os recitar nas salas do Maranhão.

Da Literatura Francesa eu tinha a empáfia de ter lido os clássicos de maior vulto e aquele entusiasmo que se acendia em mim pela geração que então culminava no Brasil e em Portugal, era o mesmo entusiasmo que me levava a exaltar os românticos e os realistas de França. Chateaubriand, Hugo, Théophile, Musset, Flaubert, Balzac, Daudet, Zola eram figuras do meu enlevo.

E a minha ingenuidade de provinciano imaginava que esse material literário me servisse para alguma coisa. E foi realmente, para mim, uma surpresa incrível, quando, ao chegar, vi que era analfabeto. Analfabeto justamente porque tinha tido o mau gosto da aquisição daquele material.

Balzac, Bocage, Camilo, Vieira, Alencar não tinham cotação alguma no meio literário dos rapazes com os quais travei os primeiros contactos de inteligência. Gonçalves Dias não valia o papel em que se imprimiam os seus versos. Guerra Junqueiro era apenas um pobre burguês que escrevia versos horrendos. João Ribeiro um gramático intolerável. Machado de Assis (que Deus perdoe os rapazes do meu tempo!) Machado de Assis era a múmia, o azarento, a azêmola. Quando ele passava na rua, faziam-lhe figa.

Uma vez, no Largo do Machado, mostram-me o Bilac, em pé, à porta do Lamas. Fiquei parado por muito tempo, silencioso, gozando a ventura de ver de perto o poeta que me trazia à sensibilidade emoções das mais belas. Deram-me uma vaia. Pois era crível que alguém parasse para admirar o Bilac, um poeta de tamanha inferioridade?!

Por aquela época Alphonsus de Guimaraens, chefe dos “novos” de Minas, veio ao Rio. Quiseram-no apresentar ao Coelho Neto. O poeta recusou terminantemente. Não queria mistura com as “zebras”.

Eu vivia inteiramente enfiado, temendo falar nos livros que havia lido, temendo nomear os vultos da minha admiração. No Café Papagaio, viveiro dos “novos”, troçava-se de mim como numa escola se troça de um calouro.

– É lamentável que um rapaz tão novo – dizia-se – tenha tanta velharia na cabeça.

Uma tarde, numa palestra sobre teatro, como eu falasse em Gil Vicente e Antônio José, os rapazes levantaram-se da mesa e fugiram de mim. Certa vez, como eu citasse um verso de Virgílio, quiseram-me dar pancadas.

Os nefelibatas, os simbolistas, os decadentes (eles respondiam por qualquer destes nomes) pretendiam triunfar a murros de irreverência. Negar, demolir eram os caminhos mais seguros da vitória.

Félix Pacheco, que acabou passadista e morreu acadêmico, escrevendo como todo o mundo, disse-me a sério, ali pelo ano de 1904, numa das janelas do Jornal do Commercio, que a melhor página de Machado de Assis era aquela página em branco, toda de reticências, de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Os nomes mais preeminentes da época viviam estraçalhados pela nossa geração que só agora avalia a fortuna de possuí-los.

Quando se queria dar idéia de coisa ruim, sem expressão, bem ordinária, dizia-se uma bilacada.

O valor literário media-se pela extravagância, pelo exotismo. O “oceano de erisipelas”, de Gustavo Santiago, era o padrão estético dos “novos”.

Rolava o vagalhão do mau gosto. Quem não escrevesse com qualquer cunho de excentricidade incluía-se no rol das “múmias” e das “zebras” a que pertenciam Bilac, Coelho Neto, Raimundo, Alberto, Sílvio Romero, João Ribeiro, Machado de Assis e outros chamados “medalhões” intoleráveis da Academia.

Um ou outro poeta nefelibata fazia coisa que prestasse, que os poetas quando são de boa raça, mesmo fazendo extravagâncias, são poetas. Mas, o comum, eram os exemplos de teratologia literária.

Ainda me recordo a poesia “Despedida”, de Inácio de Abreu e Lima.

Ouçamo-la:

Trago ainda no dedo o teu anel,
Maria Adelaide Pereira!!
Doce recordação desse inefável dia
Em que beijei teu rosto lívido de freira,
Maria Adelaide Pereira!

Teu rosto lívido de freira!
Ó que poesia!
Na angústia derradeira
Quando tu me disseste a sorrir:
(Ao longe espreguiçava-se o Lima...)
“Adeus, Inácio de Abreu e Lima”.

A poesia de Luís Edmundo

Nós é que mudamos, Sr. Luís Edmundo. E vós mudastes muito. Materialmente a mudança não é pequena. Foi-se com a idade aquela faiscante vibração de alegria que só a juventude pode produzir; foi-se a constante doidice boêmia, que marcou os vossos vinte e poucos anos; foram-se os fraques maravilhosos do Pool; foi-se o dândi; foi-se o estouvado; foi-se o farrista. Espiritualmente a mudança não foi menor; retraiu-se o poeta. Pode-se mesmo dizer: desapareceu para dar lugar ao prosador.

A essência, a estrutura fundamental do escritor, essas não tiveram alteração de monta. Eram boas naquele tempo. Hoje são, apenas, melhores. Naquele tempo? Sim, naquele tempo! Porque com Luís Edmundo, minhas senhoras e meus senhores, deu-se uma interessantíssima curiosidade literária. Era ele figura viva de todos os centros de revolução, no Café Papagaio, no Lamas, no Paris, na Colombo, nas portas das livrarias e dos jornais. Na hora de negar os “medalhões”, nega-os. Na hora de demolir, demolia-os. Na hora de aplaudir as extravagâncias novas, aplaudia-as com frenesi. Mas, na hora de escrever, não era “novo”, não era “velho”, não era nada. Era Luís Edmundo. Não tinha igrejinha, não tinha panelinha. Tinha sinceridade. Não punha a inteligência nos manequins de escolas e de grupelhos. Não amordaçava a imaginação ao gosto das coteries. Entregava-se ao seu próprio estro como o pássaro se entrega à liberdade do céu.

E foi por isso um dos poetas mais fascinadores da sua época, lido com encanto, por toda a gente e até pelos próprios demolidores.

A verdade é esta: mais do que tudo Luís Edmundo é poeta. Poeta na melhor, na mais sã, na mais nobre acepção da palavra – poeta de espontaneidade, de singeleza, de alma e de coração.

A sua poesia é toda uma limpidez de manhã de sol, toda uma simplicidade de céu azul. Vede, senhores, como isto é simples.

        Natal em Paris

Noite de inverno. Cai neve
Sobre os torreões da cidade,
A neve, como a saudade,
Cai de leve, cai de leve.

É um branco lençol que cobre
O telhado em que ela desce,
Mas lençol que não aquece
Nem ao rico, nem ao pobre.

Penso nos pobres, coitados,
Tão felizes pelo estio,
Porém que morrem de frio
Quando há neve nos telhados!
Há, por aí, tanta casa
Sem ter aceso um fogão!
O calor é como o pão.
– Ricos, dai-lhes uma brasa!

Vivem os homens como cães,
Nas mansardas em que moram,
Vejam as crianças que choram
E fazem chorar as mães.

Vejo pobres maltrapilhos,
De faces escaveiradas,
Que voltaram das estradas
Sem trazer o pão dos filhos.

Vejo os velhinhos curvados,
De olhos parados, sem pranto,
Porque já choraram tanto
Que ficaram resignados.

E os que nem teto têm mais
E morrem, desgraçadinhos,
Pelas neves dos caminhos
Como se fossem animais!

Noite de inverno. Cai neve
Pelos torreões da cidade.
Ó neve, como a saudade,
Cais de leve, cais de leve!

Às vezes a sua inspiração toma ligeira coloração de malícia:

A rosa da tua boca
Que é uma flor linda e viçosa,
Deixa beijar... Mas, que asneira!
Que idéia insensata, louca,
Fugires dessa maneira!...
Vem cá, escuta, formosa,
Eu posso colher a rosa,
Sem fazer mal à roseira...

Às vezes se aquece de uma graça recendente de sensualidade:

Calle Acalá –, Manolita
Que vais a 
Puerta del Sol,
Consuelo, Concha ou Paquita,
És de Madrid, señorita?
De Segovia ou de Fenol?

Tens dos versos de Zorilla
A essência meridional.
Com o teu
 manton de Manilla
Lembras noites de Sevilla,
Perfumes de 
naranjal.

Dias de toiros, fanfarras,
O estouvamento febril
Das 
seguidillas bizarras
Com Xerez e com guitarras
E requebros de quadril.

De onde vens, flor rescendente,
Nessa alegria louçã
Que perturba toda gente?
De um livro de Benavente?
De um quadro de Zurbaran?
E Manolita, apressada,
Indiferente e veloz,
Nem vê minha alma abrasada
Que a segue pela calçada...
 – Viva la gracia! Por Diós!

Às vezes os pensamentos graves do mundo põem rugas na lira desse poeta risonho. Então, ele que goza da vida o que ela tem de rutilante, se concentra a pensar a sério na vida.

Rio, tu lembras bem a minha alma de poeta,
A correr, a correr, entre margens floridas;
A minha alma boêmia, ora calma, ora inquieta...
Como conseguem ser iguais as nossas vidas!

Eu não sei aonde vou. Por grotas e descidas
Tu rolas, a seguir, sem destino e sem meta,
Pelas noites de luar, ou por manhãs brunhidas,
Tu não contas, como eu, a tua dor secreta...

Tens remansos de lago –, eu, dias de sossego,
Levas ramos, em flor, em teu dorso tranqüilo,
Eu, dentro de minha alma, as ilusões carrego.

Vences a rocha abrupta em teu ímpeto forte,
Eu passo pela dor, se a não domo ou aniquilo...
Tu segues para o mar. Eu sigo para a morte.

Vede “Versos a Cláudio”:

Olha este riacho azul que vem da serra
E é um fio de cristal que vai rasgando
O seio bom e ubérrimo da terra,
O campo das lavouras fecundando.
Veio claro brotado entre açucenas,
Junto a um rochedo negro e luzidio,
Nem vai ao mar, que o pobre rio apenas
É o simples tributário de outro rio.

No entanto, olhe-se o campo em que ele desce,
A paisagem que o beira e que o emoldura,
O arvoredo copado, o trigo em messe,
Das campinas, a esplêndida fartura.

Tudo é fecundação, vida. A semente
Cai sobre a terra e brota. E, caminhando,
Lá vai ele descendo, lentamente,
A riqueza dos homens espalhando.

Vai; adiante, na curva de um caminho,
Num movimento de águas, em cachão,
Ele é que faz mover o velho moinho,
O trigo moendo e preparando o pão.

E, quando a noite, pelo céu sombrio
Desce por sobre o campo e sobre a vila,
O homem na paz dos seus bem diz o rio
Que a existência lhe torna mais tranqüila.

Deus, ao fazer a natureza, um dia,
Pôs nela toda a luz do seu ensino,
Por isso este regato cristalino
Vale um compêndio de filosofia.

Busca nele, meu filho, o teu retrato.
Sê útil, simples, bom, pra ser humano.
Muita vez a humildade de um regato
Vale todas as glórias de um oceano!

O tradutor de Trilussa

Luís Edmundo, meus senhores, não é apenas o poeta do sentimento que procura enternecer corações. É o poeta do humorismo, da mordacidade, do epigrama e da sátira. E foram essas qualidades que o levaram a traduzir as fábulas de Trilussa.

E devemos chamá-lo tradutor de Trilussa? Não. De Trilussa ele apenas recebe a idéia das fábulas, como Fedro as recebeu do povo, como La Fontaine as recebeu de Fedro.

Luís Edmundo a tudo imprime o seu próprio cunho: transformou Trilussa em Luís Edmundo. Vede:

Os dois chapéus

Num cabide de entrada,
Encontraram-se, um dia,
Dois chapéus
 dernier cri, ambos em lontra.
– Camarada,
Diz cheio de alegria
Um deles. Como, então, não me conhece?
– Talvez...
Responde o outro ao primeiro.
– Por favor!
Ainda não há um mês
Estivemos, nós dois, na mesma montra
Do Antônio Chapeleiro,
Na rua do Ouvidor...
– Perfeitamente! Agora estou lembrado!
E o colega que faz?
Quem é seu dono?
– Um grande advogado.
O Dr. Arquinário de Novaes.
– Ah! Conheço! Pois não! Tem fama,
Tem renome,
É alguém.
– É um nome!

Toda a cidade o seu valor proclama.
É uma bonita
Cabeça. Vou-lhe bem...
– Acredito, porém
Agora é que reparo,
O amigo está um pouquinho mais claro...
E, quem sabe, talvez, um tanto envelhecido...
Mudou a fita?
Será seu tope a dedos comprimido?
Há qualquer coisa enfim, que o transfigura...
– Tem razão. É do tope, meu amigo,
Que nasce este ar de funda amolgadura.
Eu lhe digo:
É que o doutor tem muitas relações
Entre as senhoras da alta sociedade,
E, quando sai à rua,
Me extenua.
Cumprimentos pra cá,
Cumprimentos pra lá...
Vivo eu aos safanões.
O meu todo, por isso, se amarrota.
Chapéu de homem janota...
– Cáspite! Francamente! Isso escangalha
Mesmo um chapéu de palha,
Retruca-lhe o outro. Com efeito! Agora
É que vejo a razão que o desarvora.
Que refrega!
Pois comigo, colega,
Na cabeça tranqüila do meu dono
Vivo como no sono
Que a “gente” passa numa prateleira.
– É o seu dono Morfeu?
– Não.
Deixe-se de ironias e maldade.
Como homem, somente, ele é um chapéu
Com pouca “fita” e muita austeridade...
É alguém
Bem diferente desse seu patrão
Que vive só as barretadas,
Uma vez que ele, apenas, se descobre...
Ante os homens de bem e a mulheres honradas.

“Olhos Tristes" e Olhos Alegres"

Sente-se na poesia de Luís Edmundo o hálito puro da inspiração que nasce das fontes nativas do sentimento. É a água límpida da rocha viva. É a poesia inconfundível dos poetas de raça. É a poesia que fica na memória popular.

Deve haver no Brasil, muito pouca gente que não saiba de cor versos de Luís Edmundo. E sabe-os quase sempre os daquele soneto que anda de boca em boca pelo Brasil adentro – “Olhos Tristes”.

Acontece com os escritores um fenômeno curiosíssimo: não amam nunca a obra própria que entra na popularidade. Julgam sempre de mau gosto a preferência do povo.

Como na paternidade carnal, os escritores quase sempre preferem os filhos raquíticos, obscuros e mal queridos das outras criaturas. Luís Edmundo não tem amor nenhum aos “Olhos Tristes” que merecem o amor de toda a gente. O seu enlevo é pelos “Olhos Alegres”que pouca gente conhece.

– Talvez seja a melhor coisa que eu já escrevi em versos. Nos “Olhos Tristes” tudo é muito lírico, muito adocicado – diz ele quando lhe falam nos dois sonetos.

O juiz nunca pode julgar em causa própria. Os escritores não sabem nunca o que fazem de bom e o que fazem de mal.

Ponhamos os dois sonetos um ao lado do outro.

                     Olhos Alegres

Há uma lágrima, sempre, atenta em nossos olhos,
Uma lágrima branca, uma lágrima pura,
E assim como no mar os traiçoeiros escolhos,
Ela, escondida, a flor das pálpebras procura.

Aí fica parada; os íntimos refolhos
Da nossa alma reflete, e, quando uma ventura
Em riso nos entreabre os lábios, com doçura,
Ela, a lágrima, fica a nos tremer nos olhos.

Tu, que és moço e que ris e não sabes da mágoa
Do mundo, tem cuidado, olha essa gota d’água,
Se não queres da vida achar-te entre os abrolhos;

Ri, mas ri devagar, que a lágrima traiçoeira,
Talvez, vendo-te rir assim dessa maneira,
Trema e caia afinal um dia dos teus olhos!

                     Olhos Tristes

Olhos tristes que são como dois sóis num poente,
Cansados de luzir, cansados de girar,
Olhos de quem andou na vida, alegremente,
Para depois sofrer, para depois chorar.

Andam neles agora a vagar, lentamente,
Como as velas das naus sobre as águas do mar,
Todas as ilusões do vosso sonho ardente,
Olhos tristes, vós sois monges a rezar.

Ouço, ao ver-vos, assim, tão cheios de humildade,
Marinheiros cantando a canção da saudade
Num coro de tristeza e de infinitos ais...
Olhos tristes, eu sei vossa história sombria
E sei quanto chorais cheios de nostalgia
O sonho que passou e que não torna mais!

Qual deles o melhor? A verdade é que são dois belos sonetos.

É possível que sejam mais finas as virtudes dos “Olhos Alegres”. Mas a minha emoção, como a emoção popular prefere os “Olhos Tristes”.

As apostasias literárias de Luís Edmundo

Não é só contra os “Olhos Tristes” que se ergue a má vontade do belo poeta que hoje a Academia recebe. É contra toda a sua obra poética. O autor de Nimbus, de Turíbulos, de Turris Eburnea, de Rosa dos Ventos já não quer ser poeta.

– A minha poesia passou –, diz ele.

Luís Edmundo é um exemplo gritante de apostasia literária. Em outros tempos, quando era moço, apostatava dos credos simbolistas dos “novos” para incorporar-se aos velhos moldes estéticos dos medalhões.

Depois que amadureceu deixou-se seduzir pelos encantos da Prosa e apostatou do culto que, nos ardores da juventude, tributava à Poesia, tão sua amiga. Entregou-se depois aos braços graves da História, repudiando os braços enleantes do Teatro.

Este homem que aí está, minhas senhoras e meus senhores, cometeu com o Teatro a mais criminosa das traições. Foi no Teatro que ele levantou o pano para o belo espetáculo dos fulgores de sua inteligência.

Isso se passou há muito tempo. A cena desenrolou-se no quintal de uma casa em Botafogo. No quintal estava um palco que um menino de dez anos armara. As pessoas da casa, os íntimos da vizinhança iam assistir a uma peça que o menino havia escrito. O menino era ele. A peça era em versos. Como Shakespeare e Molière, Luís Edmundo era autor e ator. Na peça havia um velho chefe de família. Ele fazia o velho. O velho tinha barbas brancas. Com algodões e goma arábica ele próprio arranjou as barbas.

Que era aquele primeiro trabalho teatral do menino de dez anos? Uma coisa tremenda. Um dramalhão de arrancar lágrimas às pedras. Uma filha que fugia com o apaixonado, contra a vontade do pai. Lágrimas, gritos, estertores. Havia também dois tiros. O velho pai, vencido pelo trambulhão da desgraça, caía numa cadeira soluçando e arrancando os cabelos. Pura tragédia à antiga. A assistência emocionou-se com tanta dor e com tanta lágrima. Mas acontecia que o teatro era aquele lance emocionante – o do velho caído na cadeira, arrancando os cabelos e soluçando. Mas, sem descer o pano, o público não sabia que era aquele o final. E ficou esperando. O velho continuou a soluçar e a arrancar os cabelos, estranhando que o público não tivesse dado por findo o espetáculo. Passaram-se os primeiros vinte segundos, os quarenta, os sessenta. Passou-se o primeiro minuto e meio. O segundo minuto. Não havia mais lágrimas para chorar nem cabelos para arrancar. E o velho ergue-se enxuga os olhos, aproxima-se da ribalta e diz calmamente ao público:

– A peça já acabou!

Ninguém se contém. Todo o mundo ri. A tragédia acaba em gargalhadas.

Pois esse homem que, na idade dos brincos infantis, levantava palcos e escrevia peças, que, mais tarde, alcançou a láurea de teatro no concurso da Academia, que escreveu uma peça em francês para uma troupe francesa no Municipal, hoje já não faz teatro!

Tendes razão, Sr. Luís Edmundo, os tempos não mudam, nós é que mudamos. E vós sois o mais escandaloso dos ventoinhas literários. Não fôsseis vós o autor de Rosa dos Ventos.

O historiador

Para as paixões que assaltam as idades provectas não há concerto, dizem os psicólogos. Foi já na plenitude da madureza que vos deixastes prender no aranhol da História. Não há mais remédio. O Teatro não pode esperar mais nada de vós. O Teatro perdeu tudo. Mas a História ganhou tanto quanto o Teatro perdeu.

O vosso êxito como historiador marca um dos acontecimentos literários mais reboantes que já for dado assistir no Brasil. Começastes por onde os outros culminam. Não tivestes alvorecer. Aparecestes como um astro em pleno meio-dia, com a máxima intensidade de esplendor.

Por que tão grande êxito? No mundo não há milagre, tudo tem a sua razão de ser. É que para o campo da História trouxestes seivas novas, feitios novos, virtudes novas. Trouxestes a chama vital de um maravilhoso poder descritivo que raríssimos historiadores tem tido no Brasil.

Trouxestes, em quantidade e qualidade que poucos possuem, esse elemento cósmico da História que é a imaginação. Trouxestes um profundo conceito de humanidade que é a eterna argamassa das obras sólidas. Trouxestes a compreensão de que História não é elogio fúnebre que um expositor deve fazer vestido de luto, e sim uma ciência fascinante, incorporada à Literatura, e que há de ser tratada com elegância e louçanias de estilo. Trouxestes um “que” de pitoresco que os nossos historiadores não usavam. E, mais do que tudo, trouxestes para contar as coisas brasileiras, uma chama coruscante de brasilidade que poucas vezes se tinha visto inflamando as páginas escritas pelos nossos historiógrafos.

O êxito tinha de ser imenso. E foi.

Sr. Luís Edmundo: eu sou dos que têm paixão pela vossa poesia. Sois um poeta inato. Sois um prosador de raça. São sempre de raça os prosadores que nascem poetas.

Como a vossa poesia, a vossa prosa é água pura nascida na rocha viva. Tem sabor e frescura, tem beleza e cristalinidade. Além dos predicados de naturalidade e simplicidade, é jovial, brincalhona, às vezes irônica, às vezes mordaz, às vezes cáustica, mas sempre vigorosa, incisiva sempre e sempre evocativa.

O poder de síntese e o colorido das tintas são alicerces em que ela se firma. Nada mais de duas ou três pinceladas para a realização de uma grande tela. As palavras, na vossa prosa, valem por verdadeiros desenhos.

Para descrever o cheiro das casas: e da gente das ruas e ruelas dos lados da Misericórdia, basta-vos um período curto: “Cheiram a mofo, a pau de galinheiro, a sardinha frita, a suor humano.”

Duas ou três palavras apenas dão-nos o aspecto horrível do velho bairro anti-higiênico: “Tudo isso anda a pedir, aos berros, picareta, fogo ou terremoto.”

Não há pintor que consiga realizar tanta coisa com tão poucas pinceladas. Esta descrição de ruelas do antigo Morro do Castelo é um modelo admirável:

Quem passa pela rua vê casas e moradores nos detalhes mais íntimos, pois que devassa, completamente, os seus interiores. Interiores sem sombra de menor conforto. Paredes acaliçadas, frias, lá uma vez ou outra forradas com papéis de vinte anos atrás, cheios de manchas de umidade, enodoadas pelas mãos da crianças imundas; soalhos podres, tetos, muitos, de telha vã, e, como mobiliário, a tradição de miséria vinda dos tempos da colônia. Aqui, uma cômoda de gaveta perra e maçaneta quebrada, ali, duas ou três cadeiras de palhinha, tortas e desconjuntadas, mais adiante, a mesa de pinho por envernizar, amassados baús de folha de Flandres, e sobre os móveis indistintos, os clássicos oratórios de madeira, pintados ou envernizados de amarelo, com recheios de flores de papel, o indefectível Santo Antônio que, se está de costas, está trabalhando para as solteironas da casa, umas moçoilas pálidas, cheias de olheiras e sardas, que trabalham cosendo para o Arsenal de Guerra e que vivem queixando-se de pontadas no lado do pulmão, tonteiras e falta de ar. Pobres raparigas de lábios brancos e sorriso que nos fazem mal, com trinta anos e já cheias de melancolia de rugas e de cabelos brancos.

Na vossa obra talvez seja o nervo descritivo o encanto maior. A História, feita por vós, é História que a gente vê, que a gente sente, que a gente vive. É a História de moldes novos como talvez ainda não se tinha feito no Brasil. A novidade tinha de impressionar; o êxito tinha de ser o que tivestes.

É em O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis, em A Corte de D. João no Rio de Janeiro e em O Rio de Janeiro do Meu Tempo que apresentais os mais belos tesouros de virtudes descritivas e os raros surpreendentes atributos de evocação. Os Sinos, O Namoro, O Casamento, Teatro de Títeres, em O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis; A partida, D. Carlota e Nobres, em A Corte de D. João no Rio de Janeiro são páginas evocativas que, lidas uma vez, se gravam como realidades que os nossos olhos tivessem testemunhado.

A descrição da Missa dos Barbadinhos; o capítulo da Modinha e dos Seresteiros; a descrição dos garçons de café, lidando com as bandejas cheias de xícaras, enfim todo aquele maravilhoso repositório de cenas e costumes cariocas que transborda pelos três volumes de O Rio de Janeiro do Meu Tempo é história de feitio novo, história que entra pelos olhos e que fica indelével na memória, justamente porque, na memória penetrou pela melhor porta que ela possui – os olhos.

Não resisto à tentação de ler aqui A Tragédia do Cordão – Estrela dos Dois Diamantes, do terceiro volume de O Rio de Janeiro do Meu Tempo. É uma página viva, flamante, atordoadora. Ouvi-a, meus senhores:

O escritor esboça o panorama do Carnaval carioca. No domingo, o cordão carnavalesco Estrela dos Dois Diamantes seguiu da Cidade para Botafogo. Ao dobrar a curva da rua Marquês de Abrantes, é agredido, de surpresa, pelo cordão Filhos da Primavera, que ali ficara de tocaia. A luta é brutal, à faca e a tiro. Caem mortos duas figuras da Estrela dos Dois Diamantes – o Angelino Gonçalves – o Boi e o Jorge dos Santos, sem alcunha carnavalesca. Os corpos são levados para o necrotério, na Praia de Santa Luzia, junto da Santa Casa.

No dia seguinte, segunda-feira, o enterro.

É justamente a descrição do enterro, a página arrebatedora.
Ouvi-a:

Os da Estrela dos Dois Diamantes deixam a morgue organizando o préstito mortuário, com o seu estandarte envolto em crepe, as caixas de rufo teatralmente em funeral, embora os sócios dentro das fantasias as mais escandalosas e berrantes. Os caixões, negros e pobres, vão à frente. A seguir, numa carreta, flores, palmas, coroas e grinaldas. É uma homenagem simples, porém tocante. Desde o préstito, que é numeroso, caminho do Catete. Pelos lugares por onde passa, o povo, reverente, se descobre. As senhoras persignam-se. Rezam. Se a tragédia afligiu toda a cidade! À janelas das casas chega toda uma multidão de curiosos para gozar o quadro singularmente sombrio e melancólico. Vai o bando lúgubre e silencioso roçando as calçadas do Largo da Glória, quando, súbito surge-lhe pela frente, carregando pendões carnavalescos, caixas de rufos, bombos e tambores, um povaréu enorme, que ondula. São várias agremiações congêneres que, em peso, querem, também, homenagear os heróicos batalhadores de Morno, no campo da “Honra” e do “Dever” colhidos pela Morte...

Os jornais da época dão o nome dessas associações. São elas: Filhos do Poder do OuroDestemidos do CateteMaçãs de OuroRainha das Chamas e Triunfo da Glória. É um espetáculo magnífico. Verdadeira mobilização de mascarados. Centenas e centenas de homens vestindo as mais berrantes e excêntricas indumentárias de carnaval, com a cara pintada, com sacos de confete a tiracolo, pacotes de serpentinas debaixo do braço, estandartes policromos desenrolados no ar, manchas violentas e alegres de cor num cenário de luto e de tristeza. Formados em continência, deixam passar os esquifes onde repousam os mortos. Depois, incorporam-se à massa espessa dos acompanhadores.

Pela Rua do Catete segue o formigueiro humano, caminho de Botafogo, em passo ritmado. De quando em quando novas adesões aumentavam a cauda viva, que se encaminha para o cemitério. Mais povo. Mais carnavalescos. Chega a impressionar a majestade do séqüito pomposo com que nunca sonharam ter, um dia, Angelino Gonçalves, vulgo Boi, e Jorge Santos, sem alcunha carnavalesca. E vão a marchar, todos, assim, caminho de Botafogo, quando um dos ranchos tem a idéia de fazer soar, sobre a pelica de seus tambores, rufas melancólicos, em ritmada e fúnebre surdina: pram... pram... pram... pram...

A idéia é amável. Agrada. Outros ranchos imitam-na. Rufam também: pram... pram... pram... O ruído dos passos, nas calçadas, é vencido pelo planger das pelicas que as vaquetas barulham. Ganha um pouco de vida a comitiva enorme. À frente, sempre os dois negros ataúdes que dominósdiabosclowns e pierrôs carregam.

Vão todos em marcha lenta, mais ou menos dispostos e aprazidos, quando rompe uma voz misteriosa, num cristalino canto que se eleva, em adágio magnífico... E, logo, acompanhando-a, o cavo e surdo rumor de instrumentos de sopro...

A toada impressiona. Comove. É profunda. É serena. A princípio desenha angústia. É pranto e é sofrimento. Depois desenrolada, ganha um ímpeto mais vivo, mais decisivo. Aquece. Arredonda-se. Alteia-se. Destaca-se. Domina. Ouvem-na, todos curiosos. Depois, subindo sempre, rebenta, num crescendo suavíssimo, num coro harmonioso, um coro a boca chiusa, que vai, também, por sua vez, avolumando-se, crescendo... Aqui, ali, acolá; já clangoram instrumentos. Esse clangor aumenta. É quando entra, animando-o, a bulha singular dos reco-recos. E dos pandeiros e chocalhos. Dentro de pouco tempo o cantar ensurdece, de tão forte. Toma corpo. Ascende. Transforma o ritmo da solfa, que resvala para um motivo sincopado. Já alegre. E profano. E irônico. E canalha. É o samba! As mulatinhas começam a rebolar as sobras dos quadris, saracoteiam negras crioulas de grandes saias rodadas, fazendo tremer a gelatina dos seios flácidos e disformes; pardavascos, agitados, raspam, com fúria, fundos de pratos e reco-recos. Agitam-se pandeiros. Os estandartes rodopiam no ar... Grita-se a mascarados, princesses e velhos, que batem a chula marchando na calçada:

– Corta a jaca! Castigo do corpo! Trama! Remelejo!

Vozeria. Clamor. Desencadeia-se a Folia. Delírio. A loucura é geral. Quando chegam ao cemitério, os funcionários da Santa Casa entreolham-se espantados. Entram os dois caixões aos boléus, os mascarados que os carregam aos empurrões, aos evohés! À frente deles, já passou um bando de índios emplumados, de arco, flecha e tacape, cantando, silvando, vivendo em fogo a pantomima dos seus bailados singulares.

Quando a cova úmida e fria recebe os corpos que se enterram e cruzam no ar confeite e serpentinas, o cemitério está coalhado de máscaras, de fantasiados álacres, que se agitam, massa colorida que se esparrama, fala, ri, barulha, gargalha, entre cruzes de pedra, ciprestes, anjos de mármore que abençoam, lousas, urnas funerárias e salgueiros... E há quem cante. E quem dance...

Sabbat magnífico! Morno domina seus muitos amados filhos, soberbo e colossal, do seu trono invisível. É quando se vê um folião representando a figura da Morte, na sua negra e sinistra indumentária, tendo na mão esquerda um crucifixo de prata e na outra uma tíbia, talvez autêntica achada no lugar, subir para um mausoléu de granito, gritando forte aos carnavalescos que o saúdam, como se fosse ele a própria alma carioca, que ali estivesse a gritar, cheia de sinceridade e de vigor: Viva o Carnaval!

O falso xenófobo

Sr. Luís Edmundo: propalam por aí as bocas maldizentes que nos vossos livros de história existem jaças de xenofobia.

Será isso verdade? Eu sou dos que leram a vossa obra da primeira à última página. É falsa a insinuação.

Se tendes algum pecado como escritor, esse pecado é o da revelação de uma tocante simpatia pelo que é estrangeiro, sobretudo pelo que é de Portugal. Pouca gente, no Brasil, escreve mais à portuguesa do que vós. A nossa maneira, a maneira brasileira de escrever é inteiramente diferente da vossa. Escreveis pelos moldes lusitanos. E sabeis disso melhor do que eu. Tenho guardado, entre os meus papéis, aquela carta que me escrevestes há uns bons vinte anos, de Paris. Eis um trechinho dela:

Ah! como eu quisera escrever brasileiro como vocês escrevem! Quisera, mas, não posso. Culpa de meu pai que assim me educou. Meu filho, como os de sua geração, já não será assim. Minha infância e minha adolescência foram invadidas, encravelhadas pelos clássicos lusos. Saí da fôrma como sou. Além disso é preciso contar com o ambiente português em que sempre vivi, parentes e amigos portugueses. Viagens a Portugal. Muitas viagens! Às vezes, é confissão sincera, tento escrever como vocês, brasileiramente, mas, nada sai. Não mudo. É como se eu quisesse mudar a cor dos meus olhos.

Vossos livros estão carregados de expressões que só se usam em Portugal, de modismos e de idiotismos portugueses. “Foi jantar para um restaurante”; “foi residir para Londres” são frases que usuais freqüentemente. O verbo mercar, desusado no Brasil, salta muitas vezes dos vossos períodos. Algibebe, palavra de que nós até desconhecemos a existência, lá está em O Rio de Janeiro do Meu Tempo, para indicar o homem que vende roupa feita. Encontrei uma manchasita de sol em A Corte de D. João no Rio de JaneiroManchasita é palavra que um brasileiro autêntico não dirá nunca. Encontrei um lusitaníssimo escadote, em vez de escadinha brasileira. Usais mamã quando é mamãe que usamos. Quando calha, muito do uso dos nossos irmãos de além-mar, vive à vontade nas vossas páginas.

Humberto de Campos teve razão quando afirmou que sois um legítimo poeta português, na técnica e na inspiração. E prova incontestável desse lusitanismo é o vosso sotaque alfacinha. Quem vos ouve, quem vos ouviu agora nesta sala, teve a impressão de que acabou de ouvir um português chegado há poucos dias de Lisboa.

Na vossa casa predominam as coisas portuguesas – livros, quadros, porcelanas, louças e raridades.

Nos vossos livros há sempre justiça à terra e ao povo lusitano, quando é preciso fazê-la. Há páginas e páginas de exaltação à literatura portuguesa, à arte portuguesa ao heroísmo português, à operosidade portuguesa, à simplicidade portuguesa. Em certas ocasiões transformais-vos em franco advogado da gente lusa. Uma delas é quando a defendeis dos ataques de Deocleciano Mártir.

Não escondeis um instante a admiração aos grandes homens de Portugal. Camões, Bocage, Camilo, Eça, Ramalho, Antônio Nobre, Fialho, Júlio Dantas são figuras do vosso culto literário. Causa emoção à gente a ternura com que traçais os perfis de Artur Costa, Julião Machado, Henrique Chaves, Salamonde, figuras portuguesas que deram ao Brasil o que tinham de melhor no espírito e no coração.

A história brasileira do Brasil

Sr. Luís Edmundo. A vossa xenofobia não existe. Não sois inimigo do estrangeiro. O que sois é amigo do Brasil. O que sois é historiador nacional, historiador brasileiro da História do Brasil.

É preciso dizer isso com tom de redundância – historiador nacional, historiador brasileiro da História brasileira do Brasil.

A história brasileira do Brasil é coisa nova. O que havia, pode-se dizer, até meio século passado, era a história portuguesa do Brasil. História de vice-reis e capitães-mores, enfadonha, pesadona, indigesta, que fazia, nas escolas, que as crianças ferrassem no sono.

O Brasil, visto através de semelhante história, era uma entidade incolor, apirica, sem vibrações, sem culminâncias, sem majestade. Tudo o que havia de grande era português. A Portugal pertenciam todos os surtos de heroísmo, todas as expressões de valor moral, todas as culminações, todas as epopéias.

Do Brasil, só a terra valia alguns patacos. O brasileiro apenas recebia os benefícios da colonização; com virtude alguma concorria para que as claridades civilizadoras se derramassem no país. O brasileiro era coisa secundária, inferior, sem papel no grande drama político-social que se vinha desenrolando e tão indolente e tão estéril que não sabia, sequer, ganhar dinheiro, para construir, ao menos, a sua fortuna material.

Esse conceito que, durante séculos, foi a moldura desgraçada com que nos apresentavam ao mundo, teve tal luxo de apresentação e calou tão fundo no espírito europeu, que até hoje, do espírito europeu não o conseguimos retirar inteiramente.

A história, que assim nos apresentava, era a história feita por áulicos e validos dos reis, a única que existia, escrita sob a tutela e sob a freio da Corte, firmada unicamente na documentação que convinha aos colonizadores.

O 7 de Setembro não melhorou a situação. O reinado de Pedro I não permitiu que a inteligência brasileira alçasse o vôo da independência espiritual. Mais tarde, no segundo reinado, já eram brasileiros os historiadores, mas (as exceções são raras) acanhados, tímidos, medrosos. O sangue bragantino, que ligava o nosso monarca à raça dos colonizadores, como que representava um constrangimento no arrojo dos comentários. O caso de Joaquim Norberto é típico. Munido do melhor material que se pode ter para historiar a Inconfidência, o autor da História da Conjuração Mineira não teve a coragem de dar a Tiradentes o papel que ele, de fato, encarna no cenário liberal do Brasil.

Só na República os historiadores deixaram de ser os cronistas d’elrei. Só na República conseguiram realizar a história brasileira do Brasil. Os Capistranos, os João Ribeiros, Os Manoel Bomfim, os Rocha Pombos, os Rodolfo Garcias, os Basílio de Magalhães, os Oliveira Viana, os Tobias Monteiros, os Roberto Simonsen, os Sérgio Buarque de Holanda, os Afonso Arinos de Melo Franco, os Gilberto Freire, eles e Luís Edmundo, deram um sentido novo à história pátria. Deram o sentido americano, o sentido brasileiro que ela não tinha.

Desintegrada de Portugal, formando um caldo de cultura à parte em nossa própria terra, a história nacional tomou um porte que antigamente ninguém imaginava que ela tivesse.

O que dava a todo o mundo aparência de insignificância iluminado pelo clarão da análise, tomou vulto de grandeza. As “bandeiras” que se apresentavam como aventuras sertanejas de somenos, adquiriram o esplendor de epopéia. Adquiriu imponência a bravura brasileira na luta contra os flamengos. Os “emboabas” e os “mascates” classificados de motins passaram a ter o seu verdadeiro significado – o de manifestações de autonomia. A Inconfidência deixou de ser uma insubordinação inferior como insistiam em classificá-la, para ser uma maravilhosa refulgência de idealidade. A abdicação, reles movimentos da ralé, aproveitados por políticos ambiciosos, passou a ter a significação de verdadeiro advento da Independência.

Os homens adquiriam os seus verdadeiros planos. Aimberé e Cunhabebe, meros silvícolas sanguinários, destacaram-se como os vanguardeiros, da resistência, contra o invasor. Anchieta foi integrado no seu grande papel – o de primeiro mestre do Brasil. Henrique Dias, Camarão, Vidal de Negreiros tiveram o heroísmo aferido com o entusiasmo. Tiradentes conseguiu a redenção patriótica. Não é mais o indiscreto como o apresentavam – é o arrebatado, como na verdade foi; não é o insensato – é o herói; não é o despeitado – é o idealista, não é o insatisfeito – é o iluminado.

Vieram para o primeiro plano as figuras radiosas de Padre Roma, de Domingos José Martins, de Frei Caneca, que ainda não tinham tido o iluminamento da fama que os seus feitos liberais exigiam.

Sr. Luís Edmundo, vós sois dos que mais fizeram para que a História do Brasil tivesse o seu 7 de Setembro. Sois dos que o arrancaram da mansão européia onde ela era apenas uma dependência, um puxado insignificante, para incorporá-la na vastidão americana, onde ela vive autônoma, dentro da sua própria casa, dignificada pelo valor dos que a fizeram na guerra imolando sangue heróico, dos que fizeram na paz com o fulgor da inteligência.
Não sois xenófobo, não sois jacobino. Sois unicamente historiador brasileiro da História do Brasil.

O que tardou

Sr. Luís Edmundo: por onde andáveis que só agora chegastes a esta casa?

Há muito tempo, debaixo destas telhas, vinha sendo desejada a vossa presença.

Embora lá fora não se acredite, cobiçamos e até mesmo disputamos as figuras que devem compor a nossa família, quando elas têm o encanto da vossa sensibilidade mental e os ornamentos fascinantes do vosso espírito.

Aqui dentro tudo é simples e tudo se processa pelas formas comezinhas. Não é a nossa vaidade que faz da Academia o Olimpo das letras pátrias, onde se agitam deuses; é a imaginação dos que estão lá fora. O conceito de imortalidade só existe na fachada desta Casa. Aqui somos os mais terrenos dos homens, e, às vezes, somos até boas criaturas.

Como seres humanos ouvimos os rumores do mundo. As nossas janelas se abrem como as outras janelas para que os raios de sol possam entrar livremente. As nossas telhas tem antenas para captar toda a sorte de sonoridades intelectuais.

E foi justamente esse nosso feitio nada de divino, inteiramente humano, que nos fez cobiçar a vossa companhia, Sr. Luís Edmundo.

Pelas nossas janelas abertas entravam em rajadas os clarões das vossas virtudes de escritor. Zoavam sobre as nossas cabeças as vozes que vos aclamavam nas ruas.

E nós quisemos que aqueles clarões viessem irradiar aqui dentro e que aqui dentro ressoassem aquelas vozes.

E reunidos, em família, dizíamos de quando em quando uns para os outros.

– Por que é que ele não vem? Por onde é que ele anda que não acerta o caminho desta Casa?

Não sei, Sr. Luís Edmundo, se, lá fora, percebestes os nossos acenos. A verdade é que os fizemos e muitos.

Quereis uma prova? Só batestes a esta Casa uma vez, uma única. E mal acabastes de bater abrimos, para vós, de par em par todas as nossas portas.
Por que tardastes tanto, Sr. Luís Edmundo?