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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Carlos Chagas Filho

Sr. Ivo Pitanguy,

ao serdes recebido na Academia Brasileira de Letras, sinto ressoar neste ambiente as vozes de outros acadêmicos que, como Vossa Excelência, souberam juntar a uma eficiência profissional extraordinária uma enorme compreensão do que é a vida nos seus múltiplos aspectos. Dos que já se foram, cito apenas Miguel Couto, Patrono dos médicos brasileiros, de quem meu pai disse “ser o homem bom por excelência”, Oswaldo Cruz, criador da Medicina Experimental em nosso País, Antônio Austregésilo, eminente sábio neurologista, e Miguel Osório de Almeida, que se encontra na linha dos acadêmicos que vos antecederam e que, como vós mesmo, poderia dizer, era um homem da Renascença. Pertenciam, os quatro, a uma mesma formação, amigos das artes e das demais atividades culturais.
 
Deveis vos sentir em franca ressonância com o espírito de nossa Casa, pois sois um homem de Cultura, e esta é uma Casa onde a Cultura tem, no Brasil, um de seus melhores nichos. Em nosso meio, ireis encontrar uma gama variada de valores que representam o espectro da civilização intelectual de nosso País. Mais ainda: ireis viver num ambiente em que a consonância de ideais não é perturbada por diferenças de opiniões, quando estas existem. E, assim, uma Casa de alegria, pois todos os que aqui vivem estão em plena união com as atividades culturais que exercem.
 
Sr. Ivo Pitanguy. Sois um homem bem-sucedido, e a expressão que aqui uso nada tem a ver com o sucesso material ou com o reconhecimento midiático. Bem-sucedido sois, porque vosso ideal de jovem se concretizou, de uma forma brilhante e positiva, que vos torna uma das melhores expressões do povo brasileiro.

Analisando a vossa vida, vê-se que não conquistastes prestígio, fama e glória através de oportunidades desvalidas, mas sim através de um esforço próprio, guiado sempre pelo desejo de realizar o ideal de servir a todos quantos necessitassem de vosso auxílio.

Vossa trajetória mostra o quanto lutastes porfiadamente para atingir a posição de “mestre da cirurgia plástica” que vos deu fama em todo mundo, especialidade que soubestes valorizar como dantes não o havia sido.

Fostes sempre um bom estudante e brilhastes, em todo o curso que seguistes, em Belo Horizonte. Do mesmo modo, soubestes aproveitar, como poucos o fazem, as lições dos ilustres profissionais com que trabalhastes no estrangeiro.
 
É bem verdade que tivestes, a vos ajudar, dois extraordinários exemplos da gente mineira: vosso pai, Antônio de Campos Pitanguy, e vossa mãe, Maria Staël Jardim de Campos Pitanguy. Gente mineira, daquela que faz do Estado das Minas Gerais um núcleo de sabedoria, de probidade e de interesse intelectual.
 
Antônio Pitanguy foi um médico de perfeita estatura profissional. Probo, estudioso, piedoso e exato no cumprimento dos seus deveres. Com ele, aprendestes que não há doentes, e sim “um doente”, fórmula esta que, no vosso exercício profissional e no próprio convívio humano em que viveis, se transforma na verdade fundamental de que não há seres vivos iguais, mas sim que cada um de nós é um indivíduo bem identificado genética, biológica e psicologicamente.

Maria Staël Pitanguy, descendente de Felisberto Caldeira Brant, transmitiu-vos o seu próprio interesse pelas Letras e pelas Artes, acompanhando, assim, vosso pai –  cotidianamente preso por suas atividades profissionais – na formação integral de vossa personalidade. Como eram cultas – e o são até hoje – as mulheres de vosso Estado! Minha avó, Maria Lobo, nascida na segunda metade do século passado, falava e escrevia correntemente o francês sem nunca ter saído da sua velha e pequena cidade de Campanha. Bem mais tarde, vosso interesse pela Literatura seria acrescido na convivência deste grupo de jovens mineiros que tanto brilho deu às Letras Brasileiras: Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino.

É certamente de vossa progenitura que aprendestes o bom gosto pela Literatura e pelos Clássicos, que sabeis citar com tanta facilidade. Foi, também, na casa familiar que começastes a desenvolver o conhecimento das línguas estrangeiras que hoje tão bem dominais. Sois, dos brasileiros que conheço, um dos que melhor falam as várias línguas que praticam, e não me espantaria se em terras de Espanha utilizásseis o Galego, tão parecido com o nosso Português e por isso tão difícil de ser bem falado.

Soubestes orientar a vossa vida profissional de maneira particularmente precisa. Não sei qual terá sido a contribuição de Antônio Pitanguy neste planejamento. O que sei é que, desassombradamente, seguistes o bom caminho que só leva a uma especialização quem conhece os fundamentos que lhe dão as necessárias bases. É por isto que sois, mais do que um especialista da Cirurgia de Reconstrução, um bom médico e um excelente cirurgião geral. Exemplo tão desrespeitado hoje na nossa formação profissional, em que são queimadas as barreiras de etapas necessárias.

Vossa meninice e juventude passaram-se em Belo Horizonte, e, certamente, a amplitude das montanhas e das serras que a cercam deve ter inspirado ao jovem, muitas vezes travesso nos seus momentos de desocupação, o desejo de realizar a sua vida grandemente, sem se socorrer senão do valimento de sua própria personalidade.

A vossa vinda para o Rio foi uma consequência de vosso desejo de progredir, muito embora excelente fosse a escola de Medicina da capital mineira. Queríeis ir mais longe e pensastes, naturalmente, que na Metrópole mais recursos haveria para expandir o vosso conhecimento.

Um quase acidente fez com que viésseis ao Rio mais cedo do que esperáveis. E que o serviço militar vos chamou para incorporar o jovem reservista cavalariano à tropa que devia seguir para a frente de combate na Segunda Guerra Mundial. O término desta impediu-vos de partir, o que certamente vos deixou um gosto amargo, porque há, no fundo de vossa alma, um pouco da amálgama de Gavroche e de um Cadete da Gasconha.

Sentistes depois a necessidade de alargar os vossos conhecimentos e a vossa experiência, mas já tínheis a alma comprometida com o bem-estar do próximo e fostes procurar esse alargamento no estrangeiro.

A bolsa de estudos que vos foi concedida levou-vos a uma cidade em que o clima humano era totalmente diferente – embora de qualidade – daquele com que estáveis acostumado. Cincinatti é uma cidade áspera, quando o forasteiro ali chega. Fostes recebido no Hospital Bethesda e nele encontrastes quem iria dissipar qualquer desânimo que o novo habitat podia vos dar. Foi o Professor Longacre que vos recebeu e com o qual estabelecestes uma ligação de mestre/discípulo que, se vos foi útil, certamente também o foi para o professor norte-americano, acostumado muito mais à rigidez de pensamento dos alunos anglo-saxônicos do que à agilidade mental de um latino-americano, condição que então apresentáveis de maneira perfeita.

Voltastes ao Rio, terminado o vosso estágio, com uma bagagem de conhecimentos a qual dificilmente teríeis adquirido aqui, já que os nossos grandes cirurgiões da época ainda não se tinham apegado à importância da Cirurgia Reparadora e de sua identificação como disciplina própria.

Assinalo que nessa oportunidade fostes um exemplo de denodo e decisão. E que as condições de trabalho que vos foram oferecidas, ainda que úteis e, direi mesmo, utilíssimas, porque na ambulância do Pronto-Socorro pudestes conhecer o submundo da miséria econômica e das dificuldades de vida que se encontram nas favelas, não vos permitiriam nunca a realização do que já tínheis em vossa mente: socorrer homens e mulheres, trazendo-lhes a quase normalidade que condições desastrosas, ou defeitos genéticos, haviam feito com que fossem discriminados – ou quase – da comunidade em que viviam.

Decidistes, então, retornar ao estrangeiro para adquirir mais experiência, que iríeis expor à vossa magnífica intuição e inteligência.

Assim, seguistes para trabalhar, em Paris, com o Professor Marc Iselin e, como sempre, soubestes formar uma composição de aperfeiçoamento com o vosso novo mestre que terá sido útil para ambos. É que, na verdade, tendes o dom de compreender as pessoas com que entrais em contato e com que conviveis, o que vos dá a popularidade de que gozais em todos os meios – profissionais ou não – que frequentais.

Nanterre, na grande Paris, foi a vossa primeira localização em França. Paris e a civilização francesa, que certamente conhecíeis de leitura, não vos foram uma revelação, pois que sempre houve, em vós, um componente “proustiano” que vos colocou em perfeita sintonia com a grande cidade. Paris, que alcançáveis de motocicleta, era, como sempre foi e o será, um deslumbramento para vós, mas ali chegastes em um momento extremamente positivo. É que Paris renascia. E renascia, totalmente, dos anos terríveis de ocupação, e a alegria voltava à cidade.

Tivestes um bom introdutor para a vida artística que ali se passava. É que viajou convosco, no avião que vos transportou à França, uma das grandes artistas da Música Popular Francesa, Juliette Greco. Frequentáveis o Café de Flore, ou o Lipp, quando possível, isto é, quando a escassez de recursos não era demasiada, e ainda, entre tantos outros, a Rose Rouge, onde brilhavam Mouloudji, o próprio Brassens e os Frères Jacques. Também o pequeno “Café-Concert” L’Écluse, no cais de Saint-Michel, onde dois cantores, Marc e André, vos atraíam, cantando a vontade da Ilha de Saint-Louis de se desgarrar da Ilha de la Cité, outro ponto de interesse. Para ouvir Edith Piaff, éreis obrigado a ir ao outro lado do Sena, seja na vizinhança da Praça Wagran, seja, mais tarde, no Bobino. Também do outro lado do Sena ficava a Comédie Française, cujo repertório tantas vezes vos foi recitado por Maria Staël. Tornaste-vos um conhecedor profundo do Quartier que envolve Saint-Germain-des-Près, para onde confluem o Boulevard Saint-Germain, a Rue des Rennes e a Rue Bonaparte, onde fica a Academia de Medicina da França – que eu não sei se frequentastes. Também não sei qual o convívio que tivestes com habitués dos “cafés”, restaurantes e bares do Quartier, onde, na época, se acotovelavam Jean-Paul Sartre, Bons Vian, Raymond Queneau e Francis Carco, que tanto fizeram para renovar a vida intelectual francesa, tão restringida pela ocupação nazista. Estou certo, entretanto, de que soubestes vos aproximar de quem tanto interesse intelectual despertou em vós. A verdade é que as agruras da vida hospitalar, que mesmo em condições mais favoráveis são muito difíceis, às vezes, de serem suportadas, eram superadas pelas poucas noites em que podíeis ir a esse pequeno mundo em que a alegria das gentes torna a vida muito mais simpática. Assim, vossa motocicleta zunia entre Nanterre e Paris.
 
Mas não ficou aí o vosso aprimoramento. Da França, seguistes para a Inglaterra, terra na qual a Cirurgia Reparadora se tornara mestra depois da mutilação de suas cidades e de seus soldados pelo desvario das forças hitlerianas. Ali surgem, de novo, mestres que darão ao já brilhante – ainda que iniciante – cirurgião a sua melhor atenção, não por dever de ofício, mas sim pelas qualidades que nele pressentiram.

Na pessoa de Sir Harold Gillies, encontrastes um exemplar perfeito do profissional liberal inglês já aposentado, mas com as suas manias bem definidas, entre as quais a do golfe e a da pintura. Com ele vistes que uma carreira profissional não dispensa os momentos de lazer e, menos ainda, o exercício de um passatempo esportivo. Foi com ele que aprendestes o vosso interesse pela pesca submarina e pela aeronavegação. Gillies vos contou, também, das dificuldades dos cirurgiões plásticos durante a Segunda Guerra Mundial. Ao seu lado, encontrastes Archibald McIndoe, provavelmente o maior de todos os mestres, que vos mostrou a importância de uma execução perfeita do ato operatório.

Antes de voltardes para o Brasil, fizestes uma longa viagem pela Europa. Mais do que em qualquer outro momento, este foi aquele em que pudestes reconhecer a importância da civilização e da cultura que, durante séculos, ali se forma. Visitastes catedrais, castelos, burgos em múltiplos países e, com isto, adquiristes uma fundamentação extraordinária para falar, como falais, em civilizações passadas. Creio, entretanto, que o país que mais vos atraiu sentimentalmente foi a Espanha, porque ali fostes encontrar Marilu, vossa esposa. Em um café, em um restaurante, talvez em torno de uma “sangria”, não posso dizer como o foi, mas sei que nesta ocasião selou-se a vossa sorte com quem é um perfeito modelo de dama brasileira.

Aqui chegando, caístes no difícil emaranhado das condições do trabalho médico no Brasil. Quis o destino, que tanto vos admira, que obtivestes um serviço na Santa Casa de Misericórdia, mas não era tal condição suficiente para realizar o vosso ideal. Saístes pelos hospitais brasileiros solicitando que queimados ou outros acidentados fossem encaminhados ao vosso serviço, ao qual, desde então, dais a melhor das atenções.

Creio poder dizer que sois um artista na Medicina que, nós sabemos bem, é muito mais Arte do que Ciência, porque nela há o estabelecimento de uma ligação entre um médico e um paciente que muito se assemelha àquela de um criador artístico com a obra que realiza.

Como artista plástico, estais muito mais próximo de um escultor do que de um pintor, porque aquele, embora preso à rigidez do material com que trabalha, pode errar e corrigir-se, e este último tem uma liberdade de ação e de escolha que o escultor não tem. O cirurgião plástico, ao contrário do escultor, que pode corrigir o erro de seu cinzel, não pode errar de um milímetro o corte que pratica. Assim, a vossa responsabilidade, cada vez que operais, é enorme. Várias vezes tenho podido assistir a operações que realizastes, o que me fez voltar aos tempos de estudante, quando presenciava atos cirúrgicos executados por um dos mais eminentes médicos brasileiros, o Professor Brandão Filho. Era um cirurgião que, como vós, dominava a sua técnica e havia organizado uma equipe operatória que o ajudava com precisão maquinal.
 
Admirei e admiro a pertinácia que vos foi necessária para implantar a Cirurgia Reparadora em nosso meio. E que não é fácil, em qualquer país, implantar alguma coisa nova que, as mais das vezes, colide com interesses privados. De outro lado, as grandes realizações médicas ou científicas são combatidas, frequentemente, seja por misoneísmo, tão prejudicial ao progresso, ou então por aqueles que, sem conhecimento, ou por inveja, irritam-se com o sucesso dos outros. Certamente, isto terá acontecido em vossa vida. Não é este o caso de Carlos Chagas, que viu a sua maravilhosa descoberta contestada por colegas e companheiros de Manguinhos, até mesmo na principal sociedade médica do País? Mas fostes persistente e, pouco a pouco, malgrado a desafeição de muitos colegas com o vosso sucesso, vencestes uma etapa que parecia quase impossível, e eis-vos entronizado como o melhor cirurgião plástico do nosso País. Usei a expressão “nosso País” e não a alarguei, como seria justo, porque quero realçar a vossa profunda ligação com o Brasil. Mineiro e brasileiro, nossa terra tem uma expressão especial em vossa vida. A ela estais ligado por laços que superam todas as benesses que o estrangeiro pode vos oferecer. Com que frequência, sois chamado para pronunciar conferências, presidir sessões do mais alto coturno ou demonstrar a vossa técnica em países estrangeiros! Sois, provavelmente, o único cirurgião plástico que apresentou, em um volume de extraordinário merecimento, as suas técnicas. Esta obra, editada na Alemanha, com um cuidado de causar inveja a qualquer editor no mundo, deu-vos uma esplêndida láurea em uma das Feiras Internacionais do Livro, em Frankfurt. Entretanto, nada disso vos afasta do difícil cotidiano carioca, interrompido, nos fins de semana, para o necessário descanso numa ilha da baía de Angra dos Reis.
   
Sr. Ivo Pitanguy,
   
não vou me dar ao desfrute de relacionar aqui os vossos títulos e as distinções meritórias que tendes recebido das nações de além-mar. Seria, de uma certa maneira, apresentar o vosso magnífico Curriculum Vitae. Entretanto, como me disse uma vez meu amigo Peregrino Júnior: “Quem é candidato à Academia de Letras não precisa apresentar o seu Curriculum Vitae. Se o fizer é que não merece se candidatar.” Entretanto, não posso me furtar a assinalar, entre os numerosos doutorados honoris causa que tendes, o da Universidade de Bolonha, o qual vos foi concedido por ocasião da celebração do seu IX Centenário. Duas razões me levam a fazê-lo. É que cheguei a Bolonha alguns dias depois de vossa passagem pela cidade e da solenidade que se completou com a entrega das insígnias correspondentes. Foi com entusiasmo que ouvi as referências feitas a V. Exa. não só pela extraordinária qualidade de vosso discurso, como também pelo excelente italiano pronunciado numa cidade famosa pela qualificação intelectual e, ainda, pelo cuidado com que os emilianos cultivam o seu vernáculo. A outra referência que quero fazer é ao fato de que foi em Bolonha que nasceu, em 1524, a Cirurgia Reparadora pelas mãos do Professor Gaspari Tagliacozzi.  Diria eu que foi um retorno às suas origens o momento em que Bolonha vos consagrou.

Depois dos anos passados no exterior, voltastes ao Brasil e aí começa, realmente, para vós, uma luta incessante: a de implantar em nosso país uma nova disciplina cirúrgica e a de encontrar um local para o seu trabalho. Como sabeis, há no fundo da grande maioria dos homens um componente de medo das inovações. Assim, não vos foi fácil convencer os vossos colegas da necessidade de implantação de técnicas de Cirurgia Plástica. Entretanto, em pouco tempo vencestes a batalha e hoje dividis vosso tempo entre a Santa Casa e a “casa encantada” da Rua Dona Mariana, onde tendes resolvido tantos problemas muito mais humanos do que técnicos, onde mulheres e homens entram preocupados e, às vezes, desesperados, para saírem com o sorriso da esperança no rosto.
   
Sr. Ivo Pitanguy,
   
passou-se o tempo em que a Cirurgia Plástica, ou melhor, a Cirurgia Cosmética, era desconsiderada, pois imaginada não necessária. Hoje ela é aceita como uma necessidade urgente para todos os que se sentem deslocados na sua comunidade. Se esta consideração é válida para correção de defeitos graves, como o de um lábio leporino, ela também o é para os atos cirúrgicos que nada mais fazem do que dar, a mulheres e a homens, a satisfação de verem vencidos motivos que, as mais das vezes psicologicamente, os impediam de verem completadas as suas personalidades psicofísicas. Deveria mesmo empregar o termo self, tão do agrado dos psicanalistas. Creio, aliás, que não é desmando aproximar a Cirurgia Plástica, corretiva ou cosmética, da Psicanálise. As duas disciplinas nada mais fazem do que corrigir desvios que se tenham formado na personalidade psíquica, ou física, daqueles que, esperançosos, as procuram. Na verdade, estas duas disciplinas, tão separadas no espaço, nada mais fazem do que dar, a quem o necessita, uma posição de normalidade na comunidade em que vive.
   
Sr. Ivo Pitanguy,
   
sois, na verdade, um pioneiro em todas as atividades que exerceis. No momento em que o ambiente se torna uma preocupação máxima da sociedade mundial, e o problema se apresenta tanto mais grave quanto menos desenvolvido é um país, fostes uma das primeiras pessoas que eu ouvi falar em proteção do ambiente e tomastes vosso tugúrio marítimo em um local de proteção ambiental e de conservação de espécies vegetais e animais raras. Esta atitude não é um modismo. Ela vem dos vossos tempos de menino, quando já apreciáveis a Natureza. Assim, quando íeis à Serra da Piedade, colhíeis, com o maior cuidado, flores e plantas, flores que leváveis para casa para homenagear vossa mãe e plantas sobre as quais se debruçava vossa curiosidade juvenil. Passar da admiração de plantas e flores à sua proteção é um dos melhores sinais de Cultura que conheço. Mas os animais foram sempre uma de vossas preocupações. Desde cedo, procurastes conhecê-los, e, em Belo Horizonte, até hoje conta-se a história de um menino que, sem medo, passeava dentro de casa ou pelo jardim, apavorando a todos com uma jiboia. Este menino era Ivo Helcio Campos Pitanguy.
   
Sr. Ivo Pitanguy,
   
falei muito dos caminhos que seguistes, mas faltam-me ainda as palavras com que desejo acentuar traços característicos de vossa personalidade.

O primeiro é a vossa disponibilidade para servir os que de vós necessitam. Acho que está na memória de nós todos a ação que executastes por ocasião do terrível incêndio do “Grande Circo Americano”, em Niterói, ocorrido em 17 de dezembro de 1961. Foram milhares as crianças as quais pudestes fazer reviver em um trabalho árduo, que se prolongou por meses. Não posso dizer quantos pacientes salvastes. Sei que foram mais do que numerosos, entre os 1.500 espectadores presentes, sobre os quais caiu, flamejante, o toldo de plástico que cobria o picadeiro. Mas, mesmo que fosse um só que houvésseis sabido recuperar, a maneira pela qual vos empenhastes no tratamento dos outros, durante dias e semanas, consagraria a nobreza de uma vida.

Que dizer então do pequeno boliviano que veio ao vosso encontro, queimado, trazido pelo Correio Aéreo Nacional, e o qual, na “casa encantada”, foi submetido a mais de dezessete intervenções, podendo voltar à sua terra com as feições de um ser humano?

Como falar no sem-número de indigentes que tratais com o mesmo desvelo e carinho com que recebeis os mais graduados personagens da cidade e do mundo? Se, em geral, atendeis na Santa Casa os mais necessitados, quando preciso os levais para a “casa encantada”.
 
Na verdade, perguntas como estas poderia eu formular às centenas, pois, cada dia que passa, mais do que um profissional de classes abastadas, pertenceis, também, àqueles que necessitam de vossos cuidados, por menor que seja a sua situação social.

Se eu tivesse que sublinhar as características de vossa pessoa, diria que uma das que mais me encantam é a ética com que agis. Está, também, sempre presente no vosso cotidiano a generosidade. Uma outra, a simplicidade de vosso trato, que encanta seres das mais variadas situações sociais. Com ela, segue-se a da compreensão da condição humana, que deve ser por nós todos encarada como o problema de maior importância nos tempos em que vivemos.

Diria, também, da vossa lealdade aos princípios fundamentais que devem reger o comportamento de mulheres e homens e que o sucesso que vos persegue em nada modificou desde o vosso tempo de menino. Lealdade com princípios, com amigos e com nosso País.

Generosidade, lealdade, simplicidade, perseverança são a base da formação desta comunidade de jovens profissionais que, em todos os países da América, particularmente da América Latina, e até mesmo da Europa, se juntam na grande associação de antigos alunos de Pitanguy.
 
Ao vos honrar, honram, também, o nosso País.    

24/9/1991