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Discurso de posse

Twiter 1: A terra é plana

Baixado da Nuvem Digital.

Com oito anos, eu esperava a cada mês a chegada da revista Em Guarda, distribuída pelo departamento de propaganda dos Estados Unidos. Ela trazia fotos de gordos bombardeiros, caças, porta-aviões, tanques assustadores. Excitavam a imaginação. Aquelas fotos, compartilhadas, nos levavam a subir em árvores ou a nos enfiarmos em caixotes, empenhados em “batalhas terríveis” nos terrenos baldios. Gritávamos o que ouvíamos no rádio: As Américas Unidas, Unidas Vencerão. Vencerão a quem? Contra o que lutávamos? Não compreendíamos.

Odiávamos a tal guerra, quando estávamos jogando futebol, e os fiscais nos confiscavam as bolas de borracha, dizendo: “É pelo esforço de guerra.” Que era aquilo? À noite, apagavam as luzes da cidade e diziam que era para nos defender dos aviões inimigos. Quem viria jogar bombas em Araraquara, bucólica cidade do interior paulista conhecida pela intensa arborização? As professoras Lourdes Prada e Ruth Segnini, que me ensinaram a ler e escrever, explicavam que muitas coisas não são compreendidas na mesma hora. Ficam paralisadas, no ar. “Pode ser que vocês atravessem a vida sem compreender. Mas procurem, corram atrás,” completava. “A vida é a busca do entendimento”.

A professora Lourdes morreu no ano passado, mas Ruth Segnini, no alto de seus 90 anos, está viva em Araraquara, só não veio a esta posse por problemas físicos. Aqui estão seu irmão, Francisco, e sua cunhada Liliana. E também Guilherme, seu neto, filho de Lena, sua nora. Também aqui está Silvio Prada, filho de Lourdes. A vida une sempre pontos que parecem aleatórios.

 

Ilmo. Senhor Marco Lucchesi, Presidente da Academia Brasileira de Letras,

Acadêmicos e Acadêmicas,

Minhas Senhoras e Meus Senhores, Araraquarenses

Para mim este momento é imensurável. Imensurável era a palavra que meu pai António Maria Brandão, o Totó , usava para designar instantes significativos. Ele foi um funcionário modesto que, entretanto, fez bela carreira na Estrada de Ferro Araraquara, chegando ao mais alto posto na Contadoria, o Escritório Geral que regia tudo. Homem que lia muito, gostava de palavras, tinha vários dicionários e me ensinou a usá-los. Seus memorandos, afixados em todas as estações, eram lidos com prazer, ele escrevia curto, com humor. E me aconselhava: “Aprenda palavras, e sua vida será mais fácil.” Jamais esqueço as noites em que minha mãe despejava o feijão na mesa e começava a escolher, separando os carunchados, as pedrinhas, os gravetos minúsculos, as folhinhas. Meu pai me chamava atenção: “Veja como ela escolhe os mais perfeitos, saudáveis, bonitos. Lembre-se disso, ao escrever busque as melhores palavras.” As palavras me pareciam misteriosas, e era uma aventura decifrá-las. Assim como foi aventura sintetizar Helio Jaguaribe em escasso tempo de fala. Helio, o homem que confessou em 1989:

O Brasil é um dos países mais

viáveis do mundo. No relacionamento entre recursos naturais e humanos e nível econômico-tecnológico já disponível, o Brasil se situa , com os Estados Unidos, a União Soviética e o Canada no topo da viabilidade mundial...

Helio, personalidade tenaz. “Homem que a vida inteira acreditou que havia uma solução para o Brasil”, me disse a fotógrafa Claudia Jaguaribe, sua filha.

Bem, este momento em que sou recebido nesta casa de “elevado porte cultural, na qual desfilaram centenas de escritores dentre os que mais preluziram em nossa cultura”, no dizer do filósofo Tarcísio Padilha, em seu discurso de posse na cadeira 2, este momento para mim é imensurável. Como imensurável foi o que senti aos 10 anos, quando li Alice no País das Maravilhas e em seguida Viagens de Gulliver e meu mundo expandiu. Vi que se pode construir uma realidade particular disparatada, enigmática. Mas real, ainda que pareça absurda. Quantas vezes não sobrevivemos dentro de uma realidade inexplicável que nos deixa atônitos? Também acontece de nos habituarmos a pertencer a “uma normalidade anormal”, como escreveu Euclides da Cunha, referindo-se à Guerra de Canudos.

Ah! Que me esqueço. Preluziram. Meu pai adoraria essa palavra.

Da nuvem digital. Memória

Eu deveria ser o décimo ocupante desta cadeira, cujo patrono é o poeta Fagundes Varela. Na verdade, sou o nono, uma vez que o terceiro eleito, Eduardo Ramos, não chegou a tomar posse, morreu antes. Aliás, também Emilio de Meneses, da Cadeira 20, morreu antes de sua posse. Por favor, aceleremos este ritual.

O primeiro desta cadeira foi Lúcio Eugênio de Meneses e Vasconcelos Drummond Furtado de Mendonça, ou apenas Lúcio de Mendonça, advogado, jornalista, magistrado, poeta, romancista, crítico, contista, ministro do Supremo Tribunal Federal e Procurador Geral da República. Afrânio Coutinho definiu Lúcio como um socialista. Lúcio não seria nada bem-vindo no regime de hoje.

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E que regime é o atual? O ex-ministro António Delfim Neto definiu-o como uma “tuitercracia”. Parece também que é o primeiro governo à distância do Brasil, orientado dos Estados Unidos. Ah, queridas Lourdes e Ruth, um dia entenderemos?

Memória

Lúcio publicou aos 28 anos um romance que, impulsionado por um título nelsonrodrigueano, O Marido da Adúltera, teve certo sucesso e até foi considerado o precursor do Naturalismo. Foi Lúcio quem ajudou Euclides da Cunha a publicar em 1902 Os Sertões. No ano seguinte, Euclides foi eleito para esta Academia. Cadeira 7.

O segundo acadêmico foi Pedro Lessa, jurista. O terceiro seria Eduardo Ramos. Nesta cadeira sentaram-se outros dois juristas, Adelmar Tavares e João Luís Alves, e um neurologista, Deolindo Couto, também ensaísta.

Eis que, 26 anos atrás, a vida, ou seja lá o que for - e saibam que não me convém usar aqui a palavra Deus, vocês logo verão porque - , pareceu ter decidido “organizar” as sucessões desta Casa. Como se quisesse dizer: Vamos criar um eixo, juntar pensamentos e atitudes.

O mineiro Darcy Ribeiro foi eleito no lugar de Deolindo Couto. O paraibano Celso Furtado sucedeu a Darcy, seguido pelo carioca Helio Jaguaribe que tomou posse aos 82 anos. Deste modo, foram admitidos seguidamente três homens que tiveram linhas de pensamento e ação que se entrecruzaram. Eles quiseram traçar rumos para nosso desenvolvimento. Os três são sucedidos neste momento por um ficcionista que se tem dedicado a tentar entender o Brasil por meio do imaginário e da fantasia, às vezes usando o distópico, impregnado de um realismo feroz, como disse Antonio Candido.

Darcy, Celso e Helio viveram no século XX. Celso adentrou um pouco o XXI, no qual Helio avançou por quase duas décadas. Em texto de 2008, Helio assim definiu o século XX, período de grandes revoluções:

O mundo se encontra, na primeira década do século XXI, ante uma alternativa básica: a de se consolidar, num Império Universal, a presente supremacia dos Estados Unidos, ou, diversamente, a de se constituir, a partir da consolidação do desenvolvimento chinês, uma nova bipolaridade mundial.

O grande problema que se apresenta, no âmbito dessa provável nova bipolaridade é, por outro lado, o do tipo de sociedade que em ambos os polos venha a formar-se. Sem dar a essa relevante questão um mais amplo tratamento, mencione-se, apenas, o fato de que o hiperconsumismo da sociedade contemporânea não é sustentável a longo prazo. A sustentabilidade de uma sociedade depende de um elevado grau de internalização de valores compatíveis com formas civilizadas de convívio. Tal situação não ocorre com o hiperconsumismo atual. O que poderá vir a corrigir esse hiperconsumismo intransitivo? É improvável que seja um retorno às religiões tradicionais. Entre outras hipóteses, a que parece mais viável é a emergência de um novo humanismo, socialmente orientado e ecologicamente consciente. Esse novo humanismo está na consciência dos grandes pensadores contemporâneos, de Karl Jaspers e Cassirer a Habermas. Tenderá o projeto de um novo humanismo a se tornar a força mobilizadora da futura sociedade?”

Dentro desta conjuntura Darcy, Furtado e Jaguaribe, viveram a ânsia de ordenar os rumos do Brasil, criando projetos no caminho de uma nação desenvolvida.

O mineiro Darcy Ribeiro foi educador, sociólogo e antropólogo. A questão indígena o preocupou a vida inteira, trabalhou com o Marechal Rondon e com o educador Anísio Teixeira. E Helio também teve Anísio Teixeira ao seu lado no ISEB. Lembremos que o pai de Hélio, o general Francisco Jaguaribe de Matos, igualmente, trabalhou com Rondon. Darcy era chamado “o semeador de escolas e universidades.”

Darcy apostava na determinação do povo brasileiro, mas acentuava, que ela somente seria despertada por meio da educação. E esclarecia:

Trotski se equivocou, pois a revolução permanente não vai ocorrer em trincheiras ou barricadas, mas no dia a dia modesto das salas de aulas.

Outra batalha de Darcy está sintetizada na constatação de que:

O Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema.

Acrescento: Universidade que inclua Filosofia, Pesquisa e Ciências Humanas.

A questão educacional foi várias vezes tratada por Jaguaribe, como neste texto de 1990:

A modernização do arcaico sistema político-partidário brasileiro constitui a base de qualquer bem sucedida modernização pública... Por trás dos vícios de nosso sistema-político-partidário encontra-se o fato de que o Brasil é uma sociedade estruturalmente dualística, em que apenas uma minoria da população se encontra inserida numa moderna sociedade industrial, enquanto algo como 60% do povo brasileiro se acha marginalizado, numa cultura agrícola primitiva ou uma miserável economia urbana informal... Uma das imediatas manifestações dessa marginalidade é o baixíssimo nível educacional do País. Numa moderna sociedade industrial a totalidade da população adulta tem, pelo menos, o primeiro grau completo. No Brasil, os alunos de 15 ou mais anos de idade que completaram as oito séries do primeiro grau, representam menos de 10% do total.

Memória

Celso Monteiro Furtado integrou a CEPAL e elaborou um estudo sobre economia brasileira que serviu de base para o Plano de Metas do presidente Juscelino Kubitscheck. Ele escreveu dois clássicos: Formação Econômica do Brasil e Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. Mas devo citar também a Obra Autobiográfica composta por A Fantasia Organizada, A Fantasia Desfeita e Os Ares do Mundo. Um dos criadores da SUDENE, Celso foi definido por Maria da Conceição Tavares como “um dos formadores do pensamento econômico contemporâneo”.

Me digam se não é atual este texto que ele escreveu em 1962, há mais de meio século :

Em face do grau de desenvolvimento já alcançado por nossa estrutura social e política, devemos considerar como um retrocesso os métodos revolucionários, que desembocariam necessariamente em formas políticas ditatoriais sob a égide de classes sociais, grupos ideológicos ou rígidas estruturas partidárias... O retrocesso na organização político-social não virá ao acaso, e sim como reflexo do pânico de certos grupos privilegiados em face da pressão social crescente. Não permitindo as rígidas estruturas adaptações gradativas, a maré montante das pressões tenderá a criar situações pré-cataclísmicas. Nessas situações é que os grupos dominantes são tomados de pânico e se lançam às soluções de emergência ou golpes preventivos. Fossem as modificações progressivas ou gradativas, o sistema político-social resistiria.

Celso, olhando para as circunstâncias, não estava prevendo as eleições de 2018 e o regime “ideológico” sob o qual vivemos ?

Postagem em tempo real

Na tarde de 4 de março deste ano, aqui no Rio de Janeiro, a caminho da casa de Cícero e Laura Sandroni, no Cosme Velho, onde receberia os abraços pela minha eleição, fomos atravessando um sem número de manifestações contra a morte de Marielle Franco. Aquela casa é referencial histórico. Ali no final de 1976, indignados contra a proibição de três livros, Feliz Ano Novo, Araceli meu Amor e Zero grupos de intelectuais revisaram e dispararam para todo o Brasil o primeiro protesto incisivo, corajoso, o Manifesto Contra a Censura imposta pela ditadura militar. Foi assinado por 1046 intelectuais. entre eles toda esta Academia. Eu, autor proibido, agora eleito para a Academia Brasileira. A vida junta seus pontos dispersos.

À certa altura, olhando para cima, dei com o Cristo Redentor, o filho de Deus para os cristãos. Deus. E me veio o slogan atual de nosso País: O Brasil acima de tudo, Deus acima de Todos. Eu daria tudo para ler os textos que ele, “psicografaria” sobre o Brasil de agora. Por que?

A partir daquela tarde, naquela casa do Cosme Velho, dei-me conta da tarefa que tinha pela frente. Entender Helio Jaguaribe. E como a linguagem digital domina nossas comunicações, eu a utilizo. E aqui estou montando um perfil. Pálido, admito.

Amor e dedicação ao Brasil

Meu antecessor direto ocupou esta cadeira entre 2005 e 2018. Hélio Jaguaribe Gomes de Matos nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu em 2018. Filho do cartógrafo e geógrafo cearense  General Francisco Jaguaribe de Mattos e Francelina Santos Jaguaribe de Matos, oriunda de família portuguesa. O pai, militar reformado da velha guarda, criado na escola positivista, foi descrito pelo filho como “um homem de cultura com um profundo espírito cívico e ético

Ele me incutiu as ideias de amor e dedicação ao País, a noção profunda de sentido público.

A mãe, Francelina, mulher religiosa, colocou-o no Colégio Santo Ignácio, dos Jesuitas. Ele admite que frequentava retiros religiosos, e que logo se viu assaltado por dúvidas filosóficas. Neste momento, pensei em Jaguaribe e no depoimento que ele deu a Marcelo Coelho, da Folha de São Paulo, em 1998 : “Li, aos 18 anos, um livro que me influenciou enormemente, o clássico de Lucrécio De Rerum Natura. Concluí que as teses a respeito da existência de Deus não eram sustentáveis. ” Naquele momento Jaguaribe se tornou agnóstico. Portanto, como falar em Deus com Helio?

Formou-se em Direito na PUC-Rio aos 23 anos e, até abrir seu próprio, trabalhou no escritório de Santiago Dantas, a quem venerou – esta a palavra - até o fim da vida. Aos 26 anos, tornou-se editor do Quinta Página, suplemento cultural do Jornal do Commércio, junto a Roland Corbisier, Jorge Serpa e Oscar Lorenzo Fernandes. Em 1952, foi parte do chamado Grupo de Itatiaia, que estudava os problemas que a sociedade brasileira enfrentava para ultrapassar o estágio de subdesenvolvimento. Daquele grupo faziam parte, entre outros, Cândido Mendes de Almeida, aqui presente, atento aos meus deslizes, mais Inácio Rangel, Alberto Guerreiro Ramos, aos quais se juntaram, vindos de São Paulo, Roland Corbisier, Francisco Luiz de Almeida Sales, Miguel Reale, Paulo Duarte e Sérgio Milliet.

No ano seguinte, o grupo criou o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política, IBESP, que mantinha a Cadernos de Nosso Tempo. Essa revista era parcialmente financiada pelo Ministério da Educação e Cultura e pelo próprio Jaguaribe, com seus honorários de advogado. A revista teve um êxito enorme, grande repercussão na América Latina. Mas, Hélio contou, com humor, que criou-se uma crise, quando Maria Lúcia, sua esposa, “começou a achar que, em vez de financiar revistas, eu deveria financiar a casa.”

Com o objetivo de ampliar a ação do grupo, surgiu, em 1955, com o apoio de Anísio Teixeira, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Era o ISEB, instituição cultural criada como órgão do Ministério da Educação e Cultura. Tinha plena liberdade de pesquisa, opinião e cátedra e se destinava ao estudo, ensino e divulgação das ciências sociais.

No ISEB, Hélio Jaguaribe chefiava o departamento de Ciência Política, Álvaro Vieira Pinto, o de Filosofia, Cândido Mendes de Almeida, o de História, Ewaldo Correia Lima, o de Economia, e Guerreiro Ramos, o de Sociologia, além de cursos ministrados por Celso Furtado e Nelson Werneck Sodré. “A meta do ISEB”, segundo Hélio,

era formular um projeto nacional nas condições do século 20, um projeto que incorporasse as visões do culturalismo germânico, que se afastava tanto da influência francesa da USP, quanto do grupo marxista. Com isso, fizemos uma contribuição muito interessante, um projeto nacional desenvolvimentista, que foi incorporado por Juscelino Kubitscheck”.

Na citada entrevista a Marcelo Coelho, Jaguaribe fez uma confissão:

Lamentavelmente, não falo Alemão. Vivo dizendo que antes de morrer vou aprender Alemão, mas a morte vai-se aproximando com mais velocidade do que a minha capacidade de aprender Alemão. As coisas fundamentais do pensamento de nossa modernidade estão naquilo que foi pensado na Alemanha a partir de 1880 e até todo o primeiro terço do século 20. A influência germânica formou em mim, e num grupo de pessoas com que tinha contato, as primeiras tentativas de fazer uma reflexão sobre o Brasil e o mundo contemporâneo.

Tinha sido dada a partida para o livro O Nacionalismo na Atualidade Brasileira. Lançado em 1958, constituiu-se num marco na carreira de seu autor. Segundo o sociólogo José de Souza Martins, foi um momento em que a intelectualidade do pós-guerra estava tentando definir o que seria o Brasil, após o Desenvolvimentismo e o Populismo Brasileiro de Getúlio Vargas. Em que ia dar? Quais as possibilidades? A ideia do possível estava em jogo também no grupo de São Paulo, com Fernando Henrique Cardoso, ainda que em termos um pouco diferentes. Curioso é que Jaguaribe nunca citou a interação com Fernando Henrique nessa época, mesmo que depois se tenham tornado amigos. Há pouco o ex-presidente afirmou que

Jaguaribe tinha visão dos problemas contemporâneos sem o mínimo dogmatismo. Não era uma guerra, eram disputas em termos de ideias.

O que tínhamos em mente”, explica Helio, “era orquestrar um movimento amplo na sociedade, para realizar o nacionalismo desenvolvimentista de forma algo revolucionária.

Jaguaribe. Referência central de várias gerações. Sociólogo, filósofo, cientista político, por sua produção intensa foi considerado um dos mais fecundos pensadores brasileiros. Patrono inaugural do nosso pensamento acadêmico sobre as Relações Internacionais. Autor da teoria do Nacional Desenvolvimentismo, destinada a interpretar a realidade brasileira, criando uma visão política para transformá-la.

Jurista e sociólogo, foi considerado “um dos últimos grandes intérpretes de nosso País” e notabilizou-se, segundo Francisco Weffort, por ser “o pensador que acreditava no futuro”. Advogado, jornalista, empresário, dirigiu uma siderúrgica, deu aulas em Harvard, Stanford, MIT e na Universidade Cândido Mendes, onde dirigiu o Departamento de Assuntos Internacionais.

Em seus 95 anos, ainda que silencioso nos últimos tempos de vida, ele analisou os conflitos cardeais de nosso tempo, o regime do poder e da sociedade, o poder do Judiciário, a análise profunda das democracias e suas crises, a corrupção, o fundamentalismo, a governança, os partidos políticos, o MERCOSUL, o imperialismo norte-americano, a Pax Universalis, a latinidade, a nossa República, a Ecologia, o globalismo, o humanismo e a possibilidade de um novo humanismo, a sociedade tecnológica, as utopias exequíveis, o fundamentalismo, a hegemonia, a perda da Amazônia, as drogas, o crime e o narcoimperialismo, a tecnologia na sociedade de massas, o que é o homem e o que ele busca, Cristo, Alá, o Cristianismo, o sagrado e o racional, o agnosticismo, a transcendentalidade.

Até chegarmos a Um Estudo Crítico da História, condensado por ele em mais de 1.500 páginas. Assim eke conta a criação deste livro monimental :

Pensei que, quando chegasse a idade madura, me dedicaria ao estudo da História. É uma ambição que acalento desde os 40 anos. Raciocinei: a idade madura é em torno de 65 anos. Quando completei 65 anos, vários projetos me afastaram do que pretendia. Aos 70, considerei que entrava numa fase na qual se transita rapidamente da maturidade para a caducidade. Então, dediquei-me a percorrer as principais civilizações que existiram no mundo, começando pela Pré-História e chegando ao mundo moderno. Não foi o caso de reescrever a História Universal e sim de reincidir sobre as civilizações, um olhar sociológico, investigando os fatores que causaram sua emergência, florescimento e crise.

Poética e precisa é a visão de Rosiska Darcy:

Aqueles intelectuais, Helio à frente, mudavam o sentido do nosso destino, enquanto jovens. Tinham um projeto para o Brasil, a construção de uma nação, através da inteligência e do conhecimento, instrumentos poderosos. Helio ampliou nossos sonhos.

Breve mensagem

Foram no mínimo 70 anos de constante construção. Daí considerá-lo eu um homem atormentado, assim como o foram Van Gogh, Ingmar Bergman, Dostoievski, Pasternak, Albert Camus, Faulkner, na angústia de compreender o Homem e o mundo. E saber mais e mais, querendo mudar, lutando ainda com questão transcendentais, com problemas da relevância e irrelevância do Homem, da vida e do próprio cosmo, da emergencialidade, da busca da felicidade e daquilo em que ela consiste. Em Breve Ensaio Sobre o Homem e Outros Estudos, Helio afirma que nenhum homem escapa ao vazio de sua vida... As formas exitosas de felicidade não escapam a esse vazio...

Complexidade de questionamentos, ansiedades, subitamente me trouxeram um insight. Ao ler Jaguaribe, me veio a ideia de que também é possível olhar sua obra, imaginando estar dentro de imensa ficção. Uma utopia Fui além, talvez imagine demais, mas me gosto assim. Ouso associar Jaguaribe ao capitão Ahab, personagem dramático de Moby Dick, de Melville, uma das figuras mais determinadas da literatura mundial, em sua busca da baleia branca, uma caça obsessiva até a morte.

Captado na rede

Jaguaribe manteve sempre o olhar atento. Escreveu doze anos atrás:

O Brasil, ao se encerrar o século XX, se encontra extremamente despreparado para enfrentar seus desafios no novo século... O país já atingiu um nível suficiente para, ainda que retardatariamente, alcançar esse antigo objetivo (“superar seu renitente subdesenvolviemtno”, na definição do próprio Helio) dentro de um par de décadas, se adotar, consistentemente, as medidas para tal requeridas... Mencione-se, a esse respeito, o fato de que o que está efetivamente em jogo, nesta questão, é a possibilidade de um país superar seu subdesenvolvimento de forma (...) basicamente autônoma, no exercício da margem de soberania permissível nas condições internacionais de princípios do século XXI.

Daí a urgência de que se reveste a necessidade da mais acelerada possível promoção de um desenvolvimento nacional, como nacional, ao se iniciar o século XXI. A estimativa de vinte anos como prazo limite para a permissibilidade internacional de tal iniciativa, ao se iniciar o novo século, corre o risco de ser demasiado otimista.”

Ele escreveu há 17 anos:

O Brasil ingressa no século XXI em avançado estágio de se tornar uma ‘província’ do ‘Império Americano’”. Trata-se do que se poderia designar uma “semiprovíncia” ou ‘província’ não consolidada desse “império”. Entre muitos indicadores dessa condição, mencione-se, por sua particular relevância, a excessiva dependência do País do capital estrangeiro, notadamente do capital financeiro. A transferência do controle do sistema produtivo nacional para capitais forâneos, significativamente ampliada pelas privatizações de empresas públicas, atingiu proporções extremamente grandes. Dentre as 500 maiores empresas operando no País, 47% são estrangeiras, nesse grupo figurando as mais estratégicas.

Para Celso Lafer, “esta geração de Jaguaribe, Furtado e Darcy teve como tema compartilhado o Brasil – sua formação e o seu destino político, econômico e cultural. Desta geração, que inclui personalidades como Celso Furtado, Roberto Campos, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Antonio Cândido, Helio Jaguaribe é um dos grandes expoentes.”

“A linha formulada por Hélio em 1953 marcou a trajetória de seu pensamento e sua ação: Compreender o nosso tempo na perspectiva do Brasil e compreender o Brasil na perspectiva de nosso tempo.”

Meus três antecessores viveram um ideal. Era gente tentando criar um Brasil que fosse nosso. Havia poesia nessa história.

Foi uma geração que nasceu com o curto século XX, na expressão de Hobsbawn: a alvorada dos movimentos de esquerda, a Depressão, o fim de Weimar, a onda montante do fascismo, o nacionalismo reavivado, o emperramento do sistema político, que Getúlio Vargas, em 1937 tentou resolver segundo a versão castilhista do seu vezo positivista,” escreveu Oscar Lorenzo Fernandes em Um Encontro da Razão e a História. “Chegamos a conhecer um Brasil que ainda preservava o perfil de antes da Primeira Guerra, ‘essencialmente agrícola’, a ótica do Jeca Tatu – quando tratar a maleita, alfabetizar e acabar com a saúva parecia ser tudo o que faltava para pularmos até uma Europa, na qual as nossas elites literárias supunham perceber a nossa identidade... Uma época em que “todas as formas de autoridade estavam abaladas, uma baixa generalizada do limiar das regras da moral convencional fazia borbulhar uma demanda, a de liberdade sem restrições.

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A ditadura militar nunca existiu, o que houve foi uma reavaliação da História.

Memória

As propostas destes três pensadores tiveram um preço. Foram considerados pessoas incomodas pela ditadura militar.

Ameaçados, Celso e Darcy foram obrigados a se afastar, vivendo em exílio, longe da terra que sonhavam transformar. Acaso? Lembremos do que disse Fagundes Varela, nosso patrono: O exilado está só por toda a parte!”

Helio preferiu deixar nosso País por conta própria. Esclareceu: “Não fui exilado, mas quis afastar-me, porque aqui se criaria uma situação pouco compatível com minhas ideias.” Também admitiu que nunca sofreu perseguições formalizadas em tempo de prisões, desaparecimentos, mortes. “Fui mais suavemente considerado ‘inexistente’. Era um homem invisível. Não podia ser nada, ter contratos, trabalho, dar aulas.”

Isolado, Helio se viu levado pela mão amiga e corajosa de Cândido Mendes de Almeida para lecionar em sua universidade, que era privada. E, como já citei, ele também foi trabalhar em algumas das mais célebres universidades do mundo civilizado.

Jaguaribe. Não o conheci. Jamais o encontrei, a não ser em documentários e entrevistas filmadas. Ele não queria ser advogado, mas era uma maneira de ganhar a vida, e também se decepcionou com a faculdade, esperava encontrar ali uma cultura mais ampla. Preferia a vida literária, escreveu versos, esqueceu-se deles. Mas aqui e ali em seus textos como que escondidos, surgem lampejos, insights do poeta. Como estes pinçados aleatoriamente do seu Um Estudo Crítico da História:

 

O tempo

é a imagem móvel

da eternidade,

em cujo âmbito se move o mundo.

 

O vazio,

um clímax

que ultrapassa

os sentidos

 

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O nazismo foi um movimento da esquerda.

Postagem em tempo real

Onze anos atrás, aos 85 anos, Helio afirmou: “O mais importante pré-requisito para a viabilidade nacional brasileira, ao se iniciar o século XXI, consiste em tomar consciência das condições básicas para tal necessárias e formar, em torno dessa constatação e do propósito de lhes dar consistente atendimento, um amplo consenso nacional.”

Sempre atento ao que ocorria no mundo e na sua relação com o Brasil: “Um dos problemas com que se defronta o mundo contemporâneo é o da compatibilização entre o regime democrático e os requisitos de que depende uma boa governança...”, escreveu em 2007. “A democracia contemporânea se tornou uma democracia de massas... As grandes massas constituem o novo povo... Nas novas condições da democracia de massas ocorre então o fato de que o que leva um dirigente politico ao poder é o agrado das massas, independentemente da qualificação deste dirigente.

Surge assim, frequentemente um desajuste entre a escolha democrática de dirigentes e a aptitude destes para exercer uma boa governança. O que torna esse desajuste particularmente grave é o fato de que as sociedades contemporâneas dependem, para quase todos seus interesses mais relevantes, de uma honesta e competente governança...

No que diz respeito aos países subdesenvolvidos, a democracia de massas conduz a expectativas assistencialistas e distributivistas, o que favorece candidatos populistas, em detrimento de propostas genuinamente desenvolvimentistas... A democracia de massas, em regime presidencialista, conduz a eleição de candidatos que satisfaçam o gosto popular, independentemente de suas qualificações, frequentemente insuficientes”.

Memória afetiva

Como era este homem, Helio Jaguaribe.?

Sei de suas falas velozes e sem formalidade. Angélica Lovato em um ensaio disse que ele era “polêmico, porque atravessou a vida sempre em terreno minado, algumas vezes criticado como conservador”. Rosiska Darcy disse que era “um sêr humano adorável, um grande cavalheiro.” Descobri que era homem de gestos largos e vibrantes e que atravessou a vida com entusiasmo e uma vivacidade de pensamentos irresistíveis. Aqui estão seus filhos que podem confirmar ou não. Sua fala era rapidíssima e nada formal. Os olhos não paravam de se mexer, e seu riso era algo metálico, parecendo misturar espírito esportivo, acidez crítica e otimismo. Diz sua filha Isabel, cineasta que fez o curioso vídeo Tudo é irrelevante:Às vezes, ele podia soar dramático e pessimista, mas era uma pessoa positiva e alegre. O que não o impedia de ter uma opinião, digamos, pragmática sobre nosso destino”.

Eramos felizes, muito felizes

Certa tarde de agosto deste ano, tive uma conversa, em São Paulo com Cláudia Jaguaribe, uma de suas quatro filhas. São cinco os irmãos: Anna, Roberto, Cláudia, Izabel, Beatriz e Izabel E Cláudia me desvendou um pouco o pai:

Um homem dotado de uma duplicidade controlada. Ao mesmo tempo, muito intelectual e muito prático. Era advogado, o que lhe trazia racionalidade e prática. Não ficava só no desenho de um projeto na cabeça, punha a mão na massa. Um homem avançado, aliás hiper-avançado, no tempo. Um homem moderno no sentido da Sociologia, da Política e outras Ciências.

Na década de 60, participou do “Clube de Roma”, um grupo de empresários e intelectuais que já estudavam pioneiramente o meio-ambiente, a pobreza, o subdesenvolvimento, as questões indígenas. Nem se sonhava falar em ecologia. Também visualizou o MERCOSUL. Era hiper-avançado, mas na questão dos costumes, dos hábitos, do dia a dia, da rotina, era minha mãe quem lhe introduzia o contemporâneo.

Mamãe era inteligentíssima, começou a cursar Filosofia, mas não foi adiante, por causa da maternidade. Pouco se fala dela. Mas era muito moderna, até mais do que meu pai, então era uma espécie de choque de realidade para ele. A relação entre os dois era interessante, mamãe, completamente apaixonada, achava meu pai o máximo. Só que, ao mesmo tempo, também era muito crítica, e não deixava barato. Era a pessoa com a qual ele podia ter um embate, porque ela não se intimidava. Não se intimidava minimamente com ele em vários aspectos. Por exemplo, ela sempre foi muito católica, e ele, ateu absoluto, ironizava, ou para usar uma gíria atual, zoava. Diante daquela falta de entendimento, por parte dele, dessa dimensão espiritual, ela o olhava com algum “desdém”. Mas eram felizes, aliás, éramos todos muito felizes naquela casa.”

O Brasil visto de cima

Hélio olhou este País com a eficiência de um telescópio Hubble. Vasculhou o Brasil, buscando bactérias invisíveis. Em tempos de contínuos casos de escândalos e corrupção, delações, processos, clamores de inocência, malas de dinheiro surgindo sem explicações em apartamentos vazios, um Supremo dividido, nada confiável, abusando de decisões monocráticas, um parlamento sempre com estranhas intenções, alheio ao país, este homem afirmou em 2007, ainda que pudesse estar dizendo a mesma coisa hoje:

Os estarrecedores escândalos revelados a partir de meados de 2005 comprovam, alarmantemente, as profundas deficiências de nosso regime eleitoral e partidário. Nesse regime eleitoral e a partir de um sistema partidário predominantemente clientelista, as eleições para os executivos municipal e estadual são essencialmente personalistas. Ostentam maior margem de significado público as eleições presidenciais. Essa maior representatividade pública, todavia, decorre muito mais dos candidatos e de suas tendências, mais de esquerda ou de direita, do que dos partidos que os apresentam. Estes, predominantemente, funcionam como meras máquinas eleitorais.”

Twiter: O aquecimento global é invenção de Karl Marx.

Naquele seu prolífico ano de 2007, Helio assinalou o colapso ético que vem se aprofundando até hoje.

O Brasil se tornou, presentemente, um dos países mais inseguros do mundo e, certamente, a mais insegura dentre as sociedades ocidentais contemporâneas. Dentro de condições favorecidas por uma longa estagnação, que vem desde a década de 1980 e o colapso dos padrões éticos, precedentemente referido, a formação de gigantescos anéis de marginalidade, em torno de nossas principais metrópoles e sua desinibida ocupação pelo narcotráfico, geraram para o crime um imenso exército de reserva...

A extensa corrupção policial, notadamente no que se refere aos guardas presidiários, transformaram os presídios de segurança máxima em hospedagem de bandidos, que neles gozam de asilo e proteção e dos quais, impunemente, comandam livremente, por telefones celulares e outros meios, a prática do crime.

É preciso constatar, com absoluta objetividade, o completo fracasso de nosso atual sistema de segurança pública. Ante esse fracasso, insistir na manutenção do sistema vigente, sob a suposição de que poderá melhorar com a atribuição de maiores recursos, é simplesmente prorrogar e agravar a situação atual. Ante essa situação, como ante tantas outras com que o Brasil atualmente se defronta, se apresenta a questão: O que fazer?

Colapso dos padrões éticos do Brasil

Importa, de um modo geral, reconhecer o problema central, que é o colapso dos padrões éticos do Brasil. Num país carente de muitas e importantes reformas, a reforma ética é necessariamente a mais relevante e da qual dependem as demais. Em última análise, o que está em jogo é a absoluta inviabilidade social da existência, em torno de nossas metrópoles, de imensos anéis de marginalidade.

A extraordinária complexidade das questões em jogo requer, para um intento sério de se lhes dar satisfatória solução, a mobilização conjunta dos esforços da União, estados e municípios, num programa de ampla envergadura, que requererá, por vários anos, a mobilização de vultosos recursos, estimáveis, preliminarmente, em algo como 5% do PIB por ano. Algo, portanto, que ultrapassa completamente a simplória abordagem policial que até agora se lhe está dando.

Restabelecer uma sociedade desmoralizada

Os processos de recuperação moral de uma sociedade tendem a ocorrer mais frequentemente, em virtude da atuação esclarecida e elevado padrão ético por parte de um dirigente público que restabeleça, numa sociedade desmoralizada ou que perdeu o senso de um destino próprio, o espírito de autoconfiança e projeto nacional.

O problema da recuperação ética, no caso do Brasil, depende, por um lado, da recuperação da autoconfiança dos brasileiros e de uma nova mobilização da sociedade por um projeto nacional dotado de poderoso apelo coletivo, a partir de uma liderança pública que se revista de respeitabilidade ética. Por outro lado, depende da medida em que esse novo projeto atenda, efetivamente, às necessidades das grandes massas desvalidas e para elas abra amplas oportunidades de incorporação à cidadania nacional.

Está se instalando o filtro cultural?

Aqui, posso, mais do que posso, devo encaixar uma observação. Importante dizer que sombras se adensam. Alguns fatos se sucedem como prenúncios do que pode vir. A atriz Fernanda Montenegro achincalhada, vilipendiada por um diretor teatral, funcionário de um centro cultural do governo. Bancos governamentais criando sistemas de censura prévia. Guilhotina em temas como questões de gênero, sexualidade, política, críticas à ditadura. Obrigatoriedade de levantamento de posicionamentos políticos e partidários dos que solicitam patrocínios governamentais. Exposições de arte fechadas. Invasão da Bienal do Livros do Rio de Janeiro. Um livro do embaixador Synésio Sampaio de Góes Filho, sobre Alexandre de Gusmão, “o avô da diplomacia brasileira, com prefácio do embaixador Rubens Ricupero foi proibido de ser editado pelo Itamaraty. Apostilas que abordavam a questão de gêneros foram interditadas. Até este momento, a Justiça dá a sensação que tem obrigado a respeitar a Constituição. Se resistirmos, venceremos?

Boa parte dos presentes deve se lembrar do poema de Eduardo Alves da Costa, que percorreu o Brasil em 1968, Aquele Ano que Não Terminou, na bela avaliação de Zuenir Ventura. Como era plena ditadura, por segurança o poema circulou falsamente atribuído a Maiakovski. Diz:

Na primeira noite,

eles se aproximam

e roubam uma flor

de nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite,

já não se escondem,

pisam as flores

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e ,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm

a ninguém é dado

repousar a cabeça,

alheio ao terror.

Hackeando a memória digital

Encontro em Herman Hesse, leitura de juventude: “E minha alma, sem amarras, deseja flutuar com as asas livres para, na esfera mágica da noite, viver uma vida profunda e múltipla.”

E... para onde vamos?

Em 2001, Helio pressentiu:

Tudo indica, assim, que o mundo se encaminha para uma grande fusão cultural, que conduzirá, no curso do século que se inicia, à gradual formação de uma Civilização Planetária. Pode-se prever que o centro das convicções dessa nova Civilização seja a Ciência e a Tecnologia. O que ainda não se pode prever é que valores superiores virão a se constituir. O consumismo intransitivo do atual Ocidente tecnológico não é autossustentável. Tudo índica que essa civilização planetária deverá se configurar no curso do século 21, adquirindo característica observáveis no século 22. As civilizações são processos culturais de maturação muito lenta.

Um último olhar sobre Helio

Quase deixei passar. Naquela tarde de agosto em que conversei com Claudia Jaguaribe sobre seu pai, lembrei uma entrevista de fevereiro de 1998, em que ele salientou que “suas tentativas de influenciar a sociedade brasileira tiveram um efeito operacional moderado, para não dizer frequentemente nulo, e achava que morreria sem ver o Brasil desenvolvido que ele esperava

Isto significava que ele se considerava fracassado? Claudia corrigiu. O termo não é fracassado. Melhor decepcionado ou desapontado. “Ele foi um homem que sempre acreditou e, a cada vez, criava um projeto novo. Também sabia, e disse várias vezes, que a História mostra que as ideias têm uma extraordinária fertilidade a longo prazo. Assim, acreditava que “as coisas que estava fazendo seriam úteis para a fertilização de um projeto futuro”.

Hoje, bem, hoje sei que ...

Assim, Acadêmicas e acadêmicos , Senhoras e Senhores, cheguei a um momento da vida em que compreendi que as professoras Lourdes Prada e Ruth Segnini tinham razão. Entendo hoje que para desenvolver o Brasil precisamos de Desenvolvimento, democracia, liberdade, saúde para sobreviver, ensino e trabalho, ausência de fome e miséria, de segurança e acima de tudo ética e verdade. E principalmente nos relacionarmos sem ódio, indignação, acirramento.

Te demos as palavras

Na manhã de 11 de março de 1957, aos 21 anos, meu pai me acompanhou à estação ferroviária de Araraquara. Entregou-me três mil cruzeiros, acentuando: “Economizei para seus primeiros dias. Mas estou tranquilo, porque sei que você sabe que eu e teus professores já te demos o mais importante: As palavras. Use-as com cuidado e honestidade.” Tenho procurado usá-las bem. Às vezes, com percalços. Esta Casa, espero, pode me ajudar, ampliando a extensão das palavras e a luta pela liberdade.

Nunca pensei em entrar para a Academia, até a noite em que pensei. Tinha acabado de receber das mãos do acadêmico Eduardo Portela o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de minha obra, quando ele me soprou no ouvido: “Se um dia se candidatar, terá meu voto.”

Então olhei para esta Academia e o que vi? Parte expressiva de minha geração. Pessoas que, a partir da década de 1970, em plena ditadura, percorreram milhares de quilômetros, atravessando o Brasil e falando, falando. Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Lygia Fagundes Telles – esta última, sei que é de outra geração, mas nos acompanhava, intrépida. Antônio Torres, Moacyr Scliar, Zuenir Ventura, Domício Proença, Cícero Sandroni, João Ubaldo Ribeiro. Ficamos conhecidos como “Geração de 70”, não pela idade, mas por nossa postura. Esta academia... Certo dia, perguntei-me, por que não tentar? Incentivado por Celso Láfer - e aqui é minha terra Araraquara que nos liga – e por Antônio Torres, quando muito jovens fomos repórteres do jornal Ultima Hora, em seguida vieram os estímulos de Rosiska Darcy, Fernando Henrique Cardoso, Cícero Sandroni, Domicio Proença Filho e Arnaldo Niskier. Tentei. Aqui estou. Ainda emocionado e agradecido com a unanimidade.

Esta noite, eu a devo aos meus pais. Maria do Rosário, minha mãe, mulher simples e piedosa, que não terminou a escola, para cuidar dos irmãos. E meu pai, comovido responsabilíssmo, tanto que trabalhou por 35 anos sem uma única falta, estaria olhando para os acadêmicos e para Machado de Assis. Seu Totó aqui está, representado por meu irmão João Bosco. A Bia, minha primeira mulher, que me deu Daniel e André, e, por extensão, meus netos Pedro, Lucas, Felipe e Stella. Meus netos, saibam que com a palavra hei de lutar para que este país seja uma nação democrática. E Márcia? O que dizer a quem me trouxe Rita e que, com sua calma, lucidez e sorriso, vem contendo minha ansiedade, pânico, catastrofismo, implicâncias e inquietações? Este circulo familiar sempre me ergue e me faz retomar quando me abato, desisto, fujo, tenho medo.

A Maria Cecília e Luís Henrique, meus sobrinhos, que aqui estão em lugar de meu irmão mais velho, Luiz Gonzaga, que faleceu recentemente. A Zezé, Marco, Ana Maria, Maria Isabel, Cesar Renato, primos, que aqui estão, filhos de meu tio José, ele que se tornou meu pai, quando Totó morreu. Ao meu editor Luís Alves e Cidinha, e a Jefferson e Richard que criaram a Global, hoje uma casa de autores brasileiros que me editam há 35 anos. Somos uma família. A Edinho Silva, prefeito de minha cidade, cuja convivência e amizade vem de muitos anos. Fernando Passos, da Academia Araraquarense de Letra, filho de Neils,um apaixonado por livros, livreiro a vida toda em Araraquara.

Agradeço aos que vieram, alguns de longe. Há duas pessoas que chegaram de Berlim e que são propagadores incansáveis da literatura brasileira na Alemanha. Amigos de 40 anos. Utte Hermanns e Berthold Zilly, ele tradutor de Os Sertões para o alemão e que trabalha agora em Grande Sertão, Veredas. Zilly adora livros fáceis. Ute com seu português perfeito é especializada em cinema brasileiro, é professora, ensina alemão a refugiados, é tradutor.

Essencial: A todos que me ajudaram a criar esta festa. Aos araraquarenses que me deram o fardão. Quando pedi os nomes, responderam: diga apenas que foi presente de sua cidade, Araraquara. Morada do Sol. Este sol que aqui está no punho do meu fardão. Nomear a todos estenderia esta posse por uma semana.

Terminemos lembrando que não podemos repousar a cabeça alheios ao terror nem permitir que nos arranquem a voz de nossas gargantas.

Boa noite