Senhor Getúlio Vargas,
Não é esta a primeira vez que a Academia vos recebe e, ainda que nas duas anteriores sem prévio aviso nem protocolo, não foi então, como não é agora, menos vivo o prazer de uma presença tanto mais apreciada quanto de inteira iniciativa do visitante. Trouxera-o até cá o desejo de conhecer e examinar a nossa biblioteca, e foi com desvanecida surpresa que tivemos nesse dia a honrosa oportunidade, sem precedente, de acolher um Chefe de Estado em caráter privado.
Sua primeira visita foi, numa dessas belas tardes cariocas em que o sol, prestes a recolher-se, como que deseja deixar em nossos olhos uma deslumbrante recordação de sua opulência e majestade, espalhando no ar poeira de ouro e transformando as vidraças do casario em cintilantes espelhos também de ouro – “a hora mágica do declinar do dia” de Mont’Alverne, sol da sacra eloqüência.
Parecia ainda mais graciosa a renda verde dos folíolos das acácias, que a brisa jamais deixa repousar e que franjam com sua perene inquietação a calma fachada em que se assenta meditativo Machado de Assis, como se na folhagem também vibrassem pensamentos e anseios.
Galgados os poucos degraus que elevam sobre a rua a sede acadêmica, achastes-vos, de chofre, embora ainda ao ar livre, num ambiente de todo diverso daquele em que a poucos metros de distância passam e repassam transeuntes, rolam veículos e a vida urbana trepida em seu rotineiro vai-vem. Do lado de cá se cuida do espírito, e a visível sensação de bem-estar estampada em sua tranqüila fisionomia significava quanto o visitante se sentia à vontade entre os mirtos da sabedoria e os louros da imortalidade.
Parou. Um olhar significativo foi logo dirigido para o medalhão em bronze de Castro Alves, junto ao qual, adornando o jardim da Academia como uma das mais perfumadas flores do seu gênio poético, esplende, igualmente em bronze, o famoso decassílabo “Auriverde pendão da minha terra”, indicado por certo concurso entre intelectuais como o nosso mais belo verso – dir-se-ia o próprio pavilhão nacional a desdobrar-se em ondulações sonoras ao ritmo de um fluido que resultasse do sincrônico bater dos corações brasileiros. É a bandeira da Pátria em cores verbais, a transmutação das palavras em chama de amor e devoção, o milagre da imagem sonora convertendo-se em visão de sagrados céus e terras queridas, o canto de um poeta exprimindo o Brasil. “Auriverde pendão da minha terra”! Maravilhoso o gênio que em dez sílabas nos faz evocar os nove milhões de quilômetros quadrados de solo, que no cristal de um verso reflete o infinito do sentimento pátrio e com sua música desencadeia a vibração das almas de toda uma nação.
O visitante daquela tarde, atraído por uma curiosidade que transparecia mesmo de sua habitual placidez, dirigiu-se à biblioteca, seu primordial intuito, e ali, depois de folhear interessadamente A Divina Comédia, desejou logo ver o nosso precioso exemplar da edição princeps de Os Lusíadas, tesouro que, retirado do cofre em que está sempre protegido, recebeu o admirativo afago de seus olhos de intelectual que bem lhe sabe estimar o valor excepcional.
Mas, a essa altura, quando mais atento ia o exame das preciosas coleções, já eram numerosos os acadêmicos, sucessivamente chegados e todos surpreendidos com a presença do primeiro Presidente da República vindo sem cerimonial a esta Casa. Da biblioteca descemos, e, sem qualquer entendimento expresso, mas que entretanto as circunstâncias tacitamente promoveram, eis-nos, daí a pouco, sentados nas poltronas deste salão de gala, para uma homenagem coletiva a quem tão tocantemente nos trouxera a sua visita pessoal. E foi essa a vossa primeira recepção pela Academia, sem convocação prévia, no encanto de uma improvisada tertúlia de intelectuais.
Ainda não éreis dono de uma das Cadeiras deste Cenáculo, mas já o éreis de seu reconhecimento e do de todo o Brasil letrado. E a prova disso a tivestes naquela mesma tarde de surpresas, deparando ali, em placa de bronze reluzente, abaixo do fiel retrato de Machado de Assis, a reprodução do decreto presidencial mandando fosse de culto nacional o dia do centenário do nosso patrono – o Santo da Academia – diria eu, caso fosse lícito transpor para um ambiente profano a sagrada auréola do altar. E assim, antes de eleito acadêmico, já estava o nome de Getúlio Vargas marcado nesta Casa, e mais indelevelmente do que em seus arquivos – numa parede e em bronze. E em nossos corações também. E igualmente nos corações de quantos, através do tempo, forem conhecendo a homenagem ímpar que o Chefe de Estado prestou ao maioral das letras nacionais contemporâneas.
A segunda recepção que a Academia vos fez foi ainda sem antecipada convocação. Já então eleito, na vaga do para-sempre admirado Alcântara Machado, seu sucessor vinha, uma tarde também, numa de nossas sessões de intimidade e num requinte de galanteria, agradecer a escolha acadêmica. Não houvera tampouco prévia combinação e, ainda como da primeira vez, a ausência de protocolo aumentou o prazer de vossa companhia. A de hoje, solene em seu cerimonial e nas presenças ilustres ou sedutoras que aqui brilham, é, pois, a vossa terceira recepção acadêmica.
Entre esta, no entanto, e a segunda, de há ano e meio, outro decreto presidencial viria unir vosso nome não já somente à parede desta Casa, mas ao próprio solo em que lhe assentam os alicerces: transferíeis graciosamente à Academia o domínio útil, diga-se, a plena propriedade do terreno em que está construída. Integrava-se assim a nossa brasilidade, que, já intelectual, como que também se materializou, para que a Academia suba de uma terra bem sua, como uma esplêndida árvore do pensamento nacional, cujas flores perfumem o ambiente literário, cujos frutos nutram as gerações que se forem sucedendo no sublime labor de enriquecer o patrimônio das idéias e da Beleza.
Assim, o mesmo Chefe de Estado, depois de haver dado um dia de celebração nacional ao patrono da Academia, dava a esta a eternidade da implantação na terra brasileira: antes de ser nosso confrade, favorecia o culto; depois de eleito, fixou para sempre o templo. Rememore-se, porém, que o Presidente, signatário do decreto de março de 43, só baixou o generoso ato depois de o termos chamado para o nosso Grêmio, postergação que soube elegantemente desprezar uma das regras universais da técnica eleitoral...
Mas, se amais as letras e sois, desde adolescente, um seu espontâneo cultor, foi a militar a vocação impulsora de vossos primeiros passos para a vida autônoma; para a bandeira vos orientavam a hereditariedade e o meio. Sois de São Francisco de Borja, o mais meridional dos Sete Povos das Missões e sua capital, cujo vetusto passado o Cônego João Pedro Gay, vigário da cidade em meados do outro século, narrou em sua História da República Jesuítica do Paraguai – valioso trabalho que, se hoje podemos facilmente compulsar, devemo-lo, note-se bem, ao Presidente inspirador da reedição da substanciosa obra do letrado que ele tirou de imerecido esquecimento e de quem tenho a presciência de que um dia o acadêmico Getúlio Vargas traçará nesta casa o interessante perfil. Com que ânimo se expandirá então o admirador dessas a que já chamou “figuras heróicas da nacionalidade”, os chefes e assistentes de batina das missões evangelizadoras, a cujo respeito já disse a sua pena primorosa: “No Brasil Colônia, no Brasil Império e no Brasil República, o lugar da Igreja Católica está marcado em destaque, como fator preponderante na formação espiritual da raça, e as suas doutrinas e ensinamentos constituem as bases da família e da sociedade!”
Quanto confortam as almas crentes essas palavras de fé pronunciadas pelo guia da Nação que, em não longínqua tarde, rezando-se Te Deum, no templo de Santa Terezinha, ao lado do Túnel Novo, nesta cidade, ali solitário penetrou como o mais humilde homem do povo e humildemente se prosternou perante o Altíssimo. Sua chegada passara despercebida, e, só a uma pausa das orações, os vizinhos reconheceram aquele que a seu lado se ajoelhara silencioso e discreto, quase como se fosse o espírito e não o corpo de Getúlio Vargas. Mas que júbilo ao darem com o Presidente ali, confundido com a multidão e, como um anônimo fiel, de joelho em terra ante a majestade divina!
Ao virdes ao mundo, a velha igreja-fortaleza de São Borja, que tanto impressionara Saint-Hilaire; a antiga redução fortificada já se transformara numa cidade quieta e gentil; continuava, porém, a pairar sobre ela a auréola dos feitos dos tempos idos, e de lá não se fora de todo o espírito marcial. Com os primeiros haustos da brisa matinal do rio Uruguai, entrou no sangue do pimpolho samborjense esse fermento de combatividade que a fronteira infunde em seus filhos. Ademais, este rebento dos Vargas se gerara de dois legítimos heróis: o avô, Evaristo Vargas, já experimentado cavalariano das refregas cisplatinas, partícipe da histórica batalha do Passo do Rosário, quando vem pelejar na revolução farroupilha; o pai, Manuel Vargas, fulminante chefe que, montado em seu “Pingo”, não conhece perigos e que, nos campos e pântanos estrangeiros como nas coxilhas riograndenses, é sempre o mesmo centauro derrubador e temível. Da dupla ação sinérgica da hereditariedade e do ambiente haviam de resultar aquele menino, que aspirava à farda, como um complemento de sua alma, e o impávido homem de Estado que sempre desdenhou o perigo mortal e, nos momentos do risco máximo, poderia, como o rei cercado pelos inimigos em fúria, dizer, estendendo o braço aos ajudantes próximos: “Vejam se meu pulso bate mais célere que de costume.”
O rapazito de São Borja ansiava por vestir a farda com que poderia realizar o sonho heróico. E assim, apenas adolescente, ei-lo soldado. Pouco tardaria a entrar na Escola do Rio Pardo, outro local de antigos combates desse convulso e histórico solo do Rio Grande – “sentinela da Pátria”, já o dissestes – onde não existe um palmo que o sangue não tenha embebido nem rincão sem evocar o poema de um heroísmo ou um nome desses que percorrem os ares gaúchos como fluidos vitalizantes de almas prontas sempre a acudir ao apelo da Nação e tomando como destino humilhante o morrer na cama. Vosso pai teve, porém, ainda maior recompensa do que dar a vida pela Pátria: teria de dar o seu sangue a um filho que se faria precioso ao Brasil.
Eis o rapaz na Escola do Rio Pardo, de onde breve sairia um novo tenente, que a si mesmo jurara ser um novo General Vargas. Mas a nobreza é uma das virtudes militares, e, por ser um coração nobre, teria o cadete-cavalheiro de abandonar o viveiro de oficiais, ao reclamar para si também a responsabilidade de um ato de indisciplina que não praticara, mas de que insistiu por se apresentar cúmplice, unicamente em gesto de solidariedade aos camaradas culposos. Belo traço de caráter, mas que iria custar o sacrifício de uma carreira. Já não poderia ser oficial.
Todavia, ainda soldado, reclamou transferência para a guarnição de Mato Grosso, reforçada para uma luta que o horizonte internacional, dia a dia mais carregado, prenunciava iminente. Debalde, porém, lá esperou pelos combates; a guerra não veio, mas o árdego e decepcionado infante não deu, como a Nação, graças a Deus por não ter ela vindo.
Deixou para sempre o Exército Nacional. E, entretanto, um dia voltaria a ser soldado. Dia ainda longínquo, antes do qual faria a sua singular e triunfal carreira civil, mas que, como conseqüência desta, haveria de chegar em 3 de outubro de 1930, quando as circunstâncias o armaram general – mais que general, generalíssimo. É o momento da ousada marcha do Rio Grande para o Rio de Janeiro, os dois Rios então nebulosos e arriscados, ao mando mágico de uma espada que era uma idéia e um futuro. Por isso mesmo, o generalíssimo não quis trazer sobre si as estrelas de chefe supremo, mas apenas a singela blusa de soldado raso. Sempre a discrição e a medida. É que intimamente vos sentíeis um comandado, um agente do ideal civil que só por necessidade momentânea revestia a aparência guerreira. Como única arma, dentro do peito, um coração blindado de virtudes cívicas.
Estas iriam desabrochar, na esplêndida floração destes treze anos de vida brasileira, em criações e reformas, muitas das quais já produzindo suculentos frutos que nutrem o crescimento espiritual e material do Gigante, que dia a dia mais se avantaja, estimulado aos influxos do Estado Nacional. E foi acertado terem-no chamado assim – denominação que não prejulga ligações doutrinárias, não dificulta iniciativas e favorece a ação construtiva. Vós mesmo já o dissestes um dia: “O velho conflito da autoridade e da liberdade só admite a sabedoria das soluções concretas e realistas.”
Antes, porém, de aludir às vossas capitais e abundantes realizações, antes de mais, cabe-nos retomar o jovem que, sabendo-se “condenado” (esta era, sem dúvida, então, a vossa linguagem intima), sabendo-se condenado à vida de paisano, já esboçara nos últimos tempos de quartel o plano de uma nova carreira, com essa previdência que vos vem acompanhando e nunca vos abandonará – aliás mais uma justificação do vosso natural pendor militar; no campo de batalha, o inimigo nunca vos apanharia de surpresa. Também cá, na vida civil, jamais fostes encontrado desprevenido. No fundo sempre a mentalidade combativa e cauta de fronteira: a paz confinando com a guerra, a hostilidade logo por detrás dos acordos políticos, a amizade entre os homens transformando-se em rixas logo ao virar da esquina; por isso, é de bom aviso manter-se a gente vigilante sobre as cousas desta vida, que é ela propriamente uma ininterrupta fronteira entre a tranqüilidade e o perigo, entre a felicidade e o infortúnio, entre o ser e o não ser...
Encerrada a carreira militar, iniciastes a do Direito. Parodiando às avessas o conhecidíssimo conceito de Girardin sobre o Jornalismo, diríamos que o Direito conduz a tudo, sob a condição de não se sair dele. A vós começou ele conduzindo à Literatura, ao próprio Jornalismo e à política. Ao tempo de estudante e freqüentador das livrarias da Rua da Praia, vossos autores prediletos eram Euclides da Cunha e Raul Pompéia e, entre os estrangeiros, Paul de Saint-Victor, Nietzsche e Zola. Essas predileções revelam muito. Paul de Saint-Victor, de estilo facetado e irisado como um cristal – tão brilhante, disse alguém, que só pode ser lido com óculos escuros. Mas às delicadas emoções estéticas vosso espírito gostava de alternar os ímpetos da força avassaladora, para resguardar-se dela; eis porquê vos interessava a leitura de Nietzsche, o amigo da violência, o doutrinador da vontade soberana transpondo implacavelmente os obstáculos para atingir os fins. Grande e desventurado Nietzsche! Além da loucura, havia de o demolir a filiação do nazismo alucinado. Zola impôs-se definitivamente às cogitações de quem, ainda tão jovem, já se sentia empolgado pelos problemas da miséria, que encontraram tão simpático eco no coração do autor do ensaio crítico de 1905, o qual prenunciava o estadista que, trinta anos após, faria da redenção corporal, espiritual e social dos brasileiros o centro de sua ação governativa – o inspirador e condutor dessa opulenta cadeia de leis que elevaram a saúde, o conforto e a dignidade do proletário, eliminaram do país as paredes, articularam empregadores e empregados na solidariedade do trabalho e, assim, impossibilitaram no Brasil a luta de classes que ameaça ou infelicita nações de velha e alta civilização.
Também vos empolgou a obra de nosso extraordinário Euclides – Os Sertões – a epopéia da terra e da gente, o contraste alucinante da grandeza com a humildade, da indiferente opulência da natureza com a penúria estóica dos habitantes; mas terra e gente dignas uma da outra, e ambas só à espera do homem que as harmonizasse numa compreensão superior, num esforço de largo fôlego, numa organização de amplo sentido nacional. Esse homem o Brasil o encontrou afinal. E toda esta luzida assistência o está vendo.
Raul Pompéia, vitima da ânsia de perfeição num mundo de imperfeições! Ao estudante de Porto Alegre comovia o sofredor e maravilhava o artista, mártir de si mesmo. Quando, certa vez, o eminente Interventor Federal Sr. Amaral Peixoto me contou que, em Jacuacanga, ao mostrar-vos a casa de nascimento de Raul Pompéia, vos quedastes pensativo, bem compreendi o motivo de tal silêncio: emudecia-vos o refluxo de forte encanto juvenil. Revistes a passagem pelo mundo, fugaz e dolorosa, de um extraordinário engenho, cérebro de fogo que se queimou a si mesmo, exasperada sensitiva que só pôde achar descanso pingando com uma bala de revólver o ponto final numa existência atormentada. O alto espírito que atravessara a existência aos sobressaltos de um ininterrupto acesso febril de alertas e decepções nascera ali naquela tranqüila casa branca da Fazenda da Boa-Vista, que tínheis ante os olhos. Passada a onda de recordações, assumiu a vossa voz entonações de amor, para dizer que, por haver sido berço de Pompéia a localidade, mais se justificava o decreto, que trazeis em mente, com que o Governo Federal irá promover o desenvolvimento de Angra dos Reis, com favorável repercussão na contígua Jacuacanga. Posso ter a satisfação de divulgar que o Estado do Rio de Janeiro já desapropriou a casa de Pompéia, que será escola primária e museu. E, assim, o seu eleito espírito continuará ali morando para sempre, como para sempre já paira sobre uma das Cadeiras da Academia.
Naqueles anos do curso jurídico, vossa inteligência desdobrou-se em atividades que não eram apenas de cultura e prazer estético, mas também de ação. Foi então que vos fizestes jornalista, e de certo não é desagradável ouvir rememorá-lo a quem ainda agora se ufana de haver redigido gazetas: O Debate, “jornal castilhista”, como logo indicava o cabeçalho, tinha-vos por autor do artigo de fundo, em que tão bem se ajeitavam a vossa intuição e habilidade... e também a vossa moderação. Já aos vinte anos moderado! Brilhante, mas de meses apenas, foi a vossa primeira regular incursão nas colunas da imprensa: acabou O Debate, por já desnecessário debater. Vencera o seu candidato. Vitória! – arisca e volúvel companheira dos homens – que, entretanto, desde aí se vos entregou para não mais vos deixar!
A pena, porém, já então, não bastaria para escoar as idéias que o estudo e a meditação haviam reunido num cérebro poderosamente lúcido; sobrava ainda o que comunicar pela palavra, e, assim, logo às primeiras florações da mocidade, vos revelastes escritor e orador. Várias vezes designado para falar em nome de todos os estudantes, este orador na aurora da mocidade exprimia-se em discursos meditados, isentos de paixão – testes de um temperamento sereno, equilibrado e pragmático. A tumultuosa tempestade que rugia nos colegas manifestava-se em seu intérprete por um límpido luar que lhe permitia ver claro. Isso, senhores, já revelado, faz 37 anos: a juventude moderada, raciocinante, conveniente! Que predestinada organização para um futuro acadêmico!
Por assim dizer – nascestes orador, mas um orador que, desde a juventude, tinha o que dizer, por estar o seu espírito na posse de uma verdade útil a transmitir; sempre fostes o orador somente das ocasiões em que era necessário ouvir-se a palavra; nunca discursastes pelo vão deleite de produzir um discurso; oportuno até na oratória. Por isso, tendes o dom de improvisar peças que, nascidas no momento, sempre correspondem ao que o momento espera do orador.
Assim aconteceu em Porto Alegre naquela sessão do já algo remoto 1910, quando, apenas recebida a notícia do advento da República em Portugal, uma voz das galerias, que logo fariam coro, bradou: “Fale Getúlio Vargas”! Ergue-se o jovem deputado à Assembléia Legislativa. E fazeis a apoteose da intelectualidade portuguesa, esse reduzido mas brilhante grupo de homens que, desde os anos 60, procuram sacudir da Pátria a inércia moral em que as oligarquias e o parasitismo haviam mergulhado a mesma gente autora da incomparável epopéia dos descobrimentos.
Pela mente do orador passa o grito de protesto lançado em Coimbra e que repercutiria logo em Lisboa. Das margens do Mondego às do Tejo é figura principal da reação patriótica Antero do Quental, alma pura, boca e pena de ouro, de que saíram solenes apóstrofes liquidando um regime em decadência. É Teófilo Braga, doutrinador profundo, a que não tardarão a juntar-se Manuel de Arriaga e Magalhães Lima, por sua vez, seguidos pelos mais novos – João Chagas e Antônio José de Almeida, a quem o destino faria, muitos anos depois, já gordo e Presidente da República Portuguesa, hospedar-se no Palácio Guanabara, talvez nos mesmos aposentos que hoje ocupa o seu admirador de Porto Alegre. A História tem cada capricho...
É agora a vez de Ramalho Ortigão, que, de repente, percebe precisar de mais vasto âmbito do que o atingido pelas irônicas Farpas; perdendo seu habitual equilíbrio, entra a bater de rijo nos “quatro milhões de egoísmos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em comum”. Vosso vigoroso discurso, com todos os encantos de fogo improvisado, era no entanto conduzido por um tema que só a cultura meditada poderia ter amadurecido: o de que a República em Portugal foi muito mais obra dos intelectuais que dos políticos, um movimento nacional que teve sua origem nas mais límpidas fontes do espírito e do coração.
A nobilitante marca de intelectualidade sela igualmente a esplêndida oração que acabamos de ouvir, suficiente por si só para mostrar que a Academia acertou ao designar o sucessor de Alcântara Machado. A crítica literária e histórica foi das primeiras atividades a que a vossa pena juvenil espontaneamente se deu, e o fino estudo que acabais de fazer do patrono e do último ocupante da Cadeira 37 confirma que as tendências naturais de um escritor garantirão o bom êxito de toda obra em que elas representem parte considerável.
Alcântara Machado exultaria ao se ver assim tão bem compreendido; entenderia melhor a sua glória e não duvidaria da sua imortalidade. Resultaria numa repetição se acaso eu me animasse a acrescentar algumas linhas à beleza das vossas expressões – além do mais, sem o mérito da maneira elegante, sugestiva e feliz com que vem de ser analisada a luminosa personalidade de quem, já certa vez se disse, igualmente neste Cenáculo: teve por musa a perfeição. E o que é perfeito só pode ser visto de um único ângulo – como se impõem as cousas definitivas.
Vossa recentíssima passagem por São Paulo, entre as maiores aclamações já prestadas a um homem público em nosso País, a que não faltou a expressiva homenagem dos seus brilhantes intelectuais, às vésperas da noite em que juntos iríamos recordar tão elevada figura paulista, ter-vos-á feito sentir ainda mais vivamente do que de costume os reais fundamentos do orgulho do saudosíssimo acadêmico em descender dos “violadores de sertões e semeadores de cidades” que foram por aí adentro fecundando desertos.
Mas decido firmemente resistir à fascinação de discorrer sobre Alcântara Machado, para me poupar à subalterna situação de pálido eco do já dito, de apagada sombra das brilhantes páginas que acabam de sorver com enlevo os apurados ouvidos desta sala cultíssima.
No inicio do século, já se afirmava a natureza calma, conciliadora e equânime de quem, ali mesmo, em Porto Alegre, presidiria o Estado e dirigiria a comunidade gaúcha – por tradição, a mais funda e violentamente desunida do Brasil, mas que o hábil conterrâneo acabaria congraçando num sentir único. Habituado aos triunfos, nenhum, entretanto, vos afagará tanto o coração como essa esplêndida e, na época, inacreditável vitória sobre um passado de lutas periodicamente renovadas, em que um heroísmo desnecessário sangrou sobre as coxilhas natais a gente que Garibaldi proclamava a mais brava do mundo.
Já desde tenra mocidade sabíeis tomar “o ponto de vista de Sírius”, que Renan preconizava para julgamento das contendas terrenas; mas só pode perceber algo de Sírius quem nasceu para observar as cousas como as vê um frio telescópio. Vós, privilegiado observador, possuís o dom de discernir as ocasiões em que é necessário fazer de telescópio e aquelas em que convém ser integralmente homem. O povo quer bem ao homem e admira o telescópio, o país aproveita de ambos e as cousas vão correndo bem.
Vossa personalidade, entretida pela opulenta seiva de uma juventude em flor, apresenta então o integral vigor das obras da natureza: é o período das espontaneidades prevalentes e das sinceridades intactas, quadra em que o caráter melhor transparece, ainda sem os ressentimentos das contrariedades nem as cicatrizes dos golpes adversos; o fel das amarguras e o ácido das decepções ainda não alteraram a composição dos humores; estado de pureza d’alma propício às nossas análises psicológicas. O campo das margens do Uruguai, desdobrando-se em ondulações suaves ao olhar, que se fundem numa planície verde, recua o horizonte e parece dilatar a compreensão humana: tal a paisagem de vossa infância e adolescência, que vos permitia ver longe o objetivo e longe perceber o perigo e, assim, vos apurou inteligência e calma, ao mesmo tempo que ensinava a descobrir o que tinha de vir, forrando as surpresas; dispúnheis de espaço e tempo para refletir e escolher o caminho mais seguro; e por isso que o sabíeis o mais seguro, o seguiríeis com determinação. A planície verde criou a vossa paisagem psicológica: serenidade e largueza de vistas; moderação e tolerância; inteligência penetrante, ponderação e pertinácia, previsão inigualável dos acontecimentos, vontade, coragem e resolução – tudo envolto em simplicidade.
Com esses dons, fortes como a natureza que os formou, iríeis empreender a certamente mais maravilhosa travessia que um brasileiro já realizou na vida pública. Precipícios abriram-se a vossos pés, quatro ou cinco vezes a morte quis atingir-vos, mas até a morte teve de recuar ante a vossa determinação de prosseguir para a frente. “De pé!” ordenastes ao Rio Grande, num momento decisivo; de pé vos mantivestes, em toda a vossa carreira ímpar. Rememorá-la inteira não seria obra exeqüível num discurso. Centenas de livros, infinidade de artigos retratam a vossa personalidade, e ainda mais do que se tem escrito temos visto e comentado nós todos, testemunhas da ascensão extraordinária que breve atingirá o zênite na apoteose que vos espera – a festa da Vitória que já vislumbra, redentora de sacrifícios e faiscante de glórias, iluminando para longos anos um mundo enfim solidamente implantado no supremo direito de viver em paz. Vosso nome entrelaçar-se-á à constelação dos gloriosos estadistas que viram justo e souberam arrancar da premeditada ignomínia as pátrias ameaçadas de escravidão.
Ainda nessa encruzilhada do Destino vos valeram – e a nós todos – as qualidades pessoais que até então vos haviam guiado aos triunfos. Com que calma seguistes os acontecimentos que a tantos apaixonavam; e com que decisão interviestes no instante em que se tornou indispensável intervir! A voz de vossa consciência confundiu-se então com a voz da Nação, e, assim, nunca um Chefe de Estado, no supremo lance de uma declaração de guerra, terá tido mais que este o consenso geral a apoiar-lhe a pena que assinava a mais terrível das decisões.
Os comentários sobre uma personalidade esclarecem, a crítica orienta, os discursos podem fazer refletir... ou dormir. Nada, contudo, jamais convencerá tão fundo como suas próprias palavras e principalmente seus próprios atos. Pois umas e outros acham-se ao alcance de quantos os queiram ponderar nessa opulenta e singular coletânea A Nova Política do Brasil, cujos nove volumes já publicados formam os autos do processo em que o estadista Getúlio Vargas irá pleitear perante a História o julgamento sobre o seu governo. E poderás simultaneamente pleitear, perante a Arte e o pensamento, os títulos de orador vigoroso e escritor elegante. Quanto ao julgamento da Academia, ei-lo nesta reunião consagradora.
A série de discursos e mensagens, cuja perfeição está na simplicidade, agradáveis e persuasivos tanto ao homem culto como ao sem-letras, a todos empolgando, é uma sadia pregação patriótica de longo fôlego, uma cadeia de pensamentos coordenadores atravessando o País como um sulco de luz, dizendo a cada um dos auditórios que se foram escalando no tempo e no espaço a palavra oportuna e orientadora que lhe era necessário dizer, transmitindo o profundo sentimento de confiança no futuro do Brasil de um homem convicto da grandeza dos destinos da terra comum e que conclama seus concidadãos a trabalharem com ele e com ele marcharem, no labor e na disciplina, para uma fulgente meta de conquistas pacificas. “O progresso é a ordem em marcha”, disse Poincaré e prova Getúlio Vargas. A Nova Política do Brasil é simultaneamente um eloqüente balanço do já alcançado a partir de 1930 – e uma incitação a que todos concorram para a realização daquilo que a Nação ainda não conseguiu, mas a que pode legitimamente aspirar. Sim, porque, mesmo quando apenas almeja, o sensato condutor nacional e escritor atraente e sugestivo mantém-se dentro de um cauteloso espírito de possibilidade. Obra construtiva e de pensamento.
Mais de dois milhares de páginas de uma eloqüência viva e brilhante! O leitor, à medida que avança e sente constituir-se, na seriação cronológica das orações e mensagens, a história destes últimos trepidantes anos da vida nacional, decisivos para plasmarem um Brasil novo, vê uma organização social de novos moldes, impostos pela realidade de um mundo bem diferente do que formara a nossa tradicional concepção da vida em comum. O vosso vibrante brado de justiça social não foi estéril lance de eloqüência política, mas o início de uma era fundada na idéia da solidariedade e do mútuo auxílio, para amparo dos mais fracos e proveito de todos.
A Nova Política do Brasil é obra original, porque a sua substância são os fatos produzidos pelo mesmo homem que os fez nascer e agora os expõe: ela é a vida nacional a partir de 30 e, especialmente, de 37 para cá – a era getuliana, como já lhe chamaram. Poderia a obra trazer por epígrafe a palavra profunda de Emerson: “Toda instituição é a sombra alongada de um homem.” A vossa projeta-se sobre o Brasil Novo, cobrindo-o, como um espírito vivificante, para a campanha vigorosa, quase frenética, da renovação e do aperfeiçoamento, conduzindo a nação não só na falada “marcha para o oeste”, mas também em grandes e até gigantescos empreendimentos em todas as outras direções: ao norte, borracha e petróleo; ao centro, ferro; ao sul, carvão; a leste, a maior utilização do mar, a Armada reconstituída; o Exército em deslumbrante revigoramento; em todos os pontos cardeais, aviões, mais aviões, descobrindo, desbravando, civilizando, enriquecendo.
Os sismos que periodicamente sacodem regiões condenadas por uma fatalidade geológica a esses terríveis abalos destruidores de vidas e utilidades; as convulsões rachando a crosta da Terra, abrindo-lhe fendas e escavações, atiram para as profundezas o que até então fizera a beleza e a felicidade da superfície. Pois poderíamos, ainda em linguagem de geologia, caracterizar a era getuliana como uma sucessão de sismos às avessas, já que trouxeram das entranhas para a flor da terra tesouros que lá se achavam ocultos e envoltos no silêncio milenar das cousas condenadas a jamais serem aproveitadas: assim, esses imensos depósitos de ferro que vasto e engenhoso plano começa a mobilizar para um dos mais grandiosos movimentos econômicos já realizados de um só fôlego e que se integra na empresa de Volta Redonda – arsenal da indústria e da defesa nacional, concebido num paroxismo de ardente patriotismo e ora executado com vigor vulcânico, obra ao mesmo tempo arrojada e segura que nos emancipará definitivamente: a segunda Independência do Brasil. E Vulcano é esse homem com as insígnias acadêmicas, tranqüilo e medido, que temos diante de nós. O minério não tragado pelas rubras goelas dos fornos de Volta Redonda sobrará para cargas da frota que o há de levar ao estrangeiro, pesando fortemente na balança comercial do Brasil. E, com a criação dessa nova riqueza nacional, eis como vos tornastes o único bem-sucedido dos alquimistas de todos os tempos; conseguistes, de fato, transformar ferro em ouro.
Fizestes procurar o petróleo, e ele está aparecendo, com as melhores promessas de uma nova riqueza nacional incalculável. Facilitastes a indústria do carvão de pedra, e, graças ao acréscimo de sua produção, vai o Brasil dispor de combustível necessário à grande siderurgia. Os problemas do alumínio e do níquel estão armados para uma solução prática. O da goma elástica é, neste momento, não só a ressurreição de uma riqueza nacional, como também relevante contribuição para salvação do mundo. Estais no comando supremo da “batalha da borracha”, para cujo feliz desfecho pusestes em ação a palavra que persuade e a habilidade de estadista que sabe promover fecundos acordos internacionais. Jamais conheceu o Brasil plano que haja sido empreendido com tanta resolução e tamanha variedade de meios. As torrentes de dinheiro são dignas das do rio-mar, em cuja bacia se trava o combate com uma natureza paradoxalmente hostil pela sua exuberância: terra demais, água demais, demasiada floresta, habitat ideal para os insetos contaminantes, tudo alongando as distâncias quanto dificultando a penetração! No Inferno Verde, o único acesso fácil é o acesso pernicioso...
O avião é o vanguardeiro da batalha da borracha, e ainda no aproveitamento do incomparável soldado mecânico se manifestam a vossa clarividência e vontade de chefe. Pressentistes de há muito o papel do avião neste país de imensa terra, em vasta porção, mal conhecida e desabitada; só a velocidade e a autonomia da máquina de voar podem dominar a distância e o deserto. Dos primeiros a compreender isso, logo entrastes a animar a navegação aérea por todos os modos, inclusive pelo exemplo pessoal: sois dos que mais têm sobrevoado o território pátrio.
E o Exército Nacional? Altivo e pujante como sempre, mas agora engrandecido, melhor, muito melhor aparelhado para a sua nobre missão. Temo-la neste momento apercebida e adestrada como nunca a amada corporação militar de gloriosas tradições, cujos feitos nos deslumbravam na infância e em véspera de se repetirem em novos heroísmos, abnegações e triunfos. A caserna é o coração da nacionalidade. Sangue novo, sob os cuidados necessários, lhe infiltrastes nas veias, para maiores feitos de devotamento e abnegação pela pátria. Em conjunto com o Exército, a Marinha Nacional rejuvenescida, aparelhada de unidades novas, muitas construídas em nossos estaleiros, também ela rica de tradições; a frota de guerra brasileira, agora em ativo cruzeiro, vem protegendo a navegação e as costas, afugentando a pirataria traiçoeira. Por seu turno, correndo parelhas com o Exército e a Marinha Nacional e assim cooperando, com inteira eficiência, para, melhor guarda do nosso vasto litoral e, pois, das águas territoriais, alça-se garbosa a Aeronáutica Militar, também criação vossa, apresentando já uma bela folha de serviços com que se recomenda cada vez mais à admiração e reconhecimento dos nacionais e até de estrangeiros.
No ardor e constância com que estimulais a defesa do País, vislumbra-se ainda a vocação do menino samborjense; continuais soldado na alma, e a espada com que esta noite vos vemos é, em realidade, muito menos simbólica do que parece.
Ao mesmo tempo que fazeis preparar as armas para a defesa da Pátria, cuidais do ensino e da educação com o desvelo de quem mede em toda a extensão e urgência esses problemas fundamentais do Brasil. Este é, sem dúvida, um dos méritos pelos quais mais vos recomendastes à escolha da Academia, sempre atenta a quanto concerne ao cultivo da inteligência dos brasileiros; não lhe podia, pois, escapar o vosso plano de abrir escolas, sempre mais escolas, ainda mais escolas. Há poucas semanas, alguém aqui assinalava o decidido apoio que tendes dado aos admiráveis serviços da Cruzada Nacional de Educação; aparecem agora as estatísticas do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Nada mais animador: nos últimos dez anos, 20 escolas e mais quase 2 milhões de alunos a aprender. Uma década de fecundação da inteligência infantil.
As grandes noções que conformam a mentalidade de um povo adquirem-se na escola, dissestes, há dias, num breve discurso que é um primor de bom senso e de expressão acadêmica. O grande amigo das crianças raia nessa inspirada oração em toda a plenitude de fé e de ideal patriótico. Que magnífica lição para a primeira lição dos novos professores e professoras que a ouviram do egrégio paraninfo que os saudava no Instituto de Educação – a casa de Benjamin Constant! Anunciastes então: nesta Capital a Municipalidade agora já construiu mais de vinte prédios escolares e tem vários outros em construção, com capacidade para vinte mil alunos, graças acrescentastes – ao Prefeito Henrique Dodsworth, que ainda conserva, como antigo professor, o seu amor pela escola, mostrando decidido empenho em atender às necessidades educacionais da mocidade.
Assim é, em verdade. A população da cidade sabe que o seu governador não dorme; que faz dormir cedo as crianças, para que cedo acordem e sigam caminho da escola, em bando álacre, maleta dos livros às costas, em demanda do bendito aprendizado.
Na Academia, portanto, entrastes como um autêntico intelectual que, desde a adolescência, submeteu o espírito a uma apurada cultura e dele vem tirando robustos e belos frutos, prodigamente espalhados em escritos e discursos ricos de substância – e, não obstante, de forma leve, cuja simplicidade mais lhe ressalta a elegância.
Ao teatro, motivo de permanente interesse da Academia, demonstrado em concursos de prêmios, vindes, desde deputado, infundindo alento e, aos seus cultores, amparo. O coração agradecido da classe beneficiada chamou ao decreto que lhe deu garantia material e moral “Lei Getúlio Vargas”. Fosse vivo um dos nossos – Artur Azevedo – e com que entusiasmo teria feito ressaltar nesta Casa os atos de quem realizou aquilo com que o mestre sonhava: um teatro nacional não deixado à discrição dos exploradores de artistas e do mau gosto das massas!
Entre os serviços que criastes para difundirem cultura, educação e civismo, avulta o Instituto Nacional do Livro, cuja utilidade os números, mais persuasivamente do que as palavras, exprimem: quantidade superior a 100 mil volumes distribuídos grátis, a fundação de cento e muitas bibliotecas, a regular subvenção de um milhar e meio delas; a edição, já realizada ou em preparo, de obras de geral interesse, quais um dicionário biográfico e outro enciclopédico. O Instituto é particularmente caro a esta Academia, que poderia ter por emblema um livro, em lugar da coroa de louros; prestar-se-ia menos às facécias que nunca a deixam nem aos acadêmicos – e que afinal talvez resultem em aumento do prestígio dela e deles.
Mas, se fazeis tão profusamente distribuir o pão do espírito, preparando-o para as conquistas futuras, não esqueceis que no passado tira uma Nação, além de orgulho, ensinamentos. A tradição forma a mística de um povo. Eis por que vos interessais pela preservação dos ambientes em que nossos maiores forjaram a sua glória ou o seu martírio, trabalhando pela Pátria. Tal a idéia, belíssima sob todos os aspectos, que vos inspirou a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico do Brasil, que conta, como o Instituto do Livro, quase o mesmo número de dias que o Estado Nacional, coetaneidade bem significativa. Os mais cultos homens de arte invejam-vos a glória – e, mais que a glória, o íntimo júbilo – de haverdes sido quem pode para sempre estereotipar a Vila Rica da Inconfidência e salvar dos insultos do tempo e da rapinagem mercantil as igrejas de Minas e as criações do Aleijadinho.
Em contraposição, o Rio de Janeiro toma agora rapidamente o feitio de uma cidade de deslumbramento em que todos os atributos de uma organização moderna e modelar se reúnem e articulam para um objetivo grandioso, em que o pulso de uma administração de artista finamente conduz para um milagre de quase ressurreição, de vez que insuperável já nasceu, em sua natural opulência. Vai-se avançando sempre em tudo, enquanto se abrem, também com deslumbramento e fascinação, novas avenidas, na principal das quais – a do Presidente Vargas – se levantará em pedra o monumento de que os cariocas já trazem no coração uma agradecida imagem.
Ligados ao Serviço do Patrimônio, já os ricos e preciosos museus nacionais sentiram o vosso influxo, para o culto do passado, que é uma escola do futuro. Nas salas do Imperial de Petrópolis se espalham relíquias das sete primeiras décadas da nacionalidade; é um ambiente sereno em que todo vestígio de paixão política se transmuda em amor à Pátria, e os monarcas e estadistas de então nos parecem fundir-se com os homens contemporâneos no mesmo cadinho do patriotismo elevado, que elimina as escórias e sublima o culto ao Brasil. Neste sentido justo e superior vos exprimistes no tocante discurso da Catedral de Petrópolis, quando, “em reconhecimento aos grandes serviços que o último Imperador prestou ao Brasil”, o Presidente da República entregava o túmulo imperial à agradecida reverência dos brasileiros. Homenagem bela e rara, igualmente honrosa para os dois Chefes da Nação – o que tanto por ela fez e o que tinha a nobre imparcialidade de proclamar daquele as altas virtudes e os meritórios atos, pondo de lado efêmeros critérios políticos para só atender ao eterno ideal de servir à Pátria.
Bendita seja, pois, a vossa louvada indulgência. Assim é que certas criaturas de engenho mágico e sedução pessoal, magnificamente calmas, conquistam um como misterioso poder-domínio através das flutuações da opinião pública, imprimindo a tudo, consoante o vosso feitio, “um pouco da amena bondade”, bafejando com ternura os bons impulsos humanos! Amar e servir a sua terra! Servi-la suavemente, sem jamais lhe esquecer os objetivos espirituais.
Por isso mesmo, vos sentíeis bem, ali, na tarde recente da inauguração do Museu de Petrópolis; as gravuras dos jornais mostram a figura do Presidente da República a projetar-se sobre um fundo em que se desdobra a bandeira do Império. Sempre a vossa natural tolerância, que tudo compreende e faz deste benévolo sentimento um filtro que retém ódios, restaura amizades e tudo acaba concertando em benefício geral. Atribuem-vos este conceito, cuja exatidão não procurei verificar, porque de antemão o tomo por autêntico: “Não tenho inimigo que amanhã não possa vir a ser meu amigo.” Dissestes generosamente, logo após doloroso episódio revolucionário:
O Governo tem o dever de utilizar medidas excepcionais enquanto necessárias à manutenção da ordem e na defesa dos ideais que representa. Aplicando-as, não pode, porém, abrigar ódios nem intentos de vingança, sentimentos negativos e contrários à sua finalidade construtora. A função de governar é, por natureza, impessoal e isenta de paixões. Cumpre exercê-la sobrepondo-se às lutas e dissidências, quase sempre estéreis, para só ter presentes os interesses superiores da Pátria.
Os anos dar-vos-iam, além do apreço ao Jornalismo, a perfeita compreensão de seu ilimitado valor na vida de uma Nação. O jornal é o visitante que, pela manhã e à tarde, nos vem comunicar fatos novos e comentá-los conosco; pode estar em harmonia ou em desacordo com o sentir nosso; mas, amigo ou adversário, nunca nos serão indiferentes suas palavras. Sua importância a ninguém passaria despercebida e menos ainda a quem, depois de haver sido jornalista, é chefe de uma Nação. A imprensa vem atraindo permanentemente vossos cuidados, e a ela facilitastes os meios espirituais e materiais que resguardarão a dignidade da função e dilatarão as vistas dos que a irão servir – a casa onde se reúnem os jornalistas, a escola onde jornalistas se formarão. Vosso amparo tornou possível esse milagre de grandiosidade, conforto e assistência que é hoje a Associação Brasileira de Imprensa, e fizestes fundar o curso de Jornalismo, enquadrado no plano superior de uma Faculdade de Filosofia.
Vosso amor à imprensa iria ainda manifestar-se por um terceiro grande ato: incluístes o seu trabalhador no quadro geral de proteção a todos os obreiros, e cuja criação é, sem dúvida, um de vossos máximos benefícios à Nação. “Três milhões de trabalhadores, proclamou – há pouco, um de vossos Ministros – viram seus direitos reconhecidos espontaneamente pelo Estado, e nove milhões de brasileiros já se aconchegam sob as leis de previdência social.” Tal a grandiosa obra que o vosso atilamento político engendrou como base da paz social que hoje o Brasil desfruta. Não existe aqui germe de lutas de classes, agora entrosadas num sistema de harmonia e solidariedade. Isso porque o intelectual de senso precipuamente político, além de tudo compreender, possui um coração que, não abrigando rancores nem ódios, dispõe de maior espaço para alojar os sentimentos de concórdia e aproximação.
Preferiríeis uma humanidade que não se dilacerasse em rivalidades agressivas e temerosos conflitos, um mundo onde a tolerância desfizesse as ameaças dos antagonismos e a magnanimidade apagasse ressaibos de lutas. Nesse bom sentido tem invariavelmente agido o homem que, para suavizar a prática política, modificou a geometria de Euclides: nesta, a menor distância entre dois pontos é a linha reta; a geometria getuliana, porém, proclama como axioma que “o caminho mais curto entre dois pontos está na remoção cautelosa dos embaraços”.
Mar de rosas o caminho percorrido? Pois sim... Dos recifes dessa procelosa rota navegante algum já se livrou. Ao contrário, os obstáculos saltam de frente, às vezes de manhã à noite, e, quando não os há, inventam-se. O boato é, na Vida, o único ente que não dorme. As vezes, muito raras, ele tem razão. A crise, senhora de muitas faces, está fervendo... É o momento de regalo do boato. Cada um dá a sua solução. E o Catete calado, mudo e quedo. E o homem da rua, o trabalhador, de boa mente, sem mistura de malícia, sorrindo como quem confia: “Vamos ver como o Getúlio se sai desta”... Dias depois, o Presidente, despreocupadamente, está jogando golfe no Itanhangá; mas, antes de acertar nos buracos do campo, já acertara no caso difícil – que era também um “buraco”. A cidade passa a dormir tranqüilamente.
Instituístes um Tribunal de Segurança, porque, é claro, crimes não podem ficar impunes. Onde, porém, o instalastes? numa fortaleza? num couraçado? cercando-o da garantia do isolamento e da proteção das metralhadoras? Nada disso. Foi localizado numa escola de bairro residencial, bem à vista de freqüentadíssima passagem, por sinal, à sombra amena de formosos oitis e ficus benjaminea da linda Avenida Osvaldo Cruz, cujo nome evoca o saudoso patrício que também aqui se sentou. Nem pusestes a dirigi-lo – a comandá-lo – uma figura mavórtica de catadura tão ameaçadora como a espada que cinja; ao contrário, entregastes a sua formação à magistratura afeita à aplicação da justiça ordinária e tão própria para serenamente resolver sobre a sorte dos acusados. São cuidados que, entretanto, não surpreendem quando tomados pelo estadista que, logo ao assumir o governo revolucionário, decretou a limitação dos seus próprios poderes.
E a Justiça, em geral, da nossa terra? Como vos apreciam os Juízes? Como interpretam as vossas atitudes no que tangem todo o Poder Judiciário? É óbvio que o fundador da Justiça Social no país devesse dedicar particular cuidado à Justiça integral, pela qual moldou a sua mentalidade jurídica. Ninguém me perdoaria que, neste momento de tanta magnitude, eu não tivesse uma resposta a dar a tais perguntas, em honra a essa Justiça, a essa Justiça das minhas grandes e profundas saudades.
Numa palavra, um só episódio dirá tudo, sem dificuldade de interpretações esdrúxulas. Certa vez, neste novo regime de tantas soluções acertadas, o Supremo Tribunal Federal resolve convidar o Ministro da Justiça para uma sessão especial, da máxima solenidade: é um ato de recepção, altamente significativo. Falam o Presidente e o Secretário de Estado. Trocam-se discursos laudatórios. As orações são convergentes; plena a harmonia. O Ministro proclama que a Constituição “conferiu ao Supremo Tribunal poderes de Governo”; o Presidente atual, togado, no pináculo da Justiça Federal, de que é chefe supremo, declara-se “confortado em poder verificar o ritmo de nosso comércio social e jurídico” – suas expressões textuais.
Mais ainda. Os tribunais de apelação não fogem a esses propósitos. Seus presidentes, reunidos nesta capital em memorável conferência, prestam homenagem à presidência da República. O Tribunal de Apelação desta capital recebe entre aplausos o Chefe de Estado e inaugura-lhe em formato grande o retrato com esta legenda sumamente significativa: “Homenagem da Justiça do Distrito Federal”. O nobre e venerando Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, o denodado e precioso companheiro de todos os tempos da vida da nossa Justiça, confraternizando nos triunfos conquistados na sua augusta missão, também vos conferiu a maior distinção de que dispõe – membro de honra da altíssima corporação. Possuis assim e já vos foi entregue com solenidade a condecoração do Centenário.
Será preciso dizer mais, Senhor Getúlio Vargas, para vosso regozijo e conforto?
O anel de bacharel em Direito, que traz gravada a balança da Justiça, vós o conquistastes pelo estudo; mas a natureza já vos doara, ao nascerdes, a balança do bom senso, em que pesais tudo. Bom senso e instinto da ordem valem como o centro de gravidade de vossa personalidade, ainda favorecida pela calma, que permite o máximo aproveitamento das vantagens do tempo; possuís o dom de saber esperar. O povo, em sua pitoresca inventiva, atribui-vos uma regra de conduta, que, nem por carecer de autenticidade, encerra menos de prático: “Deixa estar como está, para ver como fica.” A posse dessas preciosas qualidades de ponderação e determinação oportuna permite-vos surpreendente segurança no agir e confiança na ação.
A vossa calma habitual! Bem ressalta esse forte traço pessoal um episódio sobre o qual solicitei, por carta, o testemunho de Don Ramon Carcano, o eminente escritor que toda a América festeja, figura altamente representativa de sua nobre pátria, espírito fulgurante que esta Academia se ufana de contar entre os seus membros estrangeiros e que deploro não ver aqui, hoje, sentado entre nós, por sabê-lo caloroso admirador do recipiendário.
Como resposta a meu pedido, teve ele a suprema gentileza de me enviar os originais do livro então ainda no prelo, Meus Primeiros Oitenta Anos, onde aquele ex-embaixador da República Argentina em nosso país alude ao jantar realizado na Embaixada, certa noite, em que o anfitrião chegou a acreditar que o convidado Getúlio Vargas não viesse, mesmo porque – havia motivos para crer – não poderia vir. Certo, o banquete lhe fora oferecido oportunamente, e ele o aceitara. Ora, palavra de Presidente da República é como a proverbial palavra de rei. Mas, entre a aceitação e o banquete, ocorrera algo extraordinário: precisamente na manhã do dia fixado para o festim viera à luz o Estado Novo – nascimento que foi uma geral surpresa, o que, entretanto, não significa que tenha vindo fora de tempo... Seria crível que o Presidente pudesse jantar longe do palácio naquela mesma noite de tão sensacional acontecimento, um dos grandes da nossa história política? O próprio anfitrião justificava de antemão como de força maior a não comparência de um convidado em tão especial situação.
Entretanto – continua a narração –, à hora marcada chegam o Presidente e sua família, sem uma guarda nem qualquer vigilância. O Presidente cumprimenta-me e diz-me sorrindo: “Os brasileiros sabem cumprir as promessas”. “Ainda que haja mau tempo”, retorquiu o embaixador, aparentemente referindo-se à chuva que caía, mas, intimamente, como se em vez do mau tempo dissesse “tempo quente”. A refeição decorre serenamente. No Presidente – assinala o narrador – não se nota nenhum cansaço nem preocupação. E o Presidente permaneceu na Embaixada Argentina quatro horas da primeira noite do Estado Novo – despreocupadamente, insiste em referir o seu atilado observador rematando: “Eu estava surpreendido.” E tinha de quê...
Mas, senhores, a hora passa, já quase passou, e, todavia, restam tantas cousas a focalizar – essenciais no inventário público a que a Academia se entrega nestes discursos com que deve fundamentar uma nova escolha. Já não posso nem sumariamente comentar o que falta, e assim, mais uma vez, tenho de relembrar a leitura dos nove volumes de A Nova Política do Brasil. Aí está o autor a justificar a Academia. Precisou este pobre orador de reduzir a extrato “concentrado” a imensa e substanciosa massa do assunto, para a servir num comprimido, que aliás, por imperícia sua, o manipulador receia possa ter efeito hipnótico.
Seja-lhe, porém, permitido acrescentar ainda um traço a este sacrificado esboço de personalidade tão complexa e que, todavia, é tão simples – e, por sua simplicidade, ama os humildes e as crianças. A criança é um dos vossos permanentes prazeres. Gostais de acariciá-las, seja na atravancada rua carioca, seja sob as magnólias de Petrópolis, ou ainda entre os índios da Amazônia. Enquanto o coração as afaga, o espírito vê nelas, já o dissestes, “o futuro da Pátria”. Algumas tornam-se gigantes, como sementes de frondosos carvalhos – pensamento de Dickens, que é também o sentir vosso. Por isso, elevastes as paradas infantis à categoria de festas cívicas – a meu ver, um dos mais belos espetáculos do Estado Nacional. Galgastes, um dia, áspero morro petropolitano, muito longe da cidade, bem na fronteira de outro município, em cujo isolado cimo um modestíssimo lar operário foi encontrado na hora do pequeno descanso da labuta diária. “Até aqui, Sr. Presidente!” exclamou, entre surpreso e sorridente, o bom homem chefe da família. Sentado, à vontade, sorvendo o perfume do café de bom sabor, que aceitastes, tivestes o costumado prazer de acariciar ao colo uma das lindas crianças da sadia prole. À hora da partida, um pedido vos foi dirigido, com certo acanhamento, pela mãe satisfeita: o da vossa fotografia. E hoje, lá na casinha pequenina, pende da parede, em lugar de honra, o retrato do Presidente que a visitara, e que remetera sabe Deus com que prazer... Assim, no coração dos humildes moradores do morro ficou para sempre o reconhecimento por uma hora feliz.
O vosso discreto amor por esses retiros amenos, por essas encantadoras e deliciosas paragens da vida campesina revela o enlevo de um coração emotivo e generoso. A “alma fica melhor no descampado” cantaria Castro Alves, lembrando Virgílio nas Geórgicas: “Feliz daquele que conhece as divindades do campo.”
O bom-homem campestre vive embalado pelas doçuras da sua palhoça, cantando e sonhando, afortunado. Mas os instantes de amor e a tranqüila evocação das campinas em flor, onde luz a poesia como alma enamorada, só ao intelectual é dado traduzir e dos seus amavios compenetrar-se, cultivando os crebros anseios da sua imaginação criadora, nutrindo-se de imagens que não desfalecem, em busca das “alegres cores da esperança”.
Recomendastes aos interventores nos Estados a proteção à criança como devendo ser uma “preocupação política nacional”. Em vós começa por ser uma preocupação de afeto – duplamente afetiva mesmo –, pois que ao vosso lado tendes sempre alguém que aplica inesgotável tesouro de bondade a edificar a espiritualmente mais bela cidade imaginável – a Cidade das Meninas.
Como para as crianças, vindes incansavelmente dando e recomendando amparo às mães, não esquecendo tampouco os pais de família numerosa. Não contando com a generosidade espontânea dos solteiros, gente sempre suspeita de cuidar em demasia de si própria, decretastes um imposto de celibato em benefício dos autores de prole abundante. Tão viva é vossa preocupação acerca da ampliação da família nacional que, certa vez, em Petrópolis, numa agradável mansão, onde leal amizade comum nos sentava à mesa do almoço, me interpelastes sobre o meu celibato. Este triste estado civil, que sou o primeiro a deplorar, é objeto de antigas advertências por parte de senhoras; algumas, ainda hoje, têm a tocante gentileza de me aconselhar o casamento... Vós mesmo, naquela agradável manhã petropolitana, bondosamente vos propusestes a ser meu padrinho na cerimônia nupcial; quis, porém, o destino que, antes, eu fosse o vosso na Academia, e não oculto o receio de vos deixar na contingência de aguardar largos anos antes de me retribuirdes este paraninfado, entre as galas de uma noite que não cessa de ser de festa, mesmo quando relembra a definitiva ausência do primoroso companheiro Alcântara Machado, já que, mitigada com o tempo a dor da separação, dele ficou aqui, nesta Casa, uma saudade que agora não entristece, porque envolta num clarão de inteligência, beleza e força: o paulista de quatrocentos anos continua vigoroso depois de morto.
E as flores que aqui vejo recordam-me uma vossa atitude requintadamente gentil, que, inspirada a princípio por sentimento individual, acabaria revestindo significação internacional. Quando esteve no Rio o General Estigarribia, acolheu-o o mesmo cordial afeto que, algum tempo depois, vimos reproduzir-se nas manifestações a seu sucessor General Morinigo; para ambos soube o Chefe da Nação encontrar meios deveras tocantes de lhes fazer chegar o carinho do coração brasileiro. Bastou que houvesse percebido a especial estima do General Estigarribia às orquídeas para que, cada manhã, mandasse ao ilustre hóspede novos exemplares da flor predileta. Tempos após, terrível acidente golpeou o presidente paraguaio e sua ilustre esposa, que voavam juntos, de avião, e juntos voaram para a eternidade. Intérprete do magoado sentimento nacional, nosso Governo enviou, pelo ar, distinto general que seria um dos seus representantes do funeral e levava, como preito pessoal do Presidente Vargas, um ramo de orquídeas, a ser deposto na sepultura do desditoso casal. Estou informado de que essas flores ainda lá se encontram, como a expressão da saudade brasileira. E símbolo também de uma política: orquídea, flor sem espinhos.
Vosso feitio pessoal tem alimentado, como sucede a todo grande homem político, extenso anedotário, sempre renovado, significativo índice da vossa admirável, permanente, invejável popularidade. É de notar que em todas essas histórias acabais vencedor: sois a figura do bom êxito; quando ele vos bate às portas, o povo diz: “Qual! o Presidente tem mesmo estrela!” Mas, afinal, que é ter estrela? acaso deitar-se na rede e aguardar que a estrela se erga, radiosa e benéfica, iluminando o caminho do sucesso? Ah! pobre de quem assim duplamente se embalasse – na rede e na ilusão! Não. Ter estrela nele, conceber um plano, meditá-lo, ter forças para perseverar nele, confiança e paciência para esperar seus resultados.
Eis o vosso segredo. Não gostais de precipitar, não abandonais em meio os empreendimentos. E, quanto a aguardar pacientemente os resultados, sois o mestre que passa por ter descoberto o processo de “cozinhar em água fria”... Se existe a lendária estrela dos grandes triunfos pessoais, ela está dentro do próprio contemplado com esse conjunto de dons condutores do esforço – do esforço sem o qual a estrela não se erguerá, continuando deitada como o fatalista preguiçoso que espera na rede que ela lhe venha brilhar. Vós, ao contrário, só esperais aquilo que vós mesmo preparastes com providência e calma; não vos antecipais aos acontecimentos, porque de antemão sabeis como virão; a ação vossa assemelha-se à da linfa que, circulando na planta, há de um dia, necessariamente, amadurecer-lhe o fruto. E, assim, sabeis colhê-la nas melhores condições – sem o magoar nem vos magoardes. Um tal espírito, só considerando o possível, sempre dentro da realidade, deve, sem dúvida, acertar. Vosso contínuo bom êxito não precisa encontrar explicação fora de vós mesmo. Por isso, vossa vida é uma lição. “Professor de presidentes”, chamou-vos, há pouco, um Chefe de Estado sul-americano.
Vou concluir. Sois, de fato, o alvo vivo e penetrante do nosso destino nacional. Jamais vos afastastes das graças protetoras e da remissão de culpas – símbolos encantadores, que são, da alegria, da floração, da harmonia, do esplendor de beleza ornamental entre os magnos guias de nacionalidades. Artista da palavra e do pensamento, cultor da discrição, escravo da simplicidade, a Academia, que vos elegeu num transporte de franca satisfação, agora vos recebe com verdadeiro júbilo. Foi sob a égide do vosso governo, eminentemente produtivo, que tiveram alento e realização muitas e várias das nossas aspirações; foi ele que concebeu, criou, corporificou e levou a cabo um hábil sistema acentuando o florescimento da vida cultural do País, no tocante à ciência, às artes e, particularmente, no que interessa à Literatura; e que, ao calor da lida do habilíssimo artífice de sua finalidade, fez a existência do Brasil assomar mais linda e mais festejada.
Eis por que, de ânimo calmo e refletido, me sinto à vontade para saudar, neste augusto momento de tanta elevação de corações, o recipiendário de excepcional relevo, que, sem se deixar obliterar pelas atividades governamentais, timbrou em manter e cultivar os seus pendores literários, na mais perfeita co-participação dos objetivos culturais, fazendo resplandecer engenho e arte em prol da honra e da soberania da Nação, mantendo cada vez mais unidas as fortes alianças tradicionais das nossas províncias políticas e espalhando, ao mesmo passo, servido pela brilhante vigilância de nossa Chancelaria, perenes harmonias pelo largo âmbito da confraternização continental.
Do alto de seu púlpito de ouro exclamaria Mont’Alverne: “Eis os feitos que dão fama duradoura, que imortalizam; são os soberanos troféus que perpetuam na posteridade as orações e o renome.”
A incorporação de um tal valor intelectual à Academia é ao mesmo tempo consagradora dos seus méritos e da nossa capacidade de escolher. Bem significativo parece-me o haverdes recebido a notícia de vossa eleição acadêmica no esplendor de uma catedral, onde solene Te Deum exaltava a presença presidencial nos “confins ocidentais”, lá pela risonha Cuiabá, a terra dos palmares. Um católico vê na circunstância mais do que uma coincidência – um desígnio divino; e o repique dos sinos teria ecoado aos ouvidos dos crentes como vozes do Alto festejando a eleição do estadista que restabeleceu o ensino religioso nas escolas, para que as novas gerações tenham bem presente que só as virtudes cristãs asseguram a vitória aos indivíduos e às nações – como vos aconteceu na vida e vai igualmente suceder ao nosso amado Brasil, graças à política sábia e humana que nos fez combatentes nesta guerra, justificada pela transcendência de uma luta para salvação da humanidade.
E, no dia em que raiar a aurora do triunfo e redenção, que majestoso Te Deum elevará ao Céu, com o incenso dos turíbulos, o vosso nome, entre as hosanas do reconhecimento nacional! A Academia exultará, repicarão sinos, subirão girândolas, e os corações brasileiros elevar-se-ão com a vitória do Bem e do Direito num mundo para cuja reconstrução soubestes guiar um povo grande e generoso, a que proporcionastes a honra de cooperar diretamente no maior movimento de libertação já registrado na História e na mais profunda reação da consciência universal.