CARLOS DIEGUES: O TEMPO DA UTOPIA
Carlos José Fontes Diegues - o nosso Cacá - já nasceu assinalado pela brasilidade. Seu pai, Manuel Diegues Júnior, não apenas escreveu livros de referência sobre o folclore e as festas populares, como colecionou objetos e imagens que capturava com sua câmera fotográfica. Dentre seus talismãs, um facão de prata, recolhido pessoalmente por ele logo após uma fuga do bando de Lampião, cujas andanças Manuel cobria para o Jornal do Commercio, do Recife.
Outra figura fundamental da infância do menino Carlos Diegues foi Bazinha. Ela cuidava dele e de seus irmãos, em Alagoas, onde Cacá nasceu. Foi Bazinha quem lhe contou "que o Zumbi dos Palmares ainda vivia ali, perto de Maceió, escondido no meio da Serra da Barriga. E que o Zumbi era imbatível, imortal. E podia até voar."
Suponho que foi embalado por esses sonhos e símbolos que Carlos Diegues construiu sua geografia sentimental, tendo a leste o Oceano Atlântico, ao sul a república autoritária, mas modernizadora do Estado Novo, ao norte o país desconhecido das Amazonas e a oeste as ficções selvagens e poéticas do sertão. Tudo o que Carlos Diegues faz, como artista e intelectual, traz a marca do Brasil.
O menino Cacá vivia em total liberdade na Maceió de sua infância. Não lhe faltavam lagoas, coqueiro que dá coco, e praias, infinitas praias. Mas ele só saberia disso depois, ao reconstituir fragmentos do paraíso perdido: "(...) a Maceió da praia e da festa, da pelada na areia, que meus parceiros chamavam de "zorra", do circo na praça Sinimbu (...), da pesca de siri no rio Salgadinho (...) dos passeios de canoa pelas lagoas,) uma Veneza selvagem formada pelos canais que ligam Mundaú a Manguaba, com infindáveis coqueirais a margear ilhas e coroas (...)". Provavelmente, o menino Cacá só se deu conta das maravilhas que perdera quando seu pai foi transferido para o Rio de Janeiro, a capital da República.
Não que aqui fosse o pior dos mundos. Se fosse, Carlos Diegues não teria morado no Rio durante quase toda a vida. Só deixou a cidade em curtas temporadas. Ou para realizar e lançar seus filmes, ou acossado pela ditadura militar.
O Rio de Janeiro era uma graça. Pelo menos, no cinema americano. Tinha perto de um milhão de habitantes. Acabara de ser catapultado para o estrelato, graças à chamada política da boa vizinhança e ao estouro universal de Carmen Miranda, uma carioca nascida em Portugal. O menino Cacá, no entanto, só descobriria os encantos da mui leal cidade de São Sebastião alguns anos mais tarde. Na infância, fora do horário escolar, ele era mantido em casa, com seus irmãos, porque sua mãe temia o poder corruptor da cidade. E tinha toda a razão.
A cidade era bonitinha, mas cheia de defeitos. Um dos piores era a chuva. Volta e meia inundava tudo. O próprio Carlos Diegues, em seu livro "Vida de Cineasta", relembra uma marchinha de carnaval: "Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de dia falta água e de noite falta luz." Ainda assim, Cacá homenageou este burgo não muito civilizado em muitos de seus filmes, entre eles um dos primeiros, A Grande Cidade. E fez bem. Quando chega a meia estação, e não chove, o Rio é um alumbramento.
O menino Cacá sentiu saudades do paraíso, quando veio morar num apartamento em Botafogo. Teve dificuldade de adaptação à corte, como todos nós. Viu-se matriculado no Colégio Santo Inácio. E lá descobriu-se em discordância com a doutrina literária da escola. Seus escritores favoritos, por exemplo, eram Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego. No colégio, os três eram considerados "encarnações do demônio", demônio esse que era comunista e ateu, igualzinho a hoje. Também os maiores mestres da língua portuguesa, como Eça de Queirós e Machado de Assis, haviam sido banidos dos cânones jesuítas.
Como se não bastasse, Cacá foi docemente impelido a se tornar coroinha. Passou um semestre inteiro em regime de internato, aos 13 anos. O adolescente Carlos Diegues chorava com saudade do mundo lá fora. Ainda bem que não descobriu a vocação religiosa. Se tivesse continuado entre os jesuítas, poderia estar hoje no Vaticano. Talvez tivesse assumido o nome artístico de Francisco. Seria uma vitória para a cristandade, mas uma perda para a cultura brasileira.
O Santo Inácio tinha suas compensações. Era um colégio careta, como ainda não se dizia na época, mas era bom de conteúdo. O compositor Francis Hime, vizinho de carteira de Cacá, testemunha que ele era um dos primeiros da classe. Entre as atividades extracurriculares, havia o teatro. O menino Cacá tentou ser ator. Mas não tinha talento para o ramo, segundo seu crítico mais rigoroso: ele mesmo. Acabou encontrando refúgio na literatura. Chegou a participar da fundação da Academia de Letras do Santo Inácio, na qual escolheu como patrono o poeta Jorge de Lima - que se tornaria para sempre seu favorito.
O jovem Carlos Diegues dedicou-se ao conto e à poesia. Escreveu peças de conteúdo social. Escreveu poemas que chegaram a ser publicados no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, na coluna do poeta Mario Faustino. No dia da publicação, seu pai veio despertá-lo comovido, com o exemplar do jornal na mão. Foi a glória. O jovem Cacá sentiu-se consagrado.
Chegou a escrever belos poemas sob o influxo de Faustino e de seu ídolo, Jorge de Lima. Como este, que é seu poema favorito e começa assim:
"Na viagem ao sol o mar foi tarde
quando surgiu da foz e se fez navio
na viagem ao sol pelo horizonte
ao som das cinco e do inusitado porto
de onde partiu a floresta iniciando
a fuga com um buquê de panos alimentando
o parto da madeira à água substituída
ao fogo que impulsiona a casca do ferro
que ofendia a seda em direção ao sol."
Mario Faustino tornou-se, para o jovem Cacá, uma espécie de guru. E era de fato um Ezra Pound da nova geração, sem os mesmos vícios políticos do outro.
Nem tudo eram flores. Carlos Diegues deve ter percebido logo que as ideias de seu preceptor eram parecidas com as do Fausto, de Goethe. Como Fausto, Faustino navegava em esferas altíssimas. As coisas deste mundo lhe pareciam demasiado pequenas. Insignificantes. A poesia tinha que ter a dimensão espiritual da (Divina) Comédia, a grandeza de Os Lusíadas e o experimentalismo das últimas vanguardas. Tudo junto e misturado.
No mundo irrespirável de Mario Faustino, Carlos Diegues deve ter percebido que qualquer poema seria, na melhor das hipóteses, um grande fracasso. Segundo essa maldição distópica, era preciso destruir o passado para que se pudesse, a partir de suas cinzas, construir o futuro.
Depois de uma conversa desse gênero com Faustino, sobre a necessidade do rigor e da falta de complacência, o jovem Cacá Diegues resolveu romper com seu passado. Fez uma fogueira no quintal de casa, e nela queimou todas as suas peças, poemas, contos e roteiros. Hoje, se confessa arrependido de sua versão tropical da Fogueira das Vaidades. E declara: "desde então, nunca mais joguei fora nem mesmo bilhetinho."
Havia o encantamento pela literatura, mas havia também outro, igualmente fascinante. O menino Cacá se lembra da primeira vez em que foi levado ao cinema, ainda criança. E descreve o que viu na tela: "No quadrilátero pérola havia muita luz e nenhuma cor. Nele, as pessoas se vestiam de forma exuberante e se dirigiam umas às outras através de gestos largos, com palavras que eu nunca ouvira antes. Me dei conta de que antigamente o mundo devia ter sido preto e branco, e nele ninguém falava a minha língua."
O encantamento continuou quando o menino Cacá passou a assistir aos filmes do cinema de bairro. Adorava os de Walt Disney: Pinóquio, Fantasia, Bambi. É verdade que surgiram algumas contradições. Fascinado pelo cinema americano, o menino Cacá, futuro ideólogo da luta do cinema brasileiro contra o imperialismo ianque, chegou a torcer para a Metro Goldwin Meyer. Do mesmo modo como torceria, no futuro, para os Acadêmicos do Salgueiro. Voltava de Copacabana cantando na chuva, imaginando que fosse uma versão tropical de Gene Kelly.
Foi uma epifania. No cinema, Carlos Diegues encontrou a sua praia. De quebra, recuperou a liberdade que tinha em seu paraíso perdido. Podia escolher a história, os personagens, as paisagens. O herói e a mocinha de seu filme, como num filme de Hitchcock, podiam entrar num prédio na Cinelândia e desembarcar no Pão de Açúcar. Ou, se ele preferisse, podiam se mudar para outro planeta. Bye-bye, Brasil.
Outro acontecimento foi fundamental na vida de Carlos Diegues. Em 1956, ele foi chamado por seu pai para ir ao Teatro Municipal. Era a noite de estreia de um poema musical chamado Orfeu da Conceição. O poeta Vinicius de Moraes havia escrito o texto. O jovem Cacá assistiu à entrada em cena de um grupo composto só de atores negros, ocupando pela primeira vez o palco construído para celebrar a elite branca e o apartheid à moda brasileira.
Coube a Haroldo Costa, no papel de Orfeu, dizer a abertura: "São demais os perigos desta vida/ para quem tem paixão, principalmente/ quando uma lua surge de repente/ e se deixa no céu como esquecida." O espetáculo fora produzido por Vinicius com dinheiro poupado de seu salário no Itamaraty. Eram bons tempos em que a nossa diplomacia, nas horas vagas, produzia poesia, em vez de bravatas de republiqueta. Com exceção dos diplomatas aqui presentes.
A música de Orfeu da Conceição tinha sido escrita por um jovem chamado Antonio Carlos Jobim. O cenário, desenhado por um arquiteto chamado Oscar Niemeyer. A fina flor da cultura brasileira da época. O efeito desse novo Orfeu, simultaneamente moderno e romântico, sobre o jovem Cacá Diegues, foi uma explosão.
Carlos Diegues, como quase todos sabem, tornou-se um dos líderes do Cinema Novo, grupo formado por jovens como Glauber Rocha, David Neves, Paulo Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, entre outros. O patrono involuntário da turma era Nelson Pereira dos Santos. Cacá costuma dizer que o grupo tinha apenas três pequenas pretensões: mudar o cinema, mudar o Brasil e mudar o mundo.
Enquanto não se realizava o seu sonho, o jovem Cacá entrou para a PUC do Rio, em 1958. No mesmo ano o Brasil ganhava a primeira Copa do Mundo. O clima político nos Anos JK era ameno e democrático. Carlos Diegues foi lançado candidato à presidência do Centro Acadêmico e, numa aliança entre liberais, esquerda católica e alguns poucos comunistas, recebeu votação consagradora.
Mais tarde tornou-se redator chefe de um suplemento do jornal Diário de Notícias. Como a maior parte dos artistas da época, engajou-se na luta política. Fez parte do CPC, que reunia figuras como o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o poeta Ferreira Gullar, o diretor Augusto Boal, entre tantas pessoas admiráveis
Foi nesse caldo cultural que Cacá Diegues fez as suas primeiras aventuras cinematográficas. Depois de dois curtas curtíssimos, filmou um dos episódios da coletânea "Cinco vezes favela", chamado "Escola de samba alegria de viver". Como o título sugere, é a história de uma escola que não tem dinheiro para desfilar no carnaval. Pelo menos no reino do samba, não mudou muita coisa de lá para cá.
Ganga Zumba foi seu primeiro longa-metragem. O filme conta a fuga de um grupo de escravos para Palmares. Apesar da precariedade de recursos para a produção, o resultado é primoroso. Entre os participantes do elenco, Lea Garcia e Angenor de Oliveira, mais conhecido por Cartola, um dos orixás da música popular brasileira. No papel principal foi escalado um rapaz bonito, recém-chegado da Bahia. Seu nome era Antonio Sampaio, que mais tarde se tornaria o nosso Antonio Pitanga.
Quando Ganga Zumba foi lançado, o Brasil vivia em efervescência total. Na música, a Bossa Nova inaugurava os girassóis da segunda dentição. Na literatura, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, João Cabral e Clarice Lispector estavam na ponta dos cascos. No cinema, dois filmes brasileiros foram escolhidos entre os oito concorrentes do Festival de Cannes. Éramos o país da arte, do futebol e do carnaval. Nossos problemas sociais eram graves, mas tínhamos certeza de que saberíamos resolvê-los.
Naquela altura do campeonato, quase todo o mundo imaginava que o país caminharia para uma socialdemocracia à europeia, ou para o socialismo/moreno - para usar a expressão criada anos depois pelo futuro acadêmico Darcy Ribeiro. Todo mundo imaginava que seríamos felizes para sempre. Doce ilusão.
No dia 31 de março de 1964, como diriam Shakespeare e a cantora Maysa, esse admirável mundo novo caiu.
Em seu livro "Vida de Cinema", Carlos Diegues faz uma autocrítica: "Talvez tivéssemos ido longe demais, acreditado demais, ousado demais. Na ação política de minha geração, não era apenas a nossa pura vontade que nos indicava o que fazer. O "vento da história" soprava a nosso favor, os livros que líamos e os mais velhos em que confiávamos nos garantiam que estávamos certos."
Mas a reflexão de Cacá jamais abdica de manter um pé plantado no sonho: "(...) Como o modernismo e outros movimentos da primeira metade do século XX, tínhamos um projeto abrangente que ia acabar na própria ideia de mudar a vida. Isso pode ter sido (e foi) uma ilusão, mas não é por que as utopias não se tornam realidade que os que as pensaram se tornam umas bestas. São as ideias contidas nas utopias que, mesmo quando elas não se realizam plenamente, mais cedo ou mais tarde mudam o mundo mais um pouquinho. O que nos leva ao paradoxo de que, mesmo quando fracassadas, as utopias são sempre vitoriosas. A realidade é que foi mais burra do que elas."
Ele observa também que, apesar do golpe militar de 64, a produção cultural do Brasil continuava fervendo. Nesse mesmo ano, Vianinha, Boal e Gullar estrearam o espetáculo Opinião. O Cinema Novo era cada vez mais brilhante. A safra de compositores continua sendo das melhores da nossa história.
Até que, em dezembro de 68, acabou-se o pouco que restava de justiça e liberdade. Veio o Ato Institucional número 5. Acabou-se o futuro.
A ignorância chegou ao poder. Carlos Diegues relata que o futuro acadêmico Ferreira Gullar, além de preso, teve um ensaio sobre o cubismo recolhido. As autoridades acharam que o cubismo vinha de Cuba. Acrescento que o futuro acadêmico Antonio Houaiss, que hoje mora em nossos computadores, teve muitos exemplares da enciclopédia Delta Larousse apreendidos. Pensaram que era propaganda russa. Esta Academia, para as autoridades, é um reduto de perigosos ideólogos comunistas.
Carlos Diegues e a cantora Nara Leão, com quem estava casado desde meados dos anos 60, receberam ameaças, trazidas por amigos como Chico Buarque e Gilberto Gil. Foram todos aconselhados a deixar o Brasil.
Foram anos terríveis de exílio. Carlos Diegues, que é profissional da esperança, ficou triste. Mas hoje é noite de festa, não vamos lembrar esse baixo astral.
Em resposta aos tempos negros, Cacá fez de seu cinema um lugar de celebração. Primeiro, a celebração da cultura afro-brasileira. Os filmes de Cacá criaram muitas pontes entre as duas margens desse rio chamado Atlântico, como chamou o acadêmico Alberto da Costa e Silva. O mais explosivo deles foi Xica da Silva, que reinstaurava de vez a alegria num tempo que parecia fadado às trevas. Um filme a um só tempo africanista e libertário, a história de uma escrava que compra sua liberdade e conquista a cidade de Diamantina, reencarnada por nossa Zezé Motta.
Quando se escrever de novo a História do Futuro e se misturarem todas as eras, os cronistas vão dizer que Carlos Diegues era primo de Castro Alves e Luiz Gama. E que era cavalo de santo das Vozes d'África. Para evitar mal entendidos, antes que se falasse tanto em lugar de fala, Cacá e Renata Almeida Magalhães, sua esposa, musa e patroa, já tinham inventado a refilmagem de "Cinco Vezes Favela". Desta vez com roteiros e diretores oriundos das favelas cariocas.
Seria injusto, no entanto, falar de Carlos Diegues só como cineasta e roteirista. Ele é também um dos principais pensadores do mundo das artes brasileiras. Em meio a tantas figuras brilhantes e férteis do Cinema Novo, sempre se destacou como intelectual. Sempre afirmou a liberdade de pensar, mesmo quando era fácil imaginar que a cultura era mero espelho das relações econômicas, como rezava a Teoria do Reflexo. Cacá já reivindicava o direito de pensar e de fazer arte sem a camisa de força dos dogmas e doutrinas.
Mais de uma década mais tarde, já nos tempos da abertura política, quando se cobrava dos artistas um engajamento acrítico, foi Carlos Diegues quem criou o conceito de "patrulha ideológica". Conceito esse que servia para nomear aqueles que não admitiam que se sonhasse fora da casinha. E hoje, paradoxalmente, a ideia de patrulha ideológica pode servir pelo avesso, para designar aqueles que pensam que a liberdade é uma invenção do demônio e a igualdade, de uns franceses doidos varridos.
Por mais que Carlos Diegues tenha se consagrado no cinema, não apenas como diretor mas como produtor, leitor e incentivador dos filmes de seus companheiros, sua pátria originária é a literatura. Não é exagero dizer que ela foi protagonista - secreta ou declarada - de quase todos os seus filmes.
Uma das aventuras literárias de Carlos Diegues foi a adaptação de "Tieta do Agreste", de Jorge Amado. Cacá e Jorge haviam se conhecido no exílio, e tinham combinado de fazer um filme juntos.
Um dia Jorge telefonou de Paris, ao lado de Sonia Braga. Os dois propunham a Cacá que adaptasse Tieta. Claro que ele aceitou. O problema era traduzir aquela odisseia da baianidade para o cinema. O romance tinha seiscentas e tantas páginas, e um longa-metragem, no máximo cem.
Como o acadêmico Jorge Amado jamais se permitisse participar da adaptação de seus próprios romances, ocorreu a Cacá convidar para seu parceiro na adaptação o acadêmico João Ubaldo Ribeiro, a quem considerava "uma mistura misteriosa de Jorge com Machado (de Assis), um Jorge mais sofisticado e um Machado mais sem-vergonha." Em suma, era mais uma trama sinistra dos subversivos desta Academia, sendo Machado, provavelmente, o mais oblíquo e dissimulado.
Jorge adorou a ideia. Era padrinho, compadre e amigo de Ubaldo, além de admirá-lo desde que o conheceu jovenzinho, na casa de seu pai, Manoel. Cacá telefonou para João Ubaldo, em tom grave, dizendo que precisava encontrá-lo para uma conversa séria e urgente. Ubaldo era docemente paranoico. Ficou aterrorizado. Com imaginação de ficcionista, formulou as hipóteses mais terríveis para a suposta motivação da conversa.
Quando Cacá chegou ao apartamento de Ubaldo, na Rua General Urquiza, achou o dono da casa da casa trêmulo, à espera do pior. Antes que começasse a dizer qual era a sua proposta, João perguntou, em tom digno de um personagem de Dostoievski: "O que é que você quer de mim?" Cacá esclareceu que queria que Ubaldo trabalhasse com ele no roteiro de Tieta do Agreste. Só então Ubaldo, que além de paranoico era hipocondríaco, respirou aliviado e disse: "Só isso? Que bom! Pensei que você fosse me pedir um rim para transplante!"
Pouco depois de Tieta, Carlos Diegues resolveu encarar o o desafio de adaptar Orfeu da Conceição. Já tinha conversado a respeito com Vinicius. Ambos tinham antipatia da versão anterior, chamada Orfeu Negro. O filme tinha ganhado a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de filme estrangeiro, mas grande parte dos intelectuais brasileiros achava que o resultado era uma espécie de macumba pra turista.
Imagino a alegria de Vinicius quando Cacá lhe propôs uma série de novidades: Orfeu, desta vez, viria do subúrbio carioca e se apaixonaria por uma Eurídice da favela. Depois, Orfeu se confrontaria com traficantes pesados de droga, que ainda não existiam nas favelas nos anos 1950. O próprio Vinicius, aliás, havia posto na primeira edição de sua peça uma nota em que pedia que o texto fosse adaptado às futuras circunstâncias da cidade. A adaptação de Cacá era perfeita para traduzi-las.
Em clima de entusiasmo, Cacá foi para os Estados Unidos lançar Bye-bye Brasil. No caminho de volta, dentro do avião da Varig, abriu o jornal e deparou-se com o anúncio da morte do poeta. Foi uma comoção. No cemitério São João Batista cerca de mil amigos de Vinicius cantavam "Se todos fossem iguais a você", aos prantos. Tom Jobim, diante da tragédia sentimental e cinematográfica, comentou com Cacá: "Vinicius não é mesmo de confiança. A gente vira as costas e ele morre."
O "Orfeu" de Carlos Diegues se consumou alguns anos depois. O cenário era um novo Rio de Janeiro, dominado pelo tráfico e tendo em plena gestação o ovo da serpente das milícias. O lirismo ficou por conta das imagens, da Canção de Eurídice, cantada por Toni Garrido e composta por Caetano Veloso. Para introduzir o novo episódio literário, precisamos voltar ao ano de 1981. Cacá Diegues visita seu amigo Glauber Rocha na cidade de Sintra, em Portugal, onde encontra Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro. É nessa ocasião que Ubaldo dá a Cacá um exemplar de seu "Já Podeis da Pátria Filhos."
O livro é um espetáculo de oralidade. Cada conto é narrado por um nativo da ilha de Itaparica. O poder de criar verossimilhança é tamanho que alguns personagens, cujos nomes inspiraram as histórias de ficção, juram que elas de fato aconteceram. Embora todas fossem produto da imaginação do João Ubaldo.
Carlos Diegues ficou encantado pelo livro. Pensou em fazer dele um filme-rapsódia, uma espécie de Canterbury Tales ou de Decameron. Depois percebeu que não havia mundos nem fundos para produzir um painel dessa magnitude. Concentrou-se num único conto, chamado O Santo que não acreditava em Deus.
Muita gente aqui deve ter assistido ao filme "Deus é brasileiro". É a história das vicissitudes do pescador Taoca, até seu encontro com Deus, disfarçado de Antonio Fagundes. Um Deus muito mal-humorado, que parece desembarcado do Velho Testamento, e já começa por ensinar ao pescador, disfarçado de Wagner Moura, com quantos paus se faz uma canoa e com quantas bofetadas se domina um sujeito meio ateu e muito à toa.
Deus faz uma peregrinação à procura de um santo que possa tomar conta do universo, enquanto Ele, Deus, tira férias. É uma viagem de iniciação conduzida por Carlos Diegues. Nem os personagens nem nós, espectadores, saímos dela idênticos. A história nos provoca a compreensão de que o outro é sempre o outro. Precisamos compreendê-lo em sua diferença.
Carlos Diegues fez muitos filmes notáveis, que muitos de nós guardamos na memória. Chuvas de Verão, Bye-bye Brasil, O maior amor do mundo. Sem esquecer Dias melhores verão. Título esse que nos sugere, mais uma vez, a esperança de que haja porvir neste país cujo futuro foi encapsulado numa profecia de Stefen Zweig. Porque às vezes parece que estamos condenados a um futuro que não chega e um passado que não passa. Mas, como diz Cacá, dias melhores virão.
Enquanto esses dias não chegam, Carlos Diegues acaba de lançar O Grande Circo Místico. O filme marca o regresso ao princípio de sua odisseia e a seu poeta favorito, Jorge de Lima. O poema conta a saga de uma família dedicada ao circo. São cinco gerações, cujos feitos são narrados de modo prosaico e misterioso pelo poeta.
Parecia uma aventura condenada ao desastre. Como transformar em imagens os delírios poéticos de Jorge de Lima? Como fazer de suas metáforas alguma ação que pudesse se traduzir em linguagem cinematográfica? Pois Cacá Diegues e Renata, com a cumplicidade do roteirista George Moura, conseguiram fazer de O Grande Circo Místico um desfile de maravilhas. Da primeira vez em que assistimos ao filme, ficamos todos perplexos: era uma espécie de Jean Renoir, com sexo, drogas e xaxado.
Ao vê-lo, parece que o vaticínio de Jorge de Lima se realiza e se traduz em cinema: "Há sempre um copo de mar/ para um homem navegar."
É um cinema-poesia. Alguma coisa que só de vez em quando temos o privilégio de admirar. Uma emoção tão alegre, dolorosa e brasileira que só poderia ser encontrada no olhar de Grande Otelo. Finalmente, Carlos Diegues chegou à conjugação total do cinema com a poesia, como era seu projeto desde a juventude.
É muito natural, portanto, que Carlos Diegues venha a ocupar o seu lugar na Academia Brasileira de Letras. E aqui nós te saudamos, como dizia um bardo inglês, por toda a eternidade e mais um dia. Mesmo que a eternidade seja só a comemoração deste momento. E, por mais que a realidade seja sua parceira, meu caro Cacá, seu tempo é sempre o tempo da utopia.