Senhor Bernado Élis,
Homem não sois de longas caminhadas. E goianamente dizeis, à maneira do Vicente de O Tronco: “Não dou conta de andar a pé.”
Certa vez, em Brasília, saímos a caminhar. Pouco depois, notei que não éreis nada velocípede; e a menos de um quilômetro de donde partíramos, melancolicamente destes o prego. Tamanha mesquinhez de capacidade ambulatória levou-me a dizer: “Mas, Seu Bernardo, como você desmente a Euclides da Cunha! A julgar por você, o sertanejo é, antes de tudo, um fraco.”
Nas Letras, porém, tendes feito boa caminhada: sem pressa, sem botar a alma pela boca, mas com segura obstinação.
Em Corumbá de Goiás nascestes, republicamente, no dia 15 de novembro; chegastes a sessentão há menos de um mês. (Apesar da carga do “ão”, sinto o sessentão mais condizente com o espigado que sois, com a direitura do vosso porte, ido que o arrastado “sexagenário”, mais acorde, é certo, com a moderação de vosso andar). Trocais aquela data cívica no poema “O Homem Que Fazia Anos no Dia Sete de Setembro”, onde contais que
No dia de meus anos
a bandinha
saía pra rua de madrugada,
tocando matinas.
A gente acordava com o estrondo dos foguetes,
espantando os morigerados pombos da torre da igreja.
Botavam bandeira na Prefeitura,
no correio,
na cadeia.
Havia discursos, passeatas, etc.
– Tudo por sua causa – dizia meu pai,
e eu ficava intrigadíssimo
porque ninguém mais era igualmente festejado.
Hoje, como conheço História do Brasil,
mudei a data de meus anos,
que é o dia mais triste do mundo.
Isto se lê no segundo, cronologicamente, de vossos livros: Primeira Chuva, de 1955 (11 anos posterior à vossa estreia, com Ermos e Gerais). Vossa única obra poética, apresentada – e bem! – pelo escritor goiano José Godói Garcia, e oferecida, em primeiro lugar, a “uma flor chamada Violeta, por tudo que, podendo ela ter sido, não foi por minha causa”. Presente se acha nesta sala a flor; vossa galanteria namorada mostra, com requinte de humilde e modéstia, quanto lhe deveis.
Livro menor, escrito, não raro, num tom regionalista abarrocado, em que se mescla oralidade e certo preciosismo, e tendência para a zombaria, o poema-piada; mas onde se nota o gosto da paisagem, do descritivo, do folclórico, do histórico – da terra; e o lado social, presente em, por exemplo, “Brasileiro Ouvindo Rádio”. De modo geral, falta-lhes, a esses versos, o grande ímpeto, o voo da transfiguração poética. A Primeira Chuva é também oferecida ao avô; a Rosa, que dá título a um de vossos melhores contos; a um grupo de amigos; e, por fim, poeticamente,
[...] para o vento tão cheio de mistérios, para as nuvens na sua grandiosa serenidade, para os morros que parece estão escutando, para as águas que a gente nunca sabe de onde saem e como é que ainda saem, para uma lagartixa fouveira que mora numas pedras perto do quaradouro de roupa.
No poema recitado há pouco, contais ser por vossa causa aquela festança. Era patranha de vosso pai, homem dado a invenções como essa, e também a invenções líricas (deixou dois livros de versos). A Poesia de Erico (e não Érico) Curado – homem de boas letras, versado e conversado em poetas e prosadores, admirador de artistas, além de grande contemplador da Natureza – transita entre fogachos de Parnasianismo retardatário e umas tintas de Simbolismo, com discretíssimos toques modernistas – tudo isto a serviço de nítido fundo romântico.
Os Fleurys-Curados são, dizeis “gente sedentária por excelência”. E vosso pai, depois de, jovem, andar todo o Brasil, fixou-se em Corumbá, e residiu 36 anos na mesma casa, donde viajou a Goiás apenas quatro ou cinco vezes. Compreende-se, pois, que não tenhais o gosto especial da locomoção... Desasnado fostes por vosso pai – mau professor, impaciente, ametódico – e por vossa mãe, D. Marieta Fleury de Campos Curado, pessoa de muita sensibilidade e imaginação, que estudou no colégio das freiras dominicanas, e que ora aqui se encontra, presença venerável, na glória dos anos oitenta de sua idade, lúcidos e fortes. Com ela muito progredistes no estudo, vós e vossos irmãos.
Apesar das “lamúrias e pragas” paternas, a vida em Corumbá vos era um céu aberto. Festas o ano inteiro; andáveis da casa de um parente para a de outro parente. Festas de São Sebastião; a “coresma” e a Semana Santa; as folias; Santo Antônio, São João e São Pedro; romarias; Natal. Mas, o melhor de tudo, em Corumbá: o rio. O Rio Corumbá, os “longos banhos”; longos, sim, porém somente nos meses que têm erre: de maio a agosto, nada de banho.
Descendeis do Anhanguera, em vossa família há um conde, e a ela pertence o primeiro general brasileiro, que biografaste (Marechal Xavier Curado, Criador do Exército Nacional). Eis uma das razões por que vossos avós não gostavam que os meninos saíssem à rua. Tínheis como refúgio o quintal, e cuidáveis das cabras, “uma nação de bicho muito simpática, delicada e inteligente”. Bons tempos: almoçava-se por volta das nove, jantava-se às três e meia, e às nove da noite, ao toque da corneta nos dois quartéis, e do pequeno sino da cadeia, preparava-se o chá, acompanhado de pão com manteiga – e todos para a cama.
Bem cedo compusestes umas quadrinhas, e até fizestes um conto fantástico, baseado no “Assombramento”, de Afonso Arinos, de mistura com histórias de O Tico-Tico.
Íeis pelos 20 anos quando conhecestes A Bagaceira e José Lins do Rego, que vos acenderam na ânsia de “contar coisas” como eles contavam. Duma assentada elaborastes dois romances: mas onde coragem de os contar, e muito menos de mostrá-los, a quem quer que fosse? O pai era exigentíssimo; os professores, esses “se encastelavam numa importância idiota, afirmando que romance moderno era pornografia”.
Contudo, Sr. Bernardo Élis, tínheis de atender à vocação; tínheis de prosseguir a caminhada.
Não vos foi rápida a ascensão; lenta foi ela, sem ser penosa. Não voastes: sois da linha daqueles que, a exemplo de um Machado de Assis, vão construindo, com pertinácia e confiança, os andares de seu edifício. Haveis trabalhado feio e forte nessa construção; nessa autoconstrução.
Vossos Ermos e Gerais, histórias tantas vezes bárbaras, são menos uma realidade que uma promessa, embora o que há de real alcance as alturas de um conto como “Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá”, e, sobretudo, de uma novela obra-prima, “André Louco”. Certos efeitos de ironia fácil, o abuso de empregos convencionais, de ocasião e de gosto duvidoso, que dais a algumas palavras – “analfabeto” e “cretino”, por exemplo –, e mais a escolha e tratamento de alguns temas, tudo isso mostra que ainda procuráveis o vosso caminho. De que já éreis um escritor, porém, não há dúvida: despertastes, com aquela estreia, o entusiasmo de Monteiro Lobato e – mais – de Mário de Andrade.
Paro aqui um pouco (como num prosseguimento do estado de espírito que me assaltou no elaborar deste discurso), paro aqui um pouco, Sr. Presidente, indeciso entre falar dos outros volumes bernardianos por ordem cronológica e tratar dos outros dois livros de contos antes de chegar ao romance, que os antecede. Decido-me pelo sacrifício da cronologia.
Antes de mais nada, palavras de Alceu Amoroso Lima acerca da ficção do novo companheiro. Palavras consagradoras:
Acostumou-se, desde menino, a falar a língua do povo e a sentir de perto o drama dos pobres, dos injustiçados, dos perseguidos. Assimilou tudo isso de tal modo, tanto a realidade social inumana, como a expressão linguística extremamente humana daquele povo, que no dia em que a sua vocação literária irreversível despertou, o que nos deu foi ao mesmo tempo uma obra de verdade social impressionante e uma criação linguística de uma beleza e de uma originalidade absolutamente singulares.
O estudo do seu estilo já está em ponto de merecer uma análise linguística científica, tal a sutileza da sua oralidade... É uma fusão rara entre o falar culto e o falar popular.
Concordo com tudo isso, menos o fim. Essa fusão operada por Bernardo Élis não me agrada de todo, a mim que, há 26 anos, começava o estudo introdutório à minha edição crítica de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Neto, pelo capítulo “Pintura, e não fotografia”, salientando, com apoio, aliás, em Mestre Augusto Meyer, “a feliz combinação da maneira literária com a linguagem oral – a fala espontânea e viva dos seus heróis”. Salientando e louvando vivamente essa combinação, não só em Simões Lopes, mas, também, no velho Afonso Arinos, em José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Luís Jardim, e outros mais – todos estes, a meu ver, pintores; e censurando um Coelho Neto e (bem menos) um Valdomiro Silveira – menos pintores que fotógrafos.
Sei que ninguém tentou mais corajosamente, mais inteligentemente, do que Bernardo Élis, a fusão da fala culta com a popular; mas, ainda assim, faço-lhe algumas restrições.
Lembro, a esta altura, o pensamento de Afonso Lopes Vieira a esse respeito.
“Iludem-se decerto” – diz ele na Nova Demanda do Graal – “os escritores que, por amor da verdade regional, empregam formas dialetais. A Linguagem é uma e é com essa mesma que os verdadeiros artistas ‘sugerem’ o falar do povo.”
E, depois de lembrar que Camilo, o “mais provincial” dos autores portugueses, pôs na boca de personagens populares a língua comum, assim conclui:
“Quando muito, um itálico completa, e então com que força!, a sugestão com um som.”
Exagero à parte, em princípio é justa a observação de Afonso Lopes Vieira.
Porém o santo de Bernardo é forte, Sr. Presidente. Eu, que estou aqui a opor-lhe algumas reservas, se pego a reler um conto seu, ou o seu romance, sinto que há no diabo do homem algo de um poder mágico. É a magia do criador poderoso que ele é. Criador e estilista dos grandes, dos altos, dos sérios deste País.
Sr. Presidente, srs. acadêmicos, senhores e senhoras,
Passando a falar do segundo volume de contos de Bernardo Élis, Caminhos e Descaminhos (1965) cronologicamente a sua terceira obra, principiarei citando trecho da carta que lhe endereçou Guimarães Rosa, com data de 21 de maio de 1965. Ei-lo:
“E deliciei-me com o Caminhos e Descaminhos. Formidável aquele conto..., dos índios, da indiazinha com a veadinha. Ninguém, em país nenhum, nenhum tempo, parte alguma, escreveu coisa melhor!”
O conto, a que Guimarães Rosa, citando-o de memória, troca o nome, pondo, interrogativamente, “Aqui, ali, acolá?”, chama-se, em verdade, “Ontem, como hoje, como amanhã, como depois”. Que direi dele, depois do que disse Mestre Rosa? Desde a ambientação, o cenário da tragédia, até a tragédia mesma, a morte da indiazinha Put-Kôe, de quem se quer ver livre o cabo Sulivero, tudo é incomumente grande. Que prosa quente, animada, cósmica, a dos períodos iniciais acerca do Tocantins! Citarei apenas um pequeno passo:
Donde viria o rio?
Do fundo fofo da mata, onde as borboletas adejam lampejos azuis, vagos e sonsos; do alto da serra, onde a canela-de-ema é um gesto de sede; das pesadas nuvens de chuva esfiapando-se nas pontas de serra; fiapinho de prata merejando numa encosta, ao pé de buritis e samambaias.
Ambientado o conto, vem a ação, com toda a força verossimilmente humana, toda a grandeza e miséria, desenrolada entre a índia, o tapuio seu pai, e o cabo.
O desfecho:
– Então...! Faz aí uma continência pro praça aqui, ordenou Sulivero...
Put-Kôe empertigou-se, levou a mão direita à altura da fonte direita, encostou bem o cotovelo no busto, procurou encolher o ventre e ressaltar os peitos, como Sulivero exigia.
Quando estava nessa postura, o cabo ergueu o revólver, deteve-se em pontaria numa insignificância de tempo, e o baque do tiro sacudiu a pasmaceira da tarde.
Nesse átimo, Put-Kôe, que levantara o semblante para fixar sorridente o cabo, desmanchou rapidamente o riso, numa dolorosa expressão de surpresa. Seus olhos tiveram um lampejo de relâmpago e ela engoliu em seco, dando à feição um ar de quem perscrutava algo que se partia por dentro de seu próprio peito. Ficou tesa uma fração de segundo, para depois vergar os joelhos, girar em torno de si e sair no solo do porto.
Tento suster a emoção à medida que, lendo uma parte, relembro o conjunto. Ponho praticamente no mesmo nível dessa a história da “Moagem”, patética, pungente a mais não poder, e com excelentes efeitos de claro-escuro.
Mas... “Uma Certa Porta” pede passagem. Talvez apresente certo exagero barroco; mas pode entrar na categoria das obras-mestras. Ei-lo a começar:
Entre um pulo e um coice, eriçando a crina, o cavalo corcoveia, mete a cabeça entre as patas, sacode os freios, um relincho e outro pincho, eis que vou às nuvens e a sela me foge, refoge o estribo e me estrepo e me atrepo, me agarro no vento: embaixo são pedras e patas e pedras e pontas de puas.
– Uf!
Que escuro! Adonde será que estou? Na minha cama, na minha casa? Onde a porta? Hum, será que o cavalo... Zumbi zumbindo fininho, silvo assobiado de locomotiva, uma fresta tímida de luz. Baque redondo de pedra em poço fundo – ponto incerto clareou, sumiu, agora o coração batia com força e a boca tinha um gosto de goiaba: meus músculos tremiam.
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Por fim, uma candeia desencadeia e bruxuleia e dela emerge o mundo inteiro: no alto, o telhado chato, caibros e ripas em xadrez, as grandes telhas coloniais irregulares, tudo indo e tudo vindo, conforme ia e vinha a chama inconstante. Até meia altura sobem as paredes nuas e onduladas; daí para cima é o domínio comum da luz do quarto vizinho, onde a candeia boceja com as trevas e os morcegos. E cambaleia.
Além de apresentar um belo polissíndeto a revelar uma das qualidades fundamentais da expressão do autor – a exação no emprego dos verbos, que é, aqui, prodigiosa, lembrando o Vieira da página famosa do estatuário, o primeiro período, com seu ritmo quebrado, sustado, sincopado, brusco, é prodigiosamente sugestivo dos movimentos do cavalo e da alienação onírica. Confundem-se a realidade animal e o estado de sonho. E as aliterações e as rimas, sugerindo repetição, servem prodigiosamente de realçar o estado alucinatório da personagem e dos animais. A excitação sexual gera a obsessão, a ideia fixa; e a base da ideia fixa é a repetição.
Sr. Bernardo Élis,
Chama-se Veranico de Janeiro a última de vossas coletâneas de contos, conquistadora, em 1965, do Prêmio José Lins do Rego (instituído pela Livraria José Olympio), ao qual naquele ano concorreram nada menos de 76 originais. Dele escreve Herman Lima, prefaciando-o, que “tira o fôlego, desde as primeiras páginas, tudo nele é força telúrica, imprecação de denúncia, brutalidade da natureza conluiada com o homem, na martirização do homem, na carência de alma, naquela fria maldade inelutável do meio – vida e gente”.
“A Enxada” é o mais aclamado, talvez, entre os vossos contos, sobretudo (creio) pelo seu altíssimo teor e substância social, pela extraordinária pungência que o assinala. É um ferrete. Conto rico, soberbo, mas igualado por outros – não, porém, no volume do Veranico. Aqui ele se alteia solitário; logo abaixo, a história humaníssima de Rosa.
Rosa é um pedaço de natureza. Uma força da natureza. No conto que lhe traz o nome, não só os seres humanos, mas a natureza toda, animais, vegetais, coisas, são personagens. Página impressionante, de eminente poder descritivo. Toda aquela armação de tempestade é antológica; antológica é a história inteira.
Os pios aflitos dos sabiás-de-rabo-mole “varavam o coração de Rosa e punham em suas feições uma sombra de bruteza e dor”.
“Rosa não queria ganhar nada. Rogava somente um canto pra mode dormir, um tiquim de comida mode não morrer de fome”. Ficava “um tempão danado quieta, na cozinha, numa quieteza tão humilde e vegetal que a gente tinha a impressão de que ela se dissolvia no ambiente”.
Por último, convém lembrar “O Padre e um Sujeitinho Metido a Rabequista”. Conto de ação algo lenta, lenta de caso pensado; excelente urdidura. Boa figura a do Monsenhor; e a de Cigana, mula manhosa, empacadeira, afinal domada pela paciência, montada em seu lombo, dos cem quilos do vigário, de vista presa na leitura do livro de horas.
“Romance de protesto”: a O Tronco assim chamou Francisco de Assis Barbosa. E é verdade: um romance de denúncia e de vivo protesto da primeira à última linha. Depois de lembrar que a Literatura do Nordeste alertou os governantes “para o problema não só das secas, como da espoliação e da miséria das populações marginalizadas de uma vasta região brasilera”, acrescenta o crítico:
“Agora chegou a vez do Oeste. A Literatura enche o vazio da história. Pelo menos, os escritores do tipo de Bernardo Élis mostram que são menos alienados... do que os historiadores, a grande maioria dos historiadores omissos.”
Desse livro áspero e forte disse Guimarães Rosa havê-lo relido com a mesma admiração com que o lera, admiração “de quem se entusiasma com coisa verdadeira, bela, palpitante, nova”.
A narração é vivíssima. Narração, direi, nutrida, parodiando a expressão “fogo nutrido”, que, em linguagem militar, designa o fogo forte e ininterrupto. Em dados momentos, a vivacidade é tanta que se verifica uma intersecção de planos do discurso – o indireto e o direto – operada insensivelmente, a bem dizer:
“Sargentos, cabos e alguns civis agarravam os homens acovardados, metiam-lhe tapas na cara, pontapés e botavam o dito-cujo de arma na mão, numa seteira qualquer.”
Está falando o autor. (Entre parênteses: é de notar a curiosa silepse de número). E imediatamente, sem indício algum de mutação de plano, o que vemos é isto:
“Com pouco, ‘olha’ jagunço por cima dos muros, passando correndo com sua carreira curta e rápida”.
Vinte linhas além, nova interferência:
“De repente [está com a palavra o narrador], ‘vigia’ aqui um bando de jagunços investindo.”
Certo dia um desafeto do facinoroso Abílio Batata pediu-lhe paz. Abílio prometeu atendê-lo em troca da fazenda e gado do adversário, tudo isso com recibo passado como se fosse compra e venda. O adversário concordou.
“Recebidos os bens do homem, Abílio Batata fez um sinal para Roberto Dorado, que pegou o dito-cujo, a mulher, os três filhos, amarrou tudo nos paus do curral e dizem que o próprio Abílio foi matando um a um.”
Lei... Que é isso de lei para o velho Pedro de Melo? Ele que responda: “Lei, código... Teve lei para Vigilato? Teve lei pra Norato? [Ele mandara matar os dois.] Lei é para quem está de riba. Pra quem está no chão é pau no vão das orelhas, home!...”
E eis, de toda essa concepção e sistema de vida, algumas consequências, pintadas com realismo intenso, não raro brutal:
Pelos fundos dos quintais e na grotinha os homens mortos inchavam, iam ficando empanzinados, arrebentavam os cinturões com um estouro fofo, como se fosse jenipapo caindo. As varejeiras eram tantas que ninguém suportava. Os ovos surgiam em cachos brancos nas ripas, nos caibros, nas telhas, caindo no chão, nas panelas de comida, nos pratos.
A pobrezinha da Brasica, “coitadinha, pegou a feder no quarto. Então a velha [Aninha, mulher do Pedro de Melo] chamou Pedro-Papo e mandou enterrar a menina junto à porta da cozinha, numa cova rasa, feito um bicho de casa, um sabiá ou periquito”.
Desse largo mural de misérias – bravura e covardia, perversidade, ignorância e cupidez, ausência de horizonte moral e intelectual – emerge a figura de Vicente, que, no remate da obra, encarna o aceno, vago, da esperança. No tumulto das suas ideias, uma coisa “lhe dizia que nem tudo resultara inútil. Do sangue derramado, da miséria, da dor, das lágrimas espalhadas nas terras do Duro, uma vida melhor iria despontar”.
Busquemos, agora, Sr. Bernardo Élis, ressaltar aspectos de vossa obra tomada em conjunto: observações de vária espécie feitas ao longo dos volumes de que ela se compõe. Vejamos um pouco das condições naturais de vida. Uma delas, a escassez do sal. Ali, o sal é preciosidade; e os homens ou se resignam à falta dele, ou lhe dão por sucedâneo a pimenta, com que temperam fortemente a carne; os animais esses chegam a extremos assim:
Alarmando a escuridão com seus relinchos, de beiços arregaçados, coices e correrias lúbricas atrás das poldras, [...] vinham os pastores lamber os cantos dos muros onde os homens vertiam água ou os lugares em que haviam deixado cair algumas pedrinhas de sal.
A admirável descrição seguinte apresenta aspecto mais grave:
O sertão é triste e feio em julho, as queimadas borrando o céu de fumaça, a vegetação já amarelecida, crestada pelo sol e pelo fogo, as árvores despidas de suas folhas pelo rigor da seca. Pelos ermos e descampados o vento galopa seu febrento bafo de morte, arrastando folhas secas, levantando a poeira fina, erguendo- a nos espaços em funis de redemunhos.
Nessas terras incultas, de natureza hostil – onde não há relógio, e o tempo é calculado “pelos pios das aves, pelo aspecto do céu, pela posição do Sol, da Lua e das estrelas”, por vezes a prostituição convizinha em boa paz com a crença religiosa: “a mulher da vida falava em atirar-se no rio por causa que precisava de mandar fazer um vestido novo para a festa do Divino Espírito Santo e os homens não a procuravam.”
E é comum que ainda se veja na instrução (como no tempo de minha avó paterna, D. Cândida Rosa) um grave perigo, capaz de pôr em xeque o regime do trabalho cotidiano e a honra das famílias. Um dos que assim pensam é Casimiro, do conto “Moagem”. Para ele,
[...] o diabo do fazendeiro era um homem besta como o cão. Mandou me chamar um professor na rua, fez uma sala, botou escola e pegou a exigir que meus filhos fossem estudar! Ora, tem graça! Se tudo quanto é menino vai estudar, quem é que amanhã vai pegar no duro, hem? Me diga. Quem é que vai ajudar a manter a família, hem? É o Governo?
Do seu canto, Jeromão se babava de gozo: – Aquilo é que era pensar certo!
– Menina fêmea, então meu Compadre Jeromão, essas daí não podem aprender a ler de jeito nenhum dessa vida. E só pra mode tá escrevendo bietim pa os namorado e xujá um bom nome de famia...
Superstições e crendices, numerosas, perpassam pelos vossos livros. Vejamos,
Corpo fechado
Mais tiros e do meio da fumaça ardida o rosto de Damião de Bastos sempre surgia horroroso, aos brados, com uma fúria tal que Mané Vitô recuou. Aquilo certamente possuía corpo fechado! Por certamente era alguma oração muito braba demais, algum patuá de S. Marcos Brabo. Não via que nem sua repetição queria funcionar mais!
Bala para matar homem de corpo fechado
Diziam que para matar Supriano requeria que se fundisse uma bala de prata virgem, marcada com uma cruz num dia de Sexta-Feira Santa.
Cura de doenças (orações)
Severo não se sentia bem: o ferimento do ombro lhe produzia febres, sem qualquer medicamento para tomar ou aplicar no local, Maria Ponciana é que fazia suas benzeções, fazia seus feitiços sobre a ferida do alferes, que piorava sempre e sempre. Salustiano também deu seu demão, recitando umas par de vez a oração do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ponciana explicava:
– Benzedura num tem força, mode a bala que é de arma curada.
Belisário botou uma estampa [de santo] “por riba” da dor da velha Custodiana, e foi a conta.
O diabo dentro de garrafa
– Cruz, credo! – fez Pequena, benzendo-se. – É o Coisa-Ruim que o Coronel Pedro tem na garrafa que ensina tanta astúcia para eles, meu Divino.
Em outros passos há referência a uma “capetinha fêmea”, do juiz Dr. Carvalho, com quem o capeta macho deseja unir-se.
Para perder o medo
Quando era crila, era medroso que nem uma mulher. Foi preciso que o padrinho fizesse uma simpatia para ele perder o medo.
No dia que enterraram o Puluquero, o padrinho mandou Mané Vitô atirar três punhados de terra na cara do defunto. Depois disso perdeu o medo.
Canto de galo etc.
Um ou outro galo cantava. Bom sinal: se um galo cantasse, um cachorro latisse e um gato miasse, não aconteceria desgraça naquele dia.
Coruja rasgando mortalha
A coruja-de-mato-virgem passou recortando mortalha. Seu vulto branco, enorme, tirou Rosa de seus cismares, para dizer um creindeuspadre. Coruja é bicho de mau agouro, inda mais coruja moradeira em torre de igreja da moda daquela!
Cachaça com pólvora para dar coragem
Roberto Dorado usava dar de beber aos seus homens cachaça com pólvora, para lhes aumentar a valentia. Lembremos Ascenso Ferreira:
Contam os veteranos do Paraguai
que rasgavam no dente o cartucho,
misturavam pól
vora com aguardente,
passavam a mistura no bucho
e depois iam brigar...
Sabemos, por vossas narrativas, que, no meio onde esses infelizes vegetam, as noites, em dezembro, “chegam tarde. Em dezembro, oito horas da noite, a gente ainda pode andar sem candeia dentro de casa”.
Isto, que é de O Tronco, isto, mais ou menos, é dito com belíssima transmutação poética neste período de “A Enxada”, do Veranico de Janeiro:
Como era dezembro, a noite não veio assim de baque. Veio negaceando, jaguatirica caçando jaó, jogando punhado de cinza nos arvoredos, uma bruma leve pelos valados, arroxando a barra do horizonte, um trem qualquer piando triste num lugar perdido, coruja decerto.
A Poesia, visitante habitual de vossas obras, confere vividez às descrições de aspectos naturais – descrições que sobem a requintes de sensibilidade artística a serviço da verdade. Veja-se a força desta passagem, onde alternam comparação e metáfora de prodigiosa beleza: “Depois, como semente na terra, o silêncio parece que inchava, dilatava, tomava conta do vale do rio e era palpável, visível, um bloco compacto de caligem e breu. O horizonte era o regougo do curiango: Corta, pau, João, corta pau.”
É para notar a acesa metáfora inclusa nestas sete palavras: “E o vento era um animal vivo.”
Estamos vendo a lua nesta outra metáfora de preço: “No mar frondes das matas alvorecia a lua dos ipés.”
Longe iria este vosso confrade, Sr. Bernardo Élis, se fosse apontar, em vossa expressão literária, cada passo que lhe acendeu encanto, ou até deslumbramento. E, porque não cabe ir muito longe, dirá, tão-só, da “voz suja de sono” com que Etelvina chama a filha dorminhoca; do riso “doloroso e desbotado” que Deodato ensaia, “entre gemidos de cãibras”; da candeia de azeite que, pendente dum prego no portal, “cochilava em vermelho”.
Dirá, também, destas expressivas personificações, ou prosopopeias: “Em dezembro o dia acorda cedo.” “Os sapos voltaram a coaxar valentemente, cientes de que ninguém os perturbaria.”
E deste maravilhoso flagrante de um anoitecer: “A tarde era um resto. Morcegos voavam tropegamente, cortando-se no poente sombrio.”
Alta expressividade há, igualmente, neste breve período, onde a excelência da observação disputa primazia à comparação que a reveste, que lhe é, digamos, o fulcro; comparação daquelas que tive ocasião de assinalar como típicas de Simões Lopes Neto e Graciliano Ramos: feitas com elementos do mundo circunstante; comparações ecológicas: “Baixa, lenta, a conversa escorria feito um azeite encorpado, olhos sem se fitarem.”
Às vezes numa pincelada atingis a altura desta prodigiosa água-forte, com um tudo-nada das alucinatórias visões de um Bosch: “Um céu defunto escorava-se nas centenas de pernas dos bulcões de fumaça que se erguiam das queimadas.”
Ou esta visão rembrandtesca de claro-escuro: “E as chamas [das coivaras] sacudiam lenços na noite escalavrada dos pios rouquenhos dos joões-corta-pau cambaleando seus voos trôpegos pelas encruzilhadas mal-assombradas.”
De páginas vossas podem, por outro lado, extrair-se fragmento onde ao realismo descritivo se associa uma nota romântica. Vede: “Fora, a tarde dissolvia-se em beleza, com pássaros-pretos e sanhaços trinando nas laranjeiras e abacateiros. Na sombra, uma rola gemia tristemente, num tom merencório de amor abandonado.”
VOCABULÁRIO
Muitas das palavras e formas vocabulares que se vão ler são da própria fala do autor:
adonde
a gente (– eu) [Cf. gente.]
alimal
antãoce
ante (= antes): “em ante da lua”
aqueredor (= credor)
arrupiado
bassoura
benzeção
coresma
creindeuspadre
desmazelo (alfinete de mola)
despropósito (= demais, em excesso)
dozeiro, dozento (que tem dó)
esmagrecer (também no Nordeste)
fazeção
guatambu (enxada)
ge
nte (pessoa): “tem uma gente gemendo aí!” [Cf. a gente.]
gusparada
há-de-o (= não creio, não é possível; pois sim!)
homência
jinela (pop.)
joão-gouveia-chinelo-sem-meia
lagartixa (= divisa, galão de patentes militares)
lêndea (= manha)
luminoso (antiquado)
meizinha
meu-pé-me-dói
mode
morrer-se: “Desde que Pedro se morreu, que ando zonza.” (clássico)
mulher-dama (também no Nordeste)
oitão
ós (= aos)
pançudinho (barrigudinho, criança)
passação
perigoso (= possível)
pescoço (do pote)
pissuir
quebrante
relar (= ralar)
saluço
sancristão
sebaça (= o que se arrecada num saque; saque, butim)
sepurta (= suporta)
serioso
sobrosso (acontecimento funesto, desgraça, desastre, azar)
sumana
tição da calçada (= meio fio)
uruvaiado (= orvalhado)
xilada (= embriagado)
zangar (= descompor-se, putrefar-se) “A carne... tá zangando”
CRIAÇÕES DO AUTOR
cavacar: “[...] ouvia-se um cavaquinho cavacando a solidão”
fogo-apagar: “As rolinhas fogo-apagou fogo-apagaram no telhado da casa”
grilar: “Um ou outro grilho ainda grilava”
TERMOS ERUDITOS, COMUNS EM GOIÁS
outorgar
praticar (conversar)
proferir
AGORA, AS LOCUÇÕES
abaixar a crista
abrir o bué no mundo
abrir o pala
amarelar o pé de (= matar)
amarrar a égua com (alguém)
apanhar barriga
aparar a asa de (alguém)
apôs de
balançando folha
borrar na retranca
cair das carnes
cara de mamão-macho
cidade dos pés juntos
com as mãos ambas (clássico)
com coisa que (como se)
com o pé na cova
dar de dado
dar definição (explicar)
de cara torcida
de mamando a caducando (também de Minas, pelo menos)
de uma figa
deixar o barco vogar
de olho limpo
de pedra e cal
de topete levantado
emprenhar pelos ouvidos
em riba
em riba de
endurecer a espinha
enfincar o pé no chão
entregar a palha com a rapadura
esse menino:
“Ocê deu água os bichos, esse menino?”
“Uai, esse menino, a mó que esse juiz nem num vem hoje?”
estar com a vó atrás do toco
estar fora de
fazer ouvido mouco
feder a chifre queimado
fincar o pé no mundo
haver caroço no angu
ir ver a cor da chita
jogar seu verde
largar mão de
meter os pés
meter os pés na estrada
não aguentar nem uma gata pelo rabo
não dizer arroz
não dizer nem arroz
não ser flor de cheirar
não ter meu-pé-me-dói
não ter nada com o peixe
negar estribo
nem feder
nenhuns nada
num de repente
o que dá o dia (em Alagoas: o que o dia dá)
o que dava a roda do dia
passar a brasa em
passar moreno (passar dificuldades)
piar fino
por riba
por riba de
por uma só boca
por via de: “por via da moléstia”
pranto de choro
puxar a língua a
quando acaba
quando senão quando
que danou: “O dia que amanheceu meio claro, escureceu que danou”
“Saiu que saiu ventando”
que nem (Corretíssimo!)
ser carne com unha com
ser duro nas embiras
sumir no mundo
sus Cristo: “Sus Cristo, atrão!”
toda a vida (= muito): “[Explicou] Que morava longe toda a vida.”
[Também “sempre”: “tinham uns parentes lordes toda a vida para as bandas da Bahia.”]
trançar os pauzinhos
trancar-se em copas
PROVÉRBIOS
“Cafubira [coceira] baiana, quanto mais coça mais dana!”
“De hora em hora, Deus melhora”
“Filho alheio, brasa no seio”
“Falou, machado!”
“Mau, mau!”
“Neblina na serra, chuva na terra”
“Parede tem ouvido”
“Tão boa a tampa como o balaio”
“Quem deve é cativo”
“Era preciso remendar e remendar sempre, fiel ao ditado: ‘Remenda teu pano que durará um ano; remenda outra vez que durará um mês; torna a remendar que ainda há de durar.’”
A quem lhe pergunta se “enricou cos diamantes” Lucindo responde: “Quer dizer que eu cá não mexo com garimpo não senhor.”
Curiosa a sinuosidade ou vaguidade, por vezes, desse “quer dizer”, que, ao cabo de contas, não quer dizer nada: um jeito de enrolar a pergunta, de algodoá-la, por velhacaria, indecisão, timidez – ou sestro.
Coisa semelhante, provinda de pura timidez, é o circunlóquio deste recado da velha Aninha dado a Vicente por uma cria da matrona: “D. Aninha mandou falar assim que é pra Seu Vicente dar um pulinho lá.”
Revelais, Sr. Bernardo Élis, vivo pendor para o uso do aumentativo, na mais popular de suas formas: linguão, luão, pessoalão, burrona, capona, esporona, mulona, vozona; e até numa locução adverbial: de madrugadão.
Mais estranhos – e deliciosos – são diminutivos como estes aqui: tudinhozinho (duplo, reforçado), e ninguenzinho: “Não vi ninguenzinho dessa vida...”
A concordância apresenta, em vossa obra, peculiaridade estranha, como destes exemplos se vê: “A tosse da filha era cavo, feio.” “Mas ferramenta em tal tempo é coisa vasqueiro.”
Agora um pouco de regência.
Quer dê a ideia de obrigação, ou conveniência, quer implique probabilidade ou suposição, o verbo dever apresenta-se, por via de regra, com a preposição de: “Um homem não deve de tratar outro por essa forma”, ao lado de: “[...] o velho Filipe, que deve de estar nas profundas dos infernos.”
Às vezes, classicamente, aquela preposição aparece (o que também se vê em Simões Lopes Neto) em conglomerados, como de a, de em, de para; de a pé; de em antes; de para a manhã voltaram para a roça. Cruzamentos de a pé com de pé, em antes com de antes, e de manhã com para a manhã, respectivamente.
Quanta ao em, vemo-lo formar locuções com os advérbios cedinho e hoje, e com a preposição desde: em cedinho, em hoje e em desde.
Outra curiosidade: “Da tarde para pela boca da noite Chiquinha desentaivou.”
Inabitual, para mim, é o emprego de queixar transitivo: “Ela também queixava canseira.”
Cf. Drummond: “Para louvar a Deus como para aliviar o peito,/ queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalho/ é que faço meu verso.”
Observo o emprego, rigoroso, de havia, em vez de há, com frequência maior do que este último, que, embora menos correto, é autorizado por escritores dos mais canônicos:
“Até havia pouco”
“Estavam havia muito sem mulher”
“Havia muito que não fazia nada”
Nem deixais de homenagear a sintaxe de exceção, usando “noite meia fria”, ao jeito de Camões: “Uns caem meios mortos” ou de um Machado de Assis: “cabeça... meia inclinada.”
Arcaizais a bom arcaizar, escrevendo “excetas as casas dos graúdos”, empregando o particípio (flexionado) em lugar da preposição, exceto.
Usais, por conta própria, o ele como objeto direto: “Se pegassem Fulorenço, amarrariam ele.”
Noutra passagem, convizinham o popular e o culto: “Ia entrar, mas uma saraivada de balas jogava ele par terra, o obrigava a fugir.”
A dada altura de O Tronco, usais duma silepse de gênero e número, de excelentíssimo efeito: “De novo a meninada abriu o choro, com o mulherio correndo feito doidas.”
Aninha, de O Tronco, diz do filho Artur que “Ele tem lá seus defeitos dele, mas ser medroso e traidor, isso ele não é.”
Pleonasmo clássico, que se pode ver num Camilo: “Faz-me infinita compaixão o seu desamparo dela!”, ou num Antônio Carlos Villaça: “A vida continua. É seu ofício dela.”
O “pranto de choro”, tão expressivo, que aparece em O Tronco, não constitui pleonasmo como escrevi há mais de 25 anos, na minha edição dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto.
Interessante o pleonasmo me... eu, da fala popular: “Se Deus e a Virgem Santíssima me ajudar eu”,
De interesse grande são as negações pleonásticas ocorrentes em vossas obras: “Eu não gosto de briga, compadre. Nem sei dar tiro nenhum nada...”
“Nunca ninguém não tinha visto”
“Nunca ninguém não tivera ideia”. Em Machado de Assis: “Nunca jamais ninguém” e, até, “nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz”.
“Ninguém nunca não vira essa gente?”
“Nem não era”
“nem num vem” (= não vem).
Pergunta Rosa, no conto homônimo: “Mas cuma é que esse pessoal veve? Num tou vendo ninguém não tocar roça, uai.”
Por outro lado, a negação incompleta: “Olaia pretendia servir alguma coisinha ao padre e tinha nada dessa vida.”
Tendeis sensivelmente para o objeto direto intrínseco, ou interno, o constituído por substantivo cognato do verbo, ou da mesma faixa semântica: “Pelos currais, bezerros berravam seus berros estrangulados.”
“pegava a berrar uns berros intermitentes”
“chorava um choro longo e igual”
“falava sua fala mansa”
“gorjeando aquele gorjeio de uma beleza simples”
“piando aqueles pios de mau agouro”
“piando seus pios entojados”
“O juiz leu e riu um riso malicioso”
“riu seu riso escasso”
“voando o voo meio mole”
“voando seu voo molengo”
Outras vezes, transitivais, com elegância, verbos intransitivos ou dais a alguns deles de uso também transitivo um objeto direto excepcional:
“careteando risos fungados”
“xingando pragas”
“cambaleando seus voos trôpegos”.
Ou, ainda, tirais partido, artista original que sois, das virtualidades literárias da regência (e, paralelamente, da semântica) para efeitos excelentes, quando falais de uma jovem que “cochilava seus seios sem homem”.
Usais muito bem do discurso direto, e do indireto estrito e livre, entrelaçando-os, fundindo-os, com positiva mestria, em combinações alguma vez ousadas e as mais sábias:
“Naquela manhã Moisés procurava as tábuas. Perguntava a um e outro, onde será que o velho tinha guardado elas, mas ninguém não dava definição.”
“[Liduvino] assegurava de pedra e cal, por essa luz que me alumeia, que o malvado não duraria nem uma semana.”
Cf. Camões (Os Lusíadas, I, 64): “Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação / De mi, da lei, das armas que trazia.” (“Trazia” em lugar de trago.)
O carreiro Liduvino pensa: “Deixar o moribundo acabar ali, com perigo até de urubu vir furar seus olhos em vida, isso era ação de herege. Ficar com ele na raça não tinha jeito, que por ali tudo é desrecusado em demasia. Quer saber de uma coisa? E eu que vou baldear esse homem para a rua?!”
Talvez mais curioso o que se vê aqui:
– “Que me deixassem sentar ali [na pedra branca] por alguns instantes, pedia ele. Não voltaria mais ao povoado.”
Flores está matutando: “Amanhã ou depois, se viesse a necessitar de um empréstimo, iria valer-se de quem – Da Chiquinha, do Amaro? Do Carreiro, de Liduvino? Aqui, ó, que ninguém é besta.”
Não foi preciso, nessa transição de um tipo de discurso para outro, mencionar o gesto que acompanhou a última frase. E ainda bem...
Agora, outro aspecto, bem diferente.
Logo no começo do Veranico, narrais que um fazendeiro “veio buscar o compadre Liduvino para ajudar o pai que havia meses vinha não morrendo”.
Atentai bem, senhores. Essa construção, quero crer, não é canônica; briga lá o seu tanto com o gênio da língua. O normal seria vinha morre não morre. Normalmente, ninguém está, ou vem, não morrendo. E, contudo, a construção é plausível, por ser de extraordinária expressividade. Que o diga Fernando Pessoa:
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé.
Note-se: do que não está ao lado, junto, ao pé.
Sr. Bernardo Élis,
Goiano, sois bom mineiro: o vosso – uai! – é tão límpido, tão cantante e (quase diria) cortante, tão mineiramente proferido, como ainda não ouvi melhor. E tendes, à mineira, viva tendência para fugir à discordância, à discussão, tendência, nalguns casos, para o nem-sim-nem-não-antes-pelo-contrário.
Não sois bom de pé, como se viu, nem bom de mesa. Não sois de boa boca, mas biqueiro, como se diz lá para as minhas bandas. Porém, goiano de velha cepa, amais vossa terra em tudo, até nos animais, frutas e costumes vernáculos. Goiás é presença permanente em vossa obra.
Professor, estudioso do tupi, historiador, sois homem de gabinete. E em nossa ficção, figura cimeira. Um grande de Espanha. Porque a vossa natureza é intrinsecamente, medularmente, a de um narrador; porque sois, entranhadamente, um contador de histórias – como dizia de si mesmo (e tanto dele se disse) o excelente Erico Veríssimo, que todos acabamos de perder –, ides melhor, por via de regra, nas histórias de enredo que nas estáticas.
Sois, em O Tronco, a narração itinerante.
Natureza de narrador, disse eu. E nisto sois bem povo. Porque o homem do povo, o comum das gentes, gosta mesmo é de história. E, pensando bem, quase toda a produção literária pende para a história, para o conto-e-romance, para a narração. A rigor, todos nós – e não apenas o povo – todos nós amamos as histórias, tal se elas fossem uma interpretação ou glosa de nossa própria história, como seres viventes. Nem por outra razão escrevia Diderot aquelas palavras postas na fachada do volume das Várias Histórias, do nosso maior contista: “Mon ami, faisons des contes... Le temps se passe, et le conte de la vie s’achève, sans qu’on s’en aperçoive.”
Diderot via nos contos uma sobrevivência. O conto da vida termina, com o passar do tempo: tiremos da vida, sem cessar, os nossos contos, que a ela porventura possam sobreviver. Que o povo gosta mesmo é de história, não há dúvida. E a Literatura, como foi dito, serve-lhe história, sob os mais variados feitios: a história-conto-novela-ou-romance, a história-epopeia, a história-poesia-lírica, a história-epístola. Baste o exame de uns casos poucos, e mais conhecidos. Que é “O Corvo”, de Poe, senão uma história – uma história pungente que mora em milhões de almas? Que são tantos dos poemas de Baudelaire em verso, como, em Les Fleurs du Mal, “Une Charogne”, ou em prosa, como “O Jogador Generoso” ou “Morte Heroica”? E o “Sete anos de pastor...” não é uma das mais belas narrativas de nossa língua? E o “Fiel”, de Guerra Junqueiro, e o “Fabordão”, de Raimundo Correia? E a “História de um Cão”, de Luís Guimarães, tão semelhante ao “Fiel”? Tantos outros... O Padre Antônio Tomás, por exemplo, presença obrigatória nos álbuns de há um meio século, com “O Palhaço”, soneto lacrimogêneo, talvez o seu prato de resistência. A chave de ouro do soneto corresponde, muita vez, ao epílogo dos contos e romances, ou à moralidade das fábulas, moralidade tão comum, outrora, naqueles gêneros.
Não só O Tronco – toda a vossa obra de ficção (a parte de maior valia) é de crítica e denúncia. Poderíeis, parodiando Carlos Drummond de Andrade (“O tempo é minha matéria”), poderíeis dizer: A terra é minha matéria. Em vossas obras, homem e paisagem consonam, reclamam-se e, por assim dizer, interpretam-se.
Descrevendo a chegada a Tormes do requintado Jacinto, nota Eça de Queirós que: “Naquelas solidões de monte e penedia os pardais, revoando no telhado, pareciam aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda do pimentinha dominava, atulhava a região.”
Na desolação de vossa paisagem, onde as casas poucas são tão pequenas que um homem, ao entrar, escurece a porta, tudo – não só os pés de pau mais altos, destoantes da vegetação geral, mas os passarinhos, os bichos, os bichinhos – tudo é vida marcante, relevante.
Sois altissimamente poroso à realidade, à natureza, às dores do bicho-homem: à vida.
Folheio e perfolheio vossas histórias – e delas, da claridade aparentemente neutra do papel, vejo erguer-se um homem, ouço a voz desse homem, forte, direta, incisiva – por vezes cruamente incisiva, golpeantemente incisiva.
Conjugação de realidade e fantasia; de natureza (física ou animal) e humanidade; de gravidade e sarcasmo; de crueza e doçura; de brandura e brutalidade: eis o que nos apresentam as vossas obras. Obras para serem lidas com vagar, de assento: pois nelas há muito que aprender.
Força descritiva espantosa, não raro fialhesca, abrangente de um sem-número de aspectos da realidade. Retintamente regional, sois eminentemente universal.
Em vossas páginas a paisagem convive, ombro a ombro, harmoniosamente, com o elemento humano; as descrições de natureza contraponteiam, em geral, do modo mais seguro e inteiro, com o estudo da psicologia e ações dos homens. Demiurgo, suscitais um cosmo em que, animicamente, a natureza é parte do homem, se não, até, o próprio homem. Escreveis com sangue, nervos e coração. Vossa prosa, não raro, flui com ímpeto de jorro. Sois, por vezes, torrentoso.
Homem de sentidos vigilantes. Impressões sensoriais nítidas.
Bandeira aconselha:
Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.
Cada sentido é um dom divino.
Parece que o seguistes: a cada instante nos transmitis as mais límpidas impressões do que vistes, ouvistes, degustastes, tateastes e farejastes. Ouvis excelentemente natureza e criaturas.
Observador desenganado e afoito de homens, animais e coisas, sois, no entanto, alheadamente vago. E tímido. Nem vos fica mal a timidez, e até um tudo-nada de tatibitate, numa Casa cujo orago é Machado de Assis.
Tendes a Arte e Ciência da observação miúda, paciente, do homem do campo, que, adstrito a um ambiente demográfico rarefeito, concentrada a observação num raio limitado, vai cada vez mais aprofundando-a, vendo cada vez melhor, naquele sentido de que fala José Américo: “Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não veem.”
Os vossos caminhos – cerrados e campos-gerais – são agrestes, incultos, como as vidas que os palmilham. Frutas (me informastes), só no começo das águas. Quase estéreis, os caminhos: não são daqueles das minhas Alagoas, do poema de Jorge de Lima, que dizem ao passante:
Não vás: toma lá uma goiaba madura,
uma pitanga, uma ingá e dão, como
as mãos dos missionários que dão tudo,
cajus, pitombas, araçás a todos os meninos do lugar.
Em vossas terras as frutas silvestres são, quase todas, consideradas “reimosas” – eu o sei por vossa boca. “Reimosas”, assim mesmo dissestes, como o diria um alagoano, um nordestino.
Telúrico em alto grau, absorveis a terra por todos os sentidos. Quanto há de cósmico – do mistério cósmico – em vossa obra. Sentis como poucos seres a gravidez da noite, a quietez noturna, o quiriri – tão propício à gestação do mundo noturno e onírico; assimilais e transfundis em vossas veias o sangue da pulsação das madrugadas: “No largo a madrugada elaborava o seu grande mistério.” Ou: “No silêncio, gerava-se o mistério da madrugada, pobre madrugada chuvosa, sem galos nem pássaros gerada no medo e na covardia.”
É de notar o sentido humano, participantemente humano, que há em vós; não tendes, de modo geral, o gosto da Poesia como pura abstração: sabeis jungi-la às situações humanas. O som da buzina que (na “Moagem”) roncava na madrugada alta, “[...] resvalava no silêncio orvalhado e frio da noite cheia de mistério, onde o grilo cochilando era uma estrela sonora”, o som dessa buzina, nessa noite de que dizeis com tamanha poesia, chama o pessoal para o trabalho, para pegar no pesado.
Depois de, em poema tantas vezes repetido, dizer que “O poeta é um fingidor” Fernando Pessoa, no “Isto”, escreve:
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
...................................
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Ao contrário do poeta, vós sentis com o coração. Usais o coração. Sentis com tanta intensidade como quem vos lê.
Nem falta às páginas vossas (em meio, por vezes, ao mais veemente realismo) um toque de fina, anelante Poesia, como na cena de ardência amorosa de Vicente em face da mulher, que se lhe mostrava fria: “As mãos de Vicente caminhavam, beijava-a impedindo as palavras, afastava pano a pano, era a saia pesada e longa, tocava o ponto molhado e terno, rosa de orvalho e de esperança, porto dos sonhos.”
Sr. Bernardo Élis,
Não sois unicamente vós que tomais assento na Cadeira 1.
É também o vosso Estado, a vossa terra. É Goiás.
Gratíssimo é este momento à Academia Brasileira. Não a desejáveis, apenas: em verdade, a amáveis. Vós a queríeis e lhe queríeis. E, porque muito a merecíeis, ela é vossa. Vossa, de papel passado.
10/12/1975