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Discurso de posse

Ah, minha velha Goiás!

Das mais elevadas terras do Planalto Central, da Serra dos Pireneus, nasce um rio que corta Goiás em direção ao sul. É o Corumbá, chamado resmungador e escachoante.

A quatro léguas das nascentes forma um belo salto. Essa cachoeira foi descoberta pelos Bandeirantes tão logo chegaram a Goiás. E, danados como eram, rasgaram a serrania, desviaram o curso das águas, estancaram a catadupa. No profundo do poço cavado pelas águas deste mil e mil anos acharam tanto ouro mas tanto ouro, que para catá-lo ergueu-se uma povoação que tomou o nome de arraial de Nossa Senhora da Penha de França de Corumbá.

Desaparecido o ouro, o arraial nem cresceu, nem minguou – encruou, pequenino e solitário na imensidão da encosta a prumo. E o poeta – meu pai – assim cantou:

A alegre, pequena e estranha
Cidade de Corumbá
Lembra uma vila de Espanha,
Na encosta de uma montanha,
Naqueles tempos de Alá.

Aí, em Corumbá, a frente das casas dava para a igreja. Os fundos prosseguiam em fazendas de gado que lá se iam de sertão adentro... Quem chegasse, até cuidava que era povoado abandonado. As ruas desertas, o capim crescendo, as criações e os passarinhos de Deus Nosso Senhor. As moradas de contínuo fechadas por via do vento forte que ali estava ventando de toada e por amor dos valentões. Melhor dizendo, valentão, que mais de um só havia enquanto esse um não derrotasse o rival.

Ao tempo de eu mais José Veiga meninos, o valentão era João Brandão, ao depois alcunhado de O Perigoso, conforme acrescentou no seu ferro de ferrar gado. Embora já seu tanto quebrantado pelo automóvel, pelo cinema e pelo rádio, que principiavam a penetrar o sertão, ele ainda assustava. De brigador, João Brandão desceu a famanaz como amansador de burro brabo, tangedor de boiada, tropeiro, tocador de viola e dançador de catira. Mais para diante virou tirador de terços, responsador, benzedor de bicheira e de cobras venenosas. É como lá diz: o diabo depois de velho se faz ermitão.

Tão importante quanto o valente, só havia seu Dominguinho Sacristão, ex-seminarista, conhecedor de latim, bom para fazer cartas e versos, ledor de autores clássicos. De bela voz, dominava as missas cantadas do Divino Espírito Santo e os tristes responsórios de Semana Santa. Mantinha respeitosa intimidade com seu vigário e com as coisas divinas.

Por estas alturas, meus amigos, já deveis estar temerosos de que eu vá recensear por inteiro o povo (embora minguado) de minha terra. Mas tende sossego. Acrescentarei apenas que em Corumbá todo o mundo ou era goiano (a menor parte), ou maranhense, ou baiano, ou mineiro, ou do Sul. Os sulinos, muito escassos. Estrangeiro? Ao que me lembra, apenas um, que era o mecânico dos primeiros automóveis.

Enquanto vivi em Corumbá, vivi na indecisão se seguiria o modelo João Brandão Perigoso, ou se seguiria Dominguinho Sacristão. Acabei não sendo nem uma nem outra coisa, para ser as duas ao mesmo tempo. Aliás, a síntese de ambos era a minha própria cidade, como síntese deles era o Estado de Goiás, e o próprio Brasil, como mais tarde tirei a limpo. E agora, ao assumir a Cadeira 1 desta Academia, vejo, sem nenhuma surpresa, que também ela resume e representa Goiás ou a minha pequena e amada Corumbá, guardadas, evidentemente, as proporções.

Como em Goiás, há nesta Cadeira um maranhense, Adelino Fontoura, o patrono, poeta, como tantos que lá existiam e existem. Depois dele vem outro poeta, já este natural do Rio de Janeiro, o louvado Luís Murat. Pois em Goiás também há um poeta natural do Rio de Janeiro, cujo nome era Antônio Lopes da Cruz, mas que assinou seus poemas com o pseudônimo de Bartolomeu Antônio Cordovil. Foi o primeiro a usar o gentílico, tão nobre, Goiano, num trabalho poético dedicado às ninfas da terra. Pelo estro, filiou meu Estado ao movimento literário de fins do século XVIII.

Ao poeta Luís Murat sucedeu um catarinense, Afonso d’Escragnolle Taunay. Muito falou de Goiás nos onze volumes de sua História Geral das Bandeiras Paulistas e, especialmente, no livro Os Primeiros Anos de Goiás (1722-1748). Com esses Taunay estreita é a ligação de minha terra. O pai do precedente, autor de Inocência, representou Goiás como deputado-geral; o avô do ocupante desta Cadeira, o pintor Félix Émile Taunay, fez uma tela sobre a Descoberta das Águas Termais de Pirapitinga. Essas informações mostram que, apesar das distâncias e da dificuldade de transporte, Goiás esteve em constante ligação com o Brasil inteiro através de livros e eventos, e através de homens.

Por fim, chegamos ao mais recente ocupante desta Cadeira, isto é, chegamos ao querido e saudoso Ivan Monteiro de Barros Lins.

Nasceu em Belo Horizonte, nessa Minas Gerais de onde procede o maior contingente de pessoas de outros Estados residentes em Goiás. Era filho de Edmundo Lins e Maria Leonor Monteiro de Barros Lins. O pai, além de humanista e cultor das Letras Clássicas, possuía excepcional cultura jurídica, conhecimentos que o levaram até o Supremo Tribunal Federal.

Depois de fazer os estudos secundários em sua terra natal, veio Ivan Lins com os pais para esta cidade, onde concluiu o curso de Medicina. Mas, seduzido pelo saber geral e pela Filosofia, em particular, pouco se dedicou à profissão.

Foi professor, jornalista, integrou missões culturais ao estrangeiro, pertenceu a clubes, grêmios, academias e órgãos culturais do Brasil e de outros países.

Em 1942 tornou-se Ministro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro; em 1958, a 12 de novembro, tomou posse nesta Cadeira 1.

Sua obra perfaz 24 livros do mais elevado teor, e mais 13 pendentes de publicação.

Casou-se com D. Sofia Teodoro de Berredo Carneiro Lins, de cuja união resultaram três filhos.

Talvez um pouco por sua constituição não muito sadia, desde jovem se torna Ivan Lins um grande leitor e estudioso. Sua atenção voltava-se preferentemente para os autores clássicos, de que seu pai, ex-seminarista e cultor do latim, era bom conhecedor. Por essa forma, logo ao sair da puberdade, como confessa, sente a fé vacilar, ele que até então tinha sido bom católico, fiel observador dos mandamentos da Santa Madre Igreja.

Para mais abalar sua crença no Catolicismo, muito contribuiu um episódio em si sem maior importância. Visitou, certo dia, uma ex-empregada da família, mulher de grande bondade, cujo carinho enchera de doçura sua infância. No entanto, esse ente tão generoso morria torturado pelas dores das muitas moléstias, na mais triste pobreza, em que tudo lhe faltava. A cena comovente fez o jovem pensar demoradamente numa passagem em que o filósofo Epicuro punha em dúvida os atributos divinos, justamente por existirem no mundo cenas como aquela.

Foi demorada a reflexão crítica que trabalhou o espírito do moço, influenciado pelo estudo dos racionalistas, dos iluministas e de autores ligados à doutrina de Augusto Comte. Dela surgiu a dúvida que, progredindo, conduziu-o a perder a fé.

Isso acontecia numa fase curiosa da vida brasileira, pelos fins da Primeira Grande Guerra. A esse tempo, observava-se um ressurgimento do Catolicismo, com gente convertendo-se, reconvertendo-se e até entrando para os conventos, enquanto de outro lado lavrava um surto de ateísmo materialista, com muita gente ingressando nestas hostes. É quando, indo ao Templo da Humanidade com seu pai, para assistir a uma conferência do Dr. Bagueira Leal, figura proeminente no ambiente positivista nacional, sentiu-se atraído irresistivelmente pelos princípios dessa filosofia. Aliás, conhecia de leituras anteriores a biografia de Benjamim Constant, escrita por Teixeira Mendes, que o encantara e seduzira.

A partir desse instante, alista-se Ivan Lins no Positivismo, que era um meio caminho entre o teísmo e o ateísmo conflitantes. É o nosso homenageado que reconhece que aderia ao Positivismo “no momento em que este atingia o seu maior desprestígio, no mundo e no Brasil”. E não era apenas isto. Deixara ele uma religião por causa de suas postulações místico-teológicas para buscar no Positivismo muita coisa do Catolicismo, como confessa na seguinte frase:

O Positivismo é o Catolicismo dos sem Deus; isto é, sustenta e defende os mesmos sublimes princípios morais do Catolicismo, servindo-se, entretanto, de argumentos e motivos puramente humanos, sem lançar mão da hipótese comprometedora de um Deus a reger os destinos humanos.

Meus senhores,

Inicialmente, através do pitoresco, procurei configurar a estrutura cultural de Goiás. Agora estou me valendo daquele debuxo para relembrar, com minhas insanáveis deficiências, a figura admirável de meu antecessor imediato, esse mineiríssimo e por isso mesmo universalíssimo Ivan Lins. Como nas Minas Gerais, em Corumbá convive harmoniosamente a cultura nativa, cabocla ou popular, com a de cunho europeu e universal. Graças à sabedoria de Dominguinhos Sacristão, na fachada do cemitério escrevendo este dístico latino: Pacem aeternam dona eis, Domine. Entretanto, a palavra cemitério está impregnada em demasia dos sentimentos de dor, separação, saudade e aniquilamento. Desse modo, sempre que pode, o povo evita pronunciá-la ou a substitui por algum circunlóquio que disfarce a ideia aziaga. No caso de Corumbá, valendo-se da inscrição latina: Pacem aeternam dona eis, Domine, passaram a chamar o cemitério de “Jardim de Dona Eis”, ou “Chácara de Dona Eis”, ou simplesmente “dona eis”.

Vede aí o velho jeito brasileiro de suavizar as coisas. Vede aí essa maneira tão nossa de bordejar determinadas situações difíceis. Vede aí, em resumo, a nossa antropofagia. Devoramos e digerimos a cultura estrangeira, integrando-a em nosso modo de ser e de existir. Tal poder levou o cronista do começo de nossa colonização a dizer que o Brasil já era outro Portugal e notar na fala do Padre Antônio Vieira uma entonação diferente da do português europeu. Graças a essa capacidade, pudemos nós afeiçoar o Catolicismo às nossas conveniências, no mesmo passo que reelaboramos as religiões negras, e toda a gama de ismos que aí pulula.

Nosso Ivan Lins não renegou a tradição pátria. Nem poderia fazê-lo. Embora sendo um dos espíritos mais universais do Brasil, o caráter brasileiro definiu e marcou fundamente sua personalidade e sua obra literária. Pelo menos, assim sempre o entendi.

Como observam vários estudiosos, o Positivismo de Ivan Lins era religioso, no sentido altruísta que Comte empresta à palavra. Repudiava no Catolicismo, essencialmente, o que lhe parecia contraditório e absurdo dentre os atributos de Deus. Repudiava a onisciência, a onipotência etc., além dos aspectos de atraso e intolerância que vislumbrava. Assim situava o problema por força do racionalismo herdado de Descartes e dos humanistas renascentistas.

Em conferência que proferiu no PEN Clube do Brasil, em homenagem ao último ocupante desta Cadeira, dizia mestre Barbosa Lima Sobrinho que seu homenageado fora, antes de tudo, um humanista. E explica: “Para Ivan Lins, como para Augusto Comte, o homem não passava de uma abstração. A realidade é a Humanidade, para cuja referência não vê necessidade de fazer do Homem uma categoria secundária.”

Nesse particular, a figura de Ivan Lins me parece muito interessante. Sendo um humanista, soube superar a “exacerbação individualista”, que é um dos traços apontados por Hermes Lima no Humanismo; sendo positivista, não se deixou dominar pelo “esquematismo dogmático que conduz o espírito humano à vertigem formalista abstrata”, que é a essência do Positivismo e do Neopositivismo, no dizer de um escritor moderno.

Por isso, não se tornou um anti-humanista. O trecho que citarei dá bem a medida de seu humanismo:

Através da Ciência, seguindo as pegadas de Bacon e Descartes, propugnava Augusto Comte não só o domínio do homem sobre as forças inorgânicas, fazendo-as servir, como escravas dóceis, a todas as exigências da sua indústria, mas, ainda, o domínio do homem sobre si mesmo, de modo a tornar-se, dia a dia, mais humano, vale dizer, mais desprendido da animalidade, ou seja, mais enérgico, mais inteligente e mais bondoso.

Sim, “mais bondoso”, falemos da bondade. A bondade é a capacidade de condoer-se do próximo. É a capacidade de sentir como sua a dor alheia. Está nisso um dos traços definidores do temperamento brasileiro. E nisso está uma das características da personalidade de Ivan Lins. O episódio da visita feita à ex-empregada bem ilustra nossa asserção.

Pela bondade de coração e pela seriedade com que encarou as conclusões da Filosofia que lhe pareceu correta – antes de ser positivista, humanista, católico, clássico ou renascentista, foi, em verdade, o cavaleiro andante que há em todo homem ibérico.

Foi o eterno Dom Quixote, Vitorino Carneiro da Cunha, ou RiobaldoTatarana. Viveu para defender e divulgar a Cultura, no combate à ignorância, à intolerância e à impostura. O motivo para a luta era o Positivismo; as armas, sua imensa cultura clássica e científica moderna.

Curioso é contar como vim a conhecer Ivan Lins. Lecionava eu Geografia e História. Os alunos, jovens egressos das fazendas de gado, para eles pouco significava toda aquela sucessão de reis, generais, guerras e feitos de antanho. Pela obrigação da nota, decoravam aquelas inutilidades, que era como entendiam a História. Foi aí que descobri alguns livros de nosso acadêmico e principiei a repetir aos jovens os episódios curiosos, cruéis, ridículos ou hipócritas de outrora, tão abundantes na sua obra. Diante da vida viva de palpitações que se lhes mostrava, os alunos deixaram de bocejar e empertigaram-se nas carteiras. Para um professor era bom sinal. E, entre indignados e comovidos, começaram a indagar por minudências, a cuja transmissão eu me esquivava para espicaçar-lhes a curiosidade. Quer dizer: os jovens interessavam-se pela História; os homens históricos de Ivan Lins não eram as figuras empalhadas da História comum.

Ivan Lins foi um intransigente defensor da liberdade e da dignidade do homem, condições metodicamente negadas ou postergadas pela intolerância dos poderosos ou de grupos a serviço dos poderosos. Pode-se quase afirmar que sua obra inteira foi voltada para o combate à intolerância, nas suas mais diferentes formas e disfarces. Estudos como fez sobre Descartes ou sobre A Idade Média, a Cavalaria e as Cruzadas parece que tinham por escopo verberar a intolerância reinante no mundo. A Inquisição, por exemplo, com suas práticas cruéis e obscurantistas, despertava a revolta sincera e profunda do escritor. Ele não poupou meios para denunciar, sempre que pôde. Nesse afã, algumas vezes chegou a ser vítima também dessa intolerância. Nessas condições, bravo e resoluto, entrou em duras pelejas e valentemente defendeu aquilo que entendia como justo e como certo. O eco dessas batalhas retumba ainda hoje na memória de muita gente.

Ao ler sua vasta obra, é com pasmo que reconhecemos o desassombro de suas atitudes. Abordava especialmente assuntos que ainda hoje provocam incompreensão, malgrado a permissibilidade enorme que a partir de lá se instalou no mundo. Uma de suas posições admiráveis foi a que assumiu ao dirigir uma carta a mestre Alceu Amoroso Lima, esse outro campeão da dignidade e da liberdade. Propunha a união entre positivistas e católicos. À época, pareceu quixotesca a solução; mas o tempo a transformou na antevisão do ecumenismo pregado por João XXIII.

Guardo para o fim algumas palavras sobre aquela das obras desse mineiro que me pareceu a maior. Refiro-me a Aspectos do Padre Antônio Vieira. Para minha alegria, constato que a ela o autor dedicava preferência, conforme confessou em entrevista ao Suplemento Literário do Minas Gerais, novembro de 1970. Sinto-me um pouco suspeito, porque sempre gostei de Vieira, de quem meu pai era ledor, mas que é visto pela maioria como prolixo e maneirista. Entanto, basta que se leia a obra citada para que a figura do jesuíta ilustre nos salte aos olhos tão numerosa e gigantesca como a dos melhores vultos da humanidade.

Ivan Lins mostra como aquele mestiço educado numa colônia incipiente e insipiente, quer com c, quer com s, para usar um vieirismo, como era então o Brasil, adquire uma cultura que o sobreleva aos espíritos formados na velha Europa. Havendo posteriormente vivido nas maiores e mais civilizadas metrópoles do mundo, Vieira, de volta ao Brasil, devota-se em cheio ao serviço dos indígenas, em pleno deserto, e ali se comporta com perfeita desenvoltura. É o político sagaz combatendo contra povos mais adiantados, na defesa dos interesses da Pátria. Contrariando forças poderosíssimas, faz-se protetor da liberdade do indígena e do negro, empenhando nessa empresa sua própria liberdade. Por fim, vemo-lo no transe decisivo: para defender os judeus enfrenta a intolerância da Santa Inquisição, padecendo o cárcere e a tortura. Por um triz não vai queimado vivo. Isso motivou a afirmativa irônica de Ramalho Ortigão: Vieira foi um bife fraudulentamente sequestrado à frigideira do Santo Ofício. Se escapou de ser queimado vivo, não escapou de o ser em efígie, num como galardão ao privilégio insigne de pensar.

Depois de tudo o que vimos, só nos cabe lamentar que na obra de Ivan Lins não tenha maior divulgação. Em vários de seus livros encontram-se ensinamentos básicos acerca do desenvolvimento das ideias da humanidade, e do método ou processo empregado para tal, em nível de fácil percepção e de honesta exposição, ensinamentos servidos por uma construtiva atitude crítica.

Seus livros abordam setores culturais a que nós luso-brasileiros – tão práticos – não somos muito afeitos, justamente por falta de frequentá-los. As virtudes apontadas deram a Ivan Lins lugar à parte na vida espiritual brasileira.
 
No ambiente positivista conheceu Ivan Lins aquela que seria a alegria de seus olhos e a companheira de todos os momentos, sua querida Sofia. Feliz a mulher, para quem o companheiro de mais de meio século de convivência só em palavras de amor, como as teve Ivan Lins em suas Memórias. Diz ele: “Ser amado por Sofia, durante mais de meio século, valeu, para mim, a pena de ter nascido.” Poderá haver música mais suave ao ouvido feminino?

Também no Positivismo encontrou ele suas grandes amizades, especialmente a maior de todas de sua vida – Paulo Carneiro, seu cunhado. Ao tentarmos bosquejar o panegírico de Ivan Lins, o maior positivista militante do Brasil de nossa geração, não podemos esquecer a grande presença cultural que Paulo Carneiro conquistou na França, em Paris, na Sorbonne, como recuperador e guardião do imenso acervo cultural legado por Augusto Comte. Com efeito, foi Paulo Carneiro que reacendeu na França o culto de Augusto Comte, graças ao quê, sendo brasileiro, é presidente perpétuo do Museu Augusto Comte, missão que desempenha em Paris o beneplácito da intelectualidade francesa e indiscutível competência. É Paulo Carneiro que detém as sete chaves dos arquivos e cofres em que se guardam os preciosos autógrafos de Augusto Comte, inclusive as famosas cartas diárias que trocava com Clotilde de Vaux.

Senhor Presidente,

Neste momento, quando o primeiro goiano chega a esta Academia, refletindo a alegria que vai na alma de meus coestaduanos, eu também não consigo disfarçar minha emoção. Não consigo, nem quero abafar as recordações que me vêm ao peito, especialmente as lembranças de Goiás, a Vila Boa dos Bandeirantes, onde estudei e formei meu espírito, onde fiz as grandes amizades de minha juventude.

Goiás foi, na verdade, semente e berço da cultura da dilatada pátria que é o Oeste. Ali, durante dois séculos, encasulado no coração do Brasil, permaneceu como sentinela avançada, vigilante no cerco perene e invisível das distâncias e do deserto. Num recolhimento morno de grão que germina, realizava a defesa da cultura e da língua nacional.

Foi na segunda metade do século XVIII que minha terra se entroncou no grande fluxo da Cultura brasileira, especialmente através de dois nomes: o poeta carioca Bartolomeu Antônio Cordovil e o erudito diamantinense, o Padre Luís Antônio da Silva e Sousa, ambos professores de latim. Desde então, apesar do isolamento geográfico, meu Estado sempre esteve presente aos acontecimentos decisivos da nacionalidade, por intermédio da bravura e da inteligência de seus filhos. Eis aí o General Joaquim Xavier Curado, cuja espada sustentou nossa independência, quando ela vacilava ao embate da Divisão Auxiliadora; eis aí o estadista José Leopoldo Félix de Bulhões Jardim, que, como Ministro da Fazenda por duas vezes, consolidou as finanças da República. Apenas dois, para ser breve.

Pelos anos adiante, os filhos de Goiás souberam conservar, ampliar e fazer progredir o alicerce cultural inicial. Criaram um ambiente de respeito, amor e interesse pelas coisas do espírito e da inteligência, especialmente na capital da província. A Língua Portuguesa, esse elo fundamental da unidade brasileira, sempre mereceu o desvelo do goiano, tanto que, embora rareassem fontes de informação e inexistisse interesse utilitário, dois dicionários de nossa língua foram escritos por filhos daquela terra. Um deles, o de Luís Maria da Silva Pinto, é o primeiro a ser escrito editado no Brasil. O outro, Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, é o fruto de longas e longas canseiras de mestre Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, o maior educador goiano de todos os tempos.

Ah, minha velha Goiás! Pelas ruas estreitas e brancas de luar, em noites de serenata, poetas e músicos soluçaram queixas de amor e hinos de louvor à terra.

Nas tardes mornas de cigarras, Antônio Félix de Bulhões Jardim, o primeiro poeta goiano, chorava sua solidão de romântico, enquanto lutava pela libertação dos escravos, qual outro Castro Alves generoso e másculo.

No velho Gabinete Literário, Hugo de Carvalho Ramos confundia a tragédia de seus contos com sua própria tragédia de suicida na flor dos anos.

Na redação dos jornais, nas esquinas, no mercado público, nos saraus costumeiros, de par com a paixão política localista, debatiam-se as ideias que agitavam o mundo.

Foi nesse ambiente que nasceu e tomou corpo uma ideia formidável – a criação de Goiânia, a nova cidade que deveria ser a capital do Estado. E da chapada agreste, onde apenas os buritis conversavam com os ventos e os pássaros de Deus, daí se ergue a metrópole de amplas avenidas abertas, para o alto e para o mundo. Crescendo e crescendo ainda, a nova cidade destronou a velha Vila Boa, arrebatando-lhe o título de capital, que ostentou por dois séculos. E a velha cidade, tão cheia de tradições, aquela que foi semente e berço, essa cidade morreu? Morreram sua cultura e seu heroísmo? Morreu tudo?

É aqui que pressinto aproximar-se de mim um vulto. Claro de tez, alto de porte, esbelto de corpo apesar de velho, risonho e limpo. Tem um ar provecto, por força do latim que cita sempre. Não sinto nele a substância dos homens, nem dos bichos, nem das coisas. Ele se tece da inefável substância do sonho e da fantasia. Risonho e severo, numa voz antiga, diz-me alguma coisa ao ouvido – ao meu ouvido esquerdo que escuta o coração. Quando me volto para melhor ouvi-lo, sinto que se dilui no ar e desaparece como surgiu.

Mas a partir daí, instala-se em mim um entendimento mais claro, que me permite lembrar o que murmurou. Disse que a “morte é o anoitecer de um belo dia”. Disse que “sobre a morte repousa o progresso social”, como lhe revelara Augusto Comte. Disse que “a morte renova os espíritos, dando lugar ao novo”.

Agora, reconheço o vulto, sua voz, seu gesto limpo. E meu entendimento se aclara e apura. Ah, minha velha Goiás de antanho! Foi preciso que morresses para renascer numa centena de outras cidades tão heroicas como tu! Teus filhos, em vez da bateia, ou do aguilhão das vaquejadas, ou do ronceiro carro de bois, teus filhos hoje manejam máquinas e engenhos que os tornam tão poderosos quase com os deuses. Por fios e antenas poderosos, entram em contato com o universo e com ele conversam. Parte da juventude já encontra nas escolas e nas Universidades explicação para suas atormentadas indagações juvenis. Nem tudo ainda são flores, mas a vida, que se renova, lá vai construindo um mundo melhor, em meio dos sofrimentos e das alegrias de cada momento.

Sr. Presidente, srs. acadêmicos!

Agradeço aos componentes desta Casa a benignidade com que me acolheram. É com o maior orgulho que tomo lugar neste Cenáculo, sem esquecer, contudo, minhas limitações. Com orgulho, sincero orgulho sertanejo, recebo a honra de poder gozar do fino e culto convívio desta sociedade. Sem a menor ilusão, serei o mais humilde de vossos companheiros.

Agradeço a mestre Aurélio Buarque de Holanda Ferreira a modéstia que proclama no gesto cordial de receber-me nesta Casa, justamente ele, tão grande na sua sabedoria de livros e de muitos mundos; ao Confrade Luís Viana Filho agradeço a honra de apor-me o colar, gesto fraterno, em que sinto a amizade que nós goianos devotamos aos baianos, nossos vizinhos e nossos irmãos de coração. A mestre Alceu Amoroso Lima, que me armou com a espada de Ivan Lins, a mestre Alceu quero dizer que não é hoje, nem é a mim apenas, que ele arma nesta noite. Com seus ensinamentos e com sua honestidade, ele armou desde sempre a nossa geração.

A vós todos, que me ouvistes, meu muito obrigado.

10/12/1975