A primeira palavra que me cabe dizer aos confrades desta Casa de Machado de Assis é a mais simples e ao mesmo tempo a mais densa: – obrigado! Palavra simples: dizemo-la a toda hora, sinal de reconhecimento do outro; gota de óleo quase imponderável na leveza da sua matéria, é, no entanto, preciosa no momento de amaciar a difícil engrenagem que são as relações humanas. Moeda corrente do cotidiano, traz, porém, no metal em que se fundiu o compromisso ético que lhe vem da idéia de obrigação. Dizê-la é também um dever.
Agradeço de coração o gesto do voto que me trouxe à vossa companhia. Mas esse mesmo ato, pela honra que confere, leva-me a ir além da cortesia e estender o sentimento de gratidão aos ausentes que ocuparam esta Cadeira, tornando-os vivos e presentes. A gratidão não é apenas um imperativo social, exigência da reciprocidade que deve reger a interação entre seres ditos humanos. O seu alcance ultrapassa a esfera de um regime de trocas em que se afere o valor do obséquio recebido e quitado. A verdadeira gratidão salta as barreiras da sociabilidade convencional, reino do aqui e agora, e alonga o seu olhar para o que não está materialmente presente: esse olhar chama-se memória, que é o outrora feito agora, a voz dos que se calaram para sempre.
Louvo a praxe desta e de todas as academias pela qual cada novo eleito dirige a palavra não só aos confrades que o estão acolhendo, mas também aos companheiros que se foram, convidando-os a retornar, ainda que por breves momentos, à companhia dos que os conheceram em carne e osso, ou apenas pelo testemunho dos seus escritos. A memória que, no verso de Camões, “os homens desenterra”, é, neste caso, o mais grato dos deveres. É minha vez de convidar-vos a me acompanhar nesta viagem de reconhecimento.
*
Quem ocupou esta Cadeira, cujo patrono é um dos mais vivos comediógrafos brasileiros, França Júnior? Tudo começou com um discípulo seu, folhetinista zombeteiro como ele, Urbano Duarte; veio depois um poeta melancólico que mal cabia nos limites parnasianos que ele próprio demarcara para si, Augusto de Lima; quem o sucedeu foi um jornalista liberal, amante de sociologia e de política, Victor Viana; depois, um diplomata de peso, Chanceler da Paz, José Carlos de Macedo Soares; em seguida, um poeta vibrante e profundo, tradutor impecável e zeloso educador, Abgar Renault; enfim, um servidor da Igreja, inteligência versátil que deu à sua palavra uma destinação pastoral, Dom Lucas Moreira Neves.
À primeira vista nada parece aproximá-los, tal a diversidade de vocações que seguiram na sua carreira intelectual e no desempenho de missões públicas no jornal, na magistratura, na diplomacia, no magistério, nos cargos executivos ou no ministério eclesial.
Entretanto, à medida que escavamos o subsolo dos seus textos à procura da inspiração que os ditou, tocamos o fundo comum que atraiu os olhares admirados dos contemporâneos. Em todos a prática intensa e assídua da linguagem serviu de instrumento dúctil ora para a formulação dos seus projetos, ora para a expressão da sua vida interior. Pelo uso da palavra-ação ou da palavra-reflexão ou da palavra-intuição, cada um deles construiu uma obra pessoal e teve acesso àquela dimensão histórica que transcende os confins temporais da existência e reclama, de pleno direito, o tributo de nossa rememoração.
Em face desse vasto campo comum da linguagem cumpre à nossa empatia de pósteros apreciar de perto as diferenças dos caminhos percorridos. É a história mesma desta cadeira que começa com um ostensivo contraste entre os seus dois primeiros ocupantes. Augusto de Lima, no seu discurso de posse, estranhou o fato de que um poeta grave e melancólico (assim ele se via a si mesmo) tenha sucedido a Urbano Duarte, cuja maior glória fora a de ter provocado hilaridade nos leitores dos seus folhetins cariocas.
Urbano Duarte não compartilhou os êxitos de seu mestre França Júnior, nem os de seu amigo e parceiro inigualável, Artur Azevedo. Mas, na modéstia da sua obra, surpreendemos um espírito ousado e penetrante. Foi ele dos primeiros a perceber que a deplorada decadência do teatro literário brasileiro no fim do século XIX se devia à escassez de recursos dos empresários nacionais que, reféns do gosto dos novos públicos menos cultos, não teriam condições de levar à cena textos dramáticos de alto valor estético. O dilema da empresa teatral – ou sustentar a criação independente ou entregar-se ao regime da mercadoria – já repontava nessa fase, prenunciando a invasão da cultura de massa. Urbano Duarte comenta desalentado em carta a Coelho Neto: “Não recebendo um real de subvenção dos cofres públicos, os empresários tornam-se escravos do gosto das platéias sob pena de fecharem as portas.” E adiante: “Aquilo é antes de tudo uma indústria, sujeita a mil ônus e despesas. Impossível lhes seria adotar outra orientação que não a seguinte: peças que fazem dinheiro, peças que não fazem dinheiro.” Veremos que, longe de ser um espírito conformista, Urbano Duarte cultivava uma saudável rebeldia em face dos senhores do poder.
Augusto de Lima se dizia poeta soturno ao se comparar com o folhetinista baiano, mestre do riso fácil e da escrita ligeira. A diferença entre os dois existe, de fato, mas não é menos justo dizer de cada um deles o que disse de cada um de nós o mais agudo dos moralistas franceses, La Rochefoucauld: “Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros.”
Os folhetins de Urbano Duarte, os seus Humorismos, nos dão o espelho da belle époque carioca com todos os vezos das revistas de ano, a variante em forma de crônica dos ridículos flagrados nas comédias de França Júnior e de Artur Azevedo. Mas o mesmo Urbano Duarte escreveu, de parceria com Artur Azevedo, em 1884, O Escravocrata, drama em que é o peso da opressão social, e não a fútil passarela da Rua do Ouvidor, que sobe ao primeiro plano do espetáculo.
A peça foi proibida pelo Conservatório Dramático, que, porém, se absteve de declarar os argumentos que justificariam a censura. É hipótese dos autores que o Conservatório tenha julgado indecoroso expor ao público o vexame de um casal da alta burguesia fluminense, cujo filho, já moço, vem a saber que seu verdadeiro pai é o escravo de estimação da família com o qual sua mãe cometera adultério. O ambiente é fosco, saturado de truculências contra os cativos. O Escravocratatermina tragicamente com o suicídio do pai escravo e do jovem bastardo. Não há catarse final. Brecht teria apreciado o didatismo cru desse teatro de crítica social: o espectador assiste direta e brutamente às mazelas de uma sociedade onde, apesar do triunfo iminente da campanha abolicionista, a instituição do cativeiro ainda gravava sobre a estrutura familiar brasileira.
O mesmo Urbano Duarte, que nos parece apenas faceto e jocoso, rindo-se ora do homem de cabeleira saindo do chapéu em forma de “S”, ora do janota de brilhante cheirando a heliotropo, foi capaz de cauterizar o absurdo da guerra (ele que chegara ao posto de major da artilharia!), compondo uma página de fogo, “Um homem contra um exército”: a crônica narra a história surreal de um oficial que do alto de uma fortaleza inexpugnável bombardeia a cidade do Rio de Janeiro, massacra o seu exército e, depois dessa vitória cruenta, mata-se dando um tiro na cabeça. Será isso humor negro ou, simplesmente, alegoria do humorista que para vingar-se da humanidade destrói a si mesmo? O riso se faz rictus: só engana o espectador desavisado que não percebe a amargura da fisionomia mal escondida pela máscara cômica. Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos como o somos dos outros.
*
A frase valerá também para o itinerário de Augusto de Lima. O poeta das Contemporâneas estreou na década de 1880 com uma obra que o distingue da tríade parnasiana por um envolvimento franco na batalha das idéias que se travava desde os anos de 70, o bando de idéias novas caracterizado por Sílvio Romero. Das três correntes filosóficas que disputavam então a primazia na cena intelectual brasileira, a positivista, a evolucionista e a monista, foi a última a que alcançou a adesão incondicional de Augusto de Lima:
Há uma só lei da Existência,
sob a esfera luminosa:
partilham da mesma essência
homem, ave, estrela e rosa...
É raro que a mera intenção filosófica garanta êxito ao poeta quando ele se propõe traduzi-la em imagem e ritmo. A poesia, em geral, precede o discurso abstrato: é linguagem auroral, na bela metáfora de Croce, que retoma as luminosas intuições de Vico. O percurso da poesia segue antes o rumo traçado pela imaginação do que os passos comandados pelo raciocínio. No entanto, se o poeta desce à riqueza do concreto e o poema toma corpo sob a forma de um motivo inspirador, as suas figuras e melodias exprimirão, no nível analógico, o que o pensamento busca formular no discurso lógico. Assim, a teoria monista professada por Augusto de Lima supõe a vigência de uma unidade profunda abraçando a variedade infinita dos seres. Essa idéia-matriz verteu-se com felicidade neste soneto mediante a imagem de uma concha; encostada ao ouvido do poeta, transmite-lhe o lamento do universo e de toda a humanidade:
Um dia, interrogando o níveo seio
de uma concha voltada contra o ouvido,
um longínquo rumor, como um gemido,
ouvi plangente e de saudades cheio.
Esse rumor tristíssimo, escutei-o:
– é a música das ondas, é o bramido,
que ela guarda por tempo indefinido
das solidões marinhas de onde veio.
Homem, – concha exilada –, igual lamento
em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento
aos recessos do espírito volveres.
É de saudade esse lamento humano
de uma vida anterior, pátrio oceano
da unidade concêntrica dos seres...
A doutrina monista com a sua crença na “unidade concêntrica dos seres”, apontava para a evolução ascensional do homem, a quem a ciência prometia o paraíso do progresso em espiral, indefinido. Mas a poesia lírica, enquanto refratária à redução ideológica, extraía da mesma fonte teórica a melancolia de uma solidão sem margens, as solidões marinhas que pairam tanto nos abismos do oceano como no coração do homem exilado em um mundo que lhe é estranho quando não adverso. E como não lembrar a poesia de Augusto dos Anjos, o poeta do Eu, estreante na geração que se seguiu à de Augusto de Lima?
O nosso poeta poderia ter-se emparedado nessa contradição e, como Augusto dos Anjos, poderia ter caído no impasse entre uma visão evolucionista do cosmos e uma inflexão subjetiva que encerra o indivíduo no cárcere de ser-para-a-morte. No foi esta, porém, a diretriz que Augusto de Lima acabou dando à sua vida de cidadão e à sua vocação de escritor. A política cedo o atraiu e absorveu. Foi presidente do seu Estado, um dos paladinos da construção de Belo Horizonte. Foi parlamentar em várias legislaturas do Congresso Nacional, constituinte em 34 e batalhador pelo ensino primário e normal. Defendeu o patrimônio artístico de Minas Gerais e restaurou o Arquivo Público Mineiro, essa admirável instituição de que foi diligente diretor. Vejo na sua atividade pública o avesso dialético da situação que marcara a sua juventude apertada entre o monismo e a angústia existencial. A política, na medida em que é assumida como arte de criar projetos, convida a construir corajosamente um futuro coletivo, não se exercendo sem forte dose de confiança no semelhante e no sentido da História. Quando um escritor de raça a ela se dedica, o uso que faz da palavra volta-se para a ação e salva-o daquele sentimento de impotência que tantas vezes a prática das letras pelas letras provoca nas consciências escrupulosas.
Se foi esse o roteiro de Augusto de Lima cidadão, o do poeta me parece ainda mais feliz. Da estação desolada de onde partira, caminhou para a figuração lírica de dois grandes libertadores, Tiradentes e Francisco de Assis. Ao nosso herói mineiro e ao Poverello da Úmbria dedicou os seus últimos escritos. A esperança no barro humano, fragilidade que se faz forte pela ousadia de perseguir um ideal, político ou místico, deu à trajetória de Augusto de Lima uma dignidade que suscita neste seu leitor de hoje o desejo de cumprir o mais grato dos deveres, o dever da memória.
Augusto de Lima faleceu em 1934 sem ver promulgada a Constituição para a qual ele tanto contribuíra. Não creio mero acaso o fato de os seus sucessores terem sido intelectuais estreitamente vinculados à vida pública. Victor Viana ocupou esta Cadeira no breve lapso de dois anos, entre 35 e 37. José Carlos de Macedo Soares pôde honrá-la ao longo de trinta anos, de 38 a 68. Se lembrarmos que o decênio de 30 foi um tempo de intensas transformações sociais no Brasil e no mundo, entenderemos o porquê da alta concentração de homens públicos que obtiveram na época o acolhimento acadêmico. Diversamente dos anos da fundação desta Casa, quando prevaleceu o critério literário de escolha, os anos de 30 e 40 assistiram à plena abertura a figuras de prol da vida da nação, parecendo seguir, nesse particular, uma sugestão que Joaquim Nabuco dera a Machado de Assis quando ambos discutiam em suas cartas o futuro da Academia. Nabuco propunha ao presidente Machado de Assis que a companhia que ambos haviam criado abrigasse não só puros homens de letras, mas intelectuais que se tivessem notabilizado em suas respectivas carreiras, fossem eles políticos, jornalistas, diplomatas, juristas, médicos, prelados, militares. Lembro que foram aqui recebidos naquele decênio de 30 homens públicos capazes de usar vigorosamente a palavra como instrumento de ação no terreno acidentado dos embates políticos e ideológicos: Otávio Mangabeira, Alcântara Machado, Barbosa Lima Sobrinho, Alceu Amoroso Lima (que dera em 1929 o seu adeus à disponibilidade, marcando a sua opção de intelectual engajado) e meus dois insignes predecessores, Victor Viana e José Carlos de Macedo Soares.
As opções doutrinárias de ambos espelhavam, pelo seu nítido contraste, as correntes cruzadas daquele momento crucial em que o Brasil encetava a superação do estágio de país essencialmente agro-exportador abrindo as veredas da modernização industrial apoiada pelo Estado. Victor Viana era sociólogo e jornalista de formação liberal clássica: apologista da ortodoxia financeira, da descentralização, do regime federativo e sobretudo das conquistas democráticas. Um liberal, na mais pura acepção do termo. Macedo Soares, por sua vez, inclinava-se para o modelo vigente do Estado operoso, que planeja e executa e, na fórmula pregnante de Augusto Comte, prevê para prover. O molde positivista foi a arqueologia do Estado-Providência, paradigma que norteou a conduta dos homens que fizeram a Revolução de 30.
Passados setenta e tantos anos, ao estudarmos a oposição entre liberalismo e Estado forte, entrelaissez-faire e dirigismo, volta-nos à mente a frase lapidar de Benedetto Croce: toda história é sempre, de algum modo, contemporânea do historiador. Também em nossos dias, vivendo contingências diversas, defrontamo-nos, a cada passo, com o dilema neoliberalismo ou Estado previdente, Estado mínimo ou Estado plenamente responsável. O contraste fazia-se particularmente agudo na medida em que a crise mundial de 1929 suscitara regimes intervencionistas, que iam desde os extremos fascista e bolchevista até as combinações social-democráticas do New Dealamericano e da Frente Popular francesa.
Victor Viana permaneceu, apesar desse contexto, fiel às tradições da economia política ortodoxa. É o que se depreende dos seus artigos, datados de 1933, sobre os méritos da Constituição inglesa (a Magna Carta era seu modelo permanente) e da Constituição norte-americana, que ele analisou em profundidade. Macedo Soares, situando-se no pólo oposto, fazia, ao tomar posse na Academia em dezembro de 38, o elogio da responsabilidade do Estado, que entre nós combinava uma política centralizadora com a modernização econômica, o apoio à indústria nacional e uma legislação trabalhista compósita, em parte avançada, em parte tuteladora.
No mesmo discurso Macedo Soares ressalvava, porém, um elo entre a sua concepção ideológica e a de Victor Viana: como o jornalista liberal, o diplomata exaltava a liberdade de expressão do pensamento, ponto de honra daquele que fora por longos anos mentor do Jornal do Commercio. Ambos tinham-se formado na Primeira República, ambos tinham aprendido com os mestres do nosso pensamento democrático, Rui e Nabuco, a respeitar os direitos individuais consagrados na Constituição de 91. Mas nem por isso Macedo Soares deixava de admitir que aquele mundo mudara após a crise de 29. São palavras suas: “O tempo de Victor Viana tinha passado. Feliz o sociólogo perempto, que não assistiu ao enterro das suas doutrinas.” E linhas adiante: “As instituições se atropelam, os estados sociais se sucedem tumultuariamente. Entre Victor Viana e seu sucessor quebramos uma esquina da história da civilização.” Segue-se uma curiosa diagnose do jornalismo do seu tempo, que teria passado da fase de liberdade de opinião, quase absoluta ao longo do século XIX, para os constrangimentos que lhe vinham impondo os interesses dos negócios ou a censura dos regimes totalitários. Assim a fala de Macedo Soares procurava conciliar o zelo ordenador do Estado e o ideal da liberdade de expressão, o que não deixava de ser, em 1938, um esforço edificante para perfazer a quadratura do círculo...
De todo modo, não devemos temer que o seu discurso resvalasse para a conivência com os regimes de força: Macedo Soares era sempre o humanista que nutria uma saudável desconfiança pelo que chamava “a demagogia dos técnicos”, hoje diríamos tecnocratas, encastelados no poder. “O técnico” – afirmava – “é a negação do político; o político floresce na praça pública, o técnico isola-se no laboratório.” Proféticas palavras.
O ideal supremo do diplomata é o de mediar conflitos e atingir um estado de paz. Foi este o legado maior do Embaixador Macedo Soares. Não me furto ao prazer de evocar algumas de suas gestões pacificadoras em diversas ocasiões da História brasileira e internacional.
Quando a Revolução de 24 começou a sitiar a cidade de São Paulo, ameaçando a população de privá-la de víveres de primeira necessidade e provocando a fuga de milhares de paulistanos para o interior, Macedo Soares, então presidente da Associação Comercial, decidiu, por sua conta e risco, parlamentar com os rebeldes e com as forças legalistas a fim de obter provisões e amenizar os rigores do cerco militar. Cessada a revolta, Macedo propôs anistia geral, mas a sua ação benemérita foi mal interpretada como colaboracionista com os amotinados. Foi julgado, preso e exilado. Três anos depois, o Supremo Tribunal absolveu-o, e os termos da sentença não pouparam elogios à sua intervenção humanitária. Recomendo vivamente a leitura do seu processo transcrito no volume que ele fez editar com o título de Justiça.
Seria sempre a vocação de mediador que iria levá-lo a pugnar pela paz na Conferência Mundial pelo Desarmamento em Genebra. Voltando dessa reunião, passou pela Itália e obteve de Mussolini, em um só encontro, que suprimisse da sua agenda certas propostas constrangedoras para a Santa Sé. O episódio é relatado por Deolindo Couto, a quem cito:
“Em 1932, ao regressar da Conferência pelo Desarmamento, onde presidira a Delegação Brasileira, Macedo transitou pela capital italiana, sendo recebido, em audiência especial, por Benito Mussolini. O preparo da entrevista fora esmerado e atendera a todas as minúcias de rígido protocolo. Depois de aguardar alguns minutos na ante-sala, o visitante haveria de entrar sozinho no comprido salão, ao fundo do qual o Duce se encontraria sentado junto à sua mesa de trabalho. Deveria o embaixador brasileiro ir até o hospedeiro e, somente então, este se levantaria. Nada disso funcionou, entretanto. Mal chegou, o Delegado do Brasil foi convidado a ingressar no lugar do encontro. O capo do Governo italiano saltou da cadeira, e, quase vociferando, rumou para José Carlos, que, assustado, lhe recolheu forte aperto de mão. Sentaram-se os dois, conversaram longamente, ultrapassando o prazo estipulado, e em tal clima que Macedo Soares se aventurou a revelar ao ditador suas preocupações: apurara, nos meios católicos de Roma, sério mal-estar ante a iminência de uma reunião oficial, em cuja ementa figuravam três itens seguramente delicados para as relações do Quirinal com o Vaticano. Mussolini indagou quais os assuntos e, ao inteirar-se destes, bradou: ‘TUTTI CANCELLATI!’. E depois de cordial abraço, Mussolini conduziu Macedo até à porta, que abriu, diante dos Secretários da Delegação Brasileira, preocupadíssimos com o vozear que haviam percebido. Sabedor do feliz resultado da intervenção de José Carlos, o Cardeal Eugenio Pacelli, então Secretário do Estado Pontifício (e futuro Papa Pio XII), visitou-o no hotel e pôs-lhe à disposição os arquivos secretos do Vaticano. Macedo aí fez copiar alguns dos importantes documentos que integraram seu precioso acervo destinado à redação dos 11 volumes que projetara sobre a História da Igreja Católica no Brasil.”
Desse trabalho resultaram as Fontes da História da Igreja Católica no Brasil, que é ainda hoje guia seguro dos pesquisadores de uma área só parcialmente conhecida pela erudição universitária.
Mas nenhuma outra prova do tino conciliador de Macedo Soares supera a sua intervenção decisiva no Encontro Interamericano de Buenos Aires, cujo alvo era pôr fim à Guerra do Chaco entre a Bolívia e o Paraguai. Corria o ano de 1935. A contenda assumia tais proporções que a imprensa a chamava Tragédia do Chaco. Cem mil vidas tinham sido ceifadas e dezessete gestões internacionais já haviam malogrado. A palavra do embaixador brasileiro foi certeira, não se limitando à discussão dos protocolos de paz, mas descendo à minúcia dos conselhos operacionais, o que atalhou as delongas da negociação in loco e impediu que a carnificina se prolongasse. Macedo Soares mereceu então o título de que mais se orgulhava: Chanceler da Paz.
Inspirado pelo dom do equilíbrio, Macedo Soares, nomeado havia apenas uma semana por Getúlio Vargas ministro da Justiça, mandou pôr em liberdade nada menos que 408 presos políticos acusados, sem formação de processo, de participar da Intentona de 35. Foi a “macedada”! Estávamos em junho de 37. No dia 5 de novembro, o ministro pediria demissão do cargo, sendo substituído no dia 9 por Francisco Campos. O que aconteceu a 10 de novembro de 37 é de conhecimento geral e, de todo modo, não figura no currículo deste meu ilustre antecessor.
Peço licença para uma recordação pessoal, a única que guardo de Macedo Soares. Em 1960 a Comissão Estadual de Literatura de São Paulo convidou-nos, ao Prof. Nilo Scalzo e a mim, para organizar uma edição das Poesias de José Bonifácio, o Moço. Tivemos dificuldade de encontrar o livro de estréia do poeta, Rosas e Goivos, datado de 1848 e não mais reeditado. Recorremos ao Acadêmico José Carlos de Macedo Soares, em cuja opulenta brasiliana talvez se encontrasse um livro tão raro. O embaixador nos recebeu com a sua habitual gentileza: não possuía a obra, mas faria buscas no Instituto Histórico e na biblioteca desta Academia. Obtendo o volume, providenciou um fac-símile que serviu de base para o nosso trabalho de editores. Lembro-me de ter ido à sua residência, o solar da Rua São Luís (havia solares no centro da cidade), onde recebi de suas mãos a cópia do precioso exemplar.
Para ele, tinha sido apenas mais um gesto de cortesia. Para mim, recém-egresso do Curso de Letras da Faculdade de Filosofia, era o primeiro trabalho de crítica e edição de texto poético: o passo inicial de uma carreira dedicada às nossas letras, e que hoje está sendo tão generosamente recompensada.
A poesia de um homem público, José Bonifácio, o Moço, ligou-me à memória deste outro homem público, que, no entanto, só escreveu em prosa, linguagem das idéias e da ação. Mas o acaso quis que fosse a poesia a mais alta expressão do sucessor de Macedo Soares – Abgar Renault.
*
Glosando a frase de Antônio Feliciano de Castilho no paralelo que fez entre Vieira e Bernardes, eu diria com a mais cândida das franquezas: a prosa admira-se, a poesia admira-se e ama-se. Foi com emoção que li os textos originais e as versões que Abgar Renault fez dos poetas ingleses e de Tagore: um encontro de maravilha e afeto. E pergunto-me: como um poeta tão denso pôde ficar desconhecido de mais de uma geração de leitores de poesia? A sua extrema discrição, levada a um escrúpulo tenaz deixou oculto por longos anos um tesouro de beleza que só a conspiração solerte de alguns amigos fiéis alcançou dar a público. Leio na auto-análise desse esquivo autor:
“Não serei um marginal da literatura. Serei, antes, um marginal da publicidade, pois fui sempre menos cuidoso de editar que de compor. Não é que desdenhe da publicação: sou possuído continuamente da angústia do pensado à pressa, do indecorosamente composto, do escrito em estilo pedestre. É certo que o prazer de exprimir-se nada tem de comum com o ato exterior de dar a lume o expresso. Em mim aquele prazer, que existe, alguma vez, no compor um poema, exaure-se no próprio ato da escrita.”
Essa reserva explica o fato de Abgar Renault, tendo elaborado sonetos camonianos aos 22 anos de idade e continuado a escrever nos anos de juventude e maturidade, só quase septuagenário consentiu na edição do seu primeiro livro de poemas, A Lápide sob a Lua, a rigor fora do mercado, pois saiu em diminuta tiragem pela Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais. Igual condição de semiclandestinidade sofreu o seu original poema longo, misto de vanguarda experimental e classicismo, Sofotulafai; o nome estranho evoca uma cidade mítica da Ásia, na verdade a Pasárgada de Abgar Renault. Saiu em 1972 em edição particular. Quanto a outros poemas seus, só receberam letra impressa quando veio a lume a Obra Poética, em 1990, isto é, às vésperas do seu nonagésimo aniversário!
Essa modéstia, avessa ao brilho dos fogos de palha, fez com que o poeta desse prioridade à palavra do Outro em vez de a tudo preferir a comunicação da própria subjetividade. Abgar só publicou a sua poesia depois de ter-nos dado a escutar a voz de poetas ingleses que disseram em versos despojados a sua experiência na Primeira Guerra; e só depois de transpor para o nosso idioma a aérea tessitura dos poemas de Tagore, A Lua Crescente, Colheita de Frutos, Pássaros Perdidos.
Traduzir poesia é empresa ingrata, ao mesmo tempo necessária e desesperada. Wilhelm Humboldt, citado por Abgar, disse drasticamente: “Toda tradução parece-me simplesmente uma tentativa de levar a cabo uma tarefa impossível.” O impasse deriva da essência da linguagem poética na qual som e sentido se acham conjugados de modo indissolúvel. Mas o que importa é criar uma obra que faça entrever a beleza do texto-fonte. Ouçamos o juízo severo de Dante Alighieri:
“Nada que seja harmonizado pelo vínculo das Musas pode ser transposto do que lhe é próprio para outra língua sem destruir toda a sua doçura.” E Cervantes não é menos cortante: “A tradução de uma língua para a outra é como olhar pelo avesso uma tapeçaria flamenga.”
Em compensação, Goethe com o seu olímpico equilíbrio atenua a sensação de desalento que esses juízos radicais podem provocar: “Diga-se o que se quiser da inexatidão da tradução, ela continua a ser uma das ocupações mais importantes e dignas dos assuntos universais.” E que assuntos mais universalmente humanos do que os modulados pela poesia, que Aristóteles considerava mais filosófica do que o discurso da História?
De quantas vozes Abgar Renault se fez concha de ressonância, de quantas soube captar amorosamente o som e o sentido! Os poetas-soldados, que deram à literatura inglesa dos anos 40 um acento de viril melancolia, falam em nossa língua graças ao sábio artesanato de Abgar. Cito um passo da versão de Fragmento de Rupert Brooke:
Esta noite vaguei uma hora no convés,
por sob um céu nublado e sem lua, e, espiando
pelas janelas, vi meus amigos à mesa,
ou jogando, ou de pé na entrada, ou caminhando
para a treva. Nenhum, porém, podia ver-me.
Neles (dentro de seis dias iam lutar...
nem lembravam sequer!) eu pensaria, talvez
com dó e orgulho do poder e da firmeza,
da força e igual beleza dos seus corpos... dó
de a máquina jovial desse esplendor quebrar-se
esmagada, dispersa, esquecida... Mas, só
os via – contra a luz, quais sombras a passar,
coloridas, e mais finas que tênue vidro,
frágeis bolhas de ar mais fracas do que a do mar
fraca luz, que na noite em fósforo se espalha,
perecíveis criações e fantasmas estranhos,
já prestes a morrer para os outros fantasmas
– este, ou aquele, ou eu.
(Para a sonoridade do inglês, constante da rima Soon to die, / this one, or that, or I, o tradutor explorou a equivalência da rima assonante em /e/: prestes a morrer, / este, ou aquele, ou eu. Creio que o nosso poeta alcançou aqui tecer mais do que o avesso da tapeçaria flamenga, de que falava Cervantes, pois manteve não só o desenho semântico, mas uma rima correspondente dentro das possibilidades de nossa língua.)
Além dos poetas ingleses de guerra Abgar traduziu vozes menos conhecidas entre nós naqueles anos 40, como as de Emily Dickinson e de Yeats. Ainda mais notável foi a sua escolha pioneira de poetas negros norte-americanos. Eram anos aqueles de cruel discriminação nos Estados Unidos, de modo que devemos orgulhar-nos de contar entre os nossos confrades sempre vivos com um poeta já então sensível ao canto sofrido de todo um povo. Dentre os escolhidos por Abgar destaco dois que me impressionaram vivamente: Countee Cullen, morto em 1946, e Langston Hughes. Do primeiro, leio este
Acontecimento
Andando em Baltimore
repleto de alegria
eis que um menino vi
com insistência a olhar-me.
Eu tinha oito anos, era
pequeno, ele também.
Sorri; mostrou, zombando,
a língua, e disse: “Negro”.
Vi toda Baltimore
de maio até dezembro,
de tudo que aconteceu
eis tudo o que ainda lembro.
De Langston Hugues,
Canção para uma mocinha negra
Lá no sul, em Dixie
(matem meu coração),
enforcaram meu namorado
na árvore de uma encruzilhada.
Lá no sul, em Dixie
(ferido corpo pende no ar),
perguntei a Jesus branco
de que valia rezar.
Lá no sul, em Dixie
(matem meu coração)
o amor é uma sombra nua
numa árvore nodosa e nua.
(Way down South in Dixie
Break the heart of me
Love is a naked shadow
On a gnarled and naked tree.)
Mas das entranhas da humilhação pode nascer uma poesia de resistência, um átimo de altiva afirmação da própria identidade de negro e americano. São do mesmo Langston Hughes os versos desta
América
Eu também canto a América
Eu sou o irmão mais escuro,
Mandam-me comer na cozinha
quando há visitas,
mas rio-me,
como bem
e fico forte.
Amanhã,
sentar-me-ei à mesa
quando houver visitas.
Ninguém ousará
dizer-me
então:
“Vai comer na cozinha”.
Além disso,
verão como sou belo
e se envergonharão.
Eu também sou América.
Penso agora na trajetória poética de Abgar Renault, tão lucidamente analisada pela Prof.a Solange Ribeiro de Oliveira na sua obra, ainda inédita, Viver Passou Aqui, cujos originais a Autora fez a gentileza de me dar a conhecer. É com renovado encanto que lemos os poemas de Abgar, aqueles que traduziram não a voz do outro, o idioma alheio, mas a sua própria subjetividade macerada em nossa língua portuguesa, que ele cultivou com zelo inexcedível. Trata-se de poesia de desengano, poesia que beira a solidão absoluta, imagem de um ser que se sente perdido naquele vasto e estranho mundo de que fala o seu amigo fraterno, Carlos Drummond de Andrade. “Desamparo” é o título de um dos seus poemas livres no metro, mas rimados em dísticos perfeitos:
Estou pobre, triste e nu como no instante em que nasci, / tão desamparado e ausente, que tenho a ilusão de que morri. / Doem na areia os meus olhos sem paisagem e sem porto, / e a vida sabe-me intimamente a um pedaço de mar morto.
O cerne dos significados deste e de outros poemas é o sentimento do irreversível, a lembrança de um tempo remoto, talvez feliz, mas que não se recupera jamais:
Não torna a vida que das mãos íntimas soltamos,
não tornam vozes de aves aos mesmos velhos ramos,
e não beberei jamais em meu nenhum instante
a vida que entornei por sobre um chão distante.
No entanto, esse homem que confessara quase em surdina – “sou uma criança sem mãe e sem brinquedos; / tenho ar, sombra e tristeza entre os meus dedos” – foi, dentre os nossos companheiros ausentes, o mais animoso dos educadores, incentivador de todos os graus e formas de instrução, fosse esta superior ou técnica, profissional ou clássica. São da mais viva atualidade os seus textos sobre o ensino rural enfeixados em A Palavra e a Ação.
Mais uma vez, somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros. Lendo certas passagens do discurso que Abgar Renault proferiu ao despedir-se do Conselho Federal de Educação, compreendo que este educador nato vivia dialeticamente entre a utopia e o ceticismo. Destaco um único parágrafo:
“Em 1968, o Delegado do Brasil junto à ONU, Emb. Araújo Castro, um dos cimos da nossa diplomacia em todos os tempos, sugeriu que dos orçamentos militares dos países então representados se deduzisse a importância de um por cento, com a qual demonstrou que seria possível resolver os problemas de educação e saúde do mundo inteiro. No final do seu dramático apelo, exclamava: ‘Senhores! o que vos peço é apenas um por cento da vossa loucura!’” E Abgar conclui: “A sua voz afundou sem resposta num vácuo absoluto.”
A concepção humanística da educação é o traço que aproxima Abgar Renault e o último ocupante desta Cadeira, D. Lucas Moreira Neves. Mineiros ambos como mineiros eram Augusto de Lima e Victor Viana. Afinidades históricas garantem nossa amistosa companhia: “Minas, fruta paulista”, dizia Mário de Andrade.
Abgar e D. Lucas atuaram em esferas complementares. O primeiro ocupou postos de relevo na administração da sua província e do Distrito Federal, onde foi secretário da Educação; chegou a ministro da mesma pasta e ilustrou por longos anos com seus pareceres os Conselhos nacionais de Educação e Cultura. Entre outras missões representou o Brasil em vários encontros da UNESCO, organização a cujo nascimento assistiu em 1945. Quanto a D. Lucas, concentrou o seu talento na militância pastoral, atividade própria do homem de Igreja investido do papel de formar almas, logo de educar. Entre as suas numerosas crônicas, reunidas em O Homem Descartável, A Sarça Ardente e Memorial de Fogo, as mais incisivas são as que tratam de educação, seu tema recorrente.
Se o meu contato com o Acadêmico Macedo Soares resumiu-se a um breve diálogo na sua biblioteca, o meu encontro com D. Lucas nos anos 50 foi mais significativo. Ele não era ainda D. Lucas, Primaz do Brasil, mas Frei Lucas, da Ordem dos Dominicanos, à qual fora atribuído o papel nada fácil de assessorar a Juventude Estudantil, ramo da Ação Católica.
O adolescente que eu era estava à procura de um cristianismo que não voltasse as costas para o mundo conturbado da História, mas militasse no sentido de humanizar e, no limite, superar as estruturas iníquas do capitalismo selvagem que já então se fazia visível em toda parte e, especialmente, no Terceiro Mundo, conceito que estava nascendo naqueles anos de pós-guerra. É notória a ação formativa dos pregadores de São Domingos atuantes no Convento das Perdizes, viveiro de uma geração que aspirava a uma reforma da mentalidade estreita que abafava não poucos setores da Igreja. Ora, uma das tônicas do engajamento de Fr. Lucas era a da urgência de uma abertura ecumênica que levasse o jovem militante a aprender com outras igrejas cristãs, sobretudo as protestantes, a prática da liberdade de consciência, base das democracias modernas. O seu ensino visava à superação dos fanatismos e das atitudes de fechamento intelectual que hoje deploramos com o nome de fundamentalismo. Entre as suas estrelas-guia figurava Alceu Amoroso Lima, que por tantos anos honrou esta casa e que estimulava os jovens a ler Péguy e Mounier, Maritain e Simone Weil, Teilhard de Chardin e um dominicano que deixou marcas indeléveis nos meios progressistas de São Paulo, o Padre Lebret, mais tarde consultor ativo do Concílio e principal redator da encíclica Populorum Progressio de Paulo VI.
Pessoalmente não pude acompanhar senão de longe a carreira de D. Lucas, que, chamado a Roma, ocupou cargos eminentes na administração eclesiástica. A imagem que dele me ficou foi a de um frade de maneiras afáveis, olhar atento e fala mineiramente mansa, que nos convidava a franquear aquele divisor de águas de uma cultura passadista para uma cultura aberta aos ideais universais de liberdade e justiça.
Não tendo em momento algum perdido a fé nesses valores, entrei na Universidade de São Paulo onde exerço até hoje o ofício de leitor de Literatura Brasileira. A minha cara Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras teve como um dos seus fundadores Fernando de Azevedo, o primeiro elo entre a Universidade de São Paulo e esta Academia. Dentre os mestres que me formaram no Curso de Letras Neolatinas desejo lembrar, ao menos, aquele que me iniciou nos segredos da poesia italiana e universal, Italo Bettarello, de quem fui assistente e a quem presto nesta hora meu tributo de admiração e saudade.
Devo agradecer a Deus ter reencontrado em uma grande universidade leiga e pluralista os mesmos ideais de tolerância e respeito que aprendi junto aos dominicanos, agora tão próximos de novo na figura de Fr. Lucas.
Percorrendo os Anais desta Casa, detive-me nos depoimentos que vários acadêmicos prestaram na sessão de saudade em homenagem a D. Lucas, havia pouco falecido. Fiquei sabendo das mostras de solidariedade que o então Bispo auxiliar de São Paulo dera a militantes e intelectuais cristãos do Rio de Janeiro acusados de subversivos pelos órgãos de repressão a serviço da ditadura. Conheci, por esses testemunhos, novas e belas facetas do meu antecessor. E, sobretudo, reafirmou-se, em minha consciência de amador da História, a convicção de que o caráter de um homem é a somatória de todos os seus atos; e que é um grato dever ajuizar o semelhante pelos seus momentos de alta tensão ética, isto é, por aquelas ações cuja prática torna a pessoa digna dos seus próprios valores.
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Meus caros confrades, França Júnior, Urbano Duarte, Augusto de Lima, Victor Viana, Macedo Soares, Abgar Renault, Dom Lucas, nossos companheiros de outros tempos, nos chamam e pedem que sejamos seus contemporâneos. A resposta que lhes damos deve ser uma só: vós sois também nossos contemporâneos, pois o dom da gratidão torna todos e cada um vivo e presente, abolindo o tempo e vencendo as distâncias que nos separam. A Academia Brasileira de Letras dá exemplo dessa generosa convivência que a memória cria sempre que a exercemos do fundo do coração.
Que uma frase grávida de esperança no ser humano, dita por Teilhard de Chardin, sirva de fecho a estas palavras de reconhecimento daqueles que, na diversidade dos caminhos percorridos, acreditaram na força do espírito: “Tudo o que sobe converge.”
Obrigado.