PERDA DA FÉ
Até os quatorze anos conservei-me católico fervoroso, confessando-me e comungando com frequência. Em começos de 1919, porém, tendo sido atropelada uma ex-empregada nossa, Rosalina, fui, com minha mãe, visitá-la numa casa de cômodos instalada em velho casarão na rua Carvalho de Sá, pouco acima da Igreja Nossa Senhora da Glória. Logo na entrada deparamos com crianças de três a quatro anos seminuas, muito magras e pálidas, de barriga estufada, num estado de subnutrição impressionante. Tudo nesse velho casarão denotava a miséria dos seus moradores. O quarto em que estava a nossa antiga empregada devia ter pouco mais de doze metros quadrados e nele, segundo nos declarou, dormiam, na maior promiscuidade, oito, e, às vezes, dez pessoas. Foi o meu primeiro contato violento com o sofrimento humano, passando, desde esse momento, a perguntar-me: sendo Deus onipotente, onisciente e de infinita bondade, como pode consentir tanta desgraça na terra?
Então me veio à memória o que havia lido com meu pai, no livro de Cícero sobre a Natureza dos Deuses, onde narra que perguntando Hierão de Siracusa a Simônides: "Que coisa é Deus"?, pediu-lhe o filósofo alguns dias para responder, findos os quais lhe disse: "Quanto diutius considero, tanto mihi res videtur obscurior" - "Quanto mais penso, tanto mais obscura se me apresenta a coisa", conceito que, ao analisar com o professor Bôscoli a estrofe 80 do canto 10o dos Lusíadas, vi confirmado pelo vate luso:
"... mas o que é Deus, ninguém o entende
Que a tanto o engenho humano não se estende."
Pondo-me, a partir desse momento, a investigar o grave problema que me salteou na casa de cômodos da rua Carvalho de Sá, encontrei, na biblioteca de meu pai, o livro de Jules Carré: Démonstration de l'inexistence de Dieu, onde ele atribuiu a Epicuro, no terceiro século antes de nossa era, o seguinte raciocínio, desde então, a meu ver inabalável:
"O mal existe. Todos os seres vivos sofrem, ora pelo corpo, ora pelo espírito. Padecemos pelas intempéries, pela miséria, pelas doenças, pela ignorância, pelos vícios, pelas injustiças, pelas guerras, etc. Crianças há que só nascem para sofrer e morrer. Homens existem de tal modo desgraçados que melhor lhes fora nunca haverem nascido. O mal existe, portanto: eis uma verdade incontrovertível. Ora, uma de três: 1ª (Deus sabe que o mal existe, pode suprimi-lo e não quer fazê-lo - tal Deus seria mau, logo inadmissível); 2ª Deus sabe que o mal existe, quer impedi-lo e não o pode; neste caso não seria todo poderoso, e, consequentemente, é inadmissível; 3ª Deus não sabe que o mal existe, donde Deus seria ininteligente, e, portanto, também inadmissível" (Apud Jules Carré: Démonstration de l'inexistence de Dieu, págs. 5 e 6 da ed. de Paris, 1912).
Logo, se Deus existe, ou não possui, em grau infinito, bondade, poder e inteligência, ou, se os possui, procede como se não interferisse nos acontecimentos terrestres. Daí não há como fugir.
Não constituem os terremotos catastróficos, como o de Lisboa no século XVIII, cidade tão exaltadamente católica nesse tempo, a prova cabal de que se existe, no Universo, um Ser Superior, ele não se ocupa com as minúcias do que ocorre em nosso miserável planeta?
Na observação de Pascal, há ainda mais: segundo as leis naturais, se Deus existe é incompreensível, porque não tendo partes, nem limites, nenhuma relação apresenta conosco, escapando aos nossos sentidos e à nossa mensurabilidade. A concepção de Deus se torna, pois, a seu ver, um assunto muito mais de sentimento do que de razão: quem crê em Deus o sente, mas não o demonstra.
Por outro lado, quaisquer que sejam as opiniões adotadas sobre Deus, a alma, a criação, a eternidade da matéria, os milagres, o céu, o inferno, a Trindade, a encarnação e a crucificação de Jesus Cristo, de onde vêm e para onde vão os homens depois da morte, em nada essas opiniões modificarão o curso das coisas do Universo, chegando o maior sábio e santo ao termo de sua existência tal qual o mais completo imbecil e o mais execrável criminoso.
Fui, desde então, atormentado por cruciante perplexidade, ficando em condições de avaliar bem o sofrimento daquele "grande mestre de teologia" da Universidade de Paris, o qual, conforme conta Joinville em sua vida de São Luís, um dia procurou, sucumbido, o Bispo de Paris, a fim de dizer-lhe, debulhado em amargas lágrimas, que não podia mais obrigar o seu espírito a crer o que, sobre o sacramento do altar, ensina a Igreja.
Afligia-me, na perda de minha fé, o desmoronamento de que via ameaçados os princípios morais e sociais, que até aí me haviam norteado a vida, esteados todos na concepção de Deus, ministrada pelo Catolicismo. E, a partir desse momento, passei a fazer aproximações entre as desordens morais e sociais de nossos dias e as que afligiram a Roma dos Césares, de que tomara conhecimento através de Tácito, Suetônio e Petrônio.
Meu sofrimento decorrente desse estado de espírito foi muito grande. Mais de uma vez procurei o confessionário da Igreja São João Batista, na rua Voluntários da Pátria, e expus ao seu vigário, Padre Rosalvo Costa Rego, as angústias que me iam na alma. Em seus conselhos, como confessor, ele advertiu que o único remédio, para os problemas que me atormentavam, era a oração, cabendo-me implorar ardentemente a Deus que me concedesse de novo a graça da fé, afastando de meu espírito as dúvidas nele suscitadas pelo sofrimento das camadas pobres de nossa população. Numa dessas conversas lembrou-me que, diante do mesmo problema, caíra Santo Agostinho na heresia maniqueísta, passando a admitir dois princípios igualmente poderosos - o do Bem e o do Mal. Dela só se livrou ao rejeitar a razão no exame dessas questões para exclusivamente aderir à fé, que não admite empreenda o homem penetrar nos imperscrutáveis desígnios e mistérios da vontade de Deus. Seria o mesmo que o barro a interpelar o oleiro por fazer dele um vaso desta ou daquela forma.
Por mais porém que rogasse e apelasse para a graça divina no sentido de restituir-me a fé perdida, jamais a recuperei e atravessei perto de quatro anos em cruel descrença e pessimismo, deleitando-me, nessa fase, com a leitura de Nietzsche e Schopenhauer, sobretudo as Dores do mundo deste último, numa tradução, se não me engano, de Albino Forjaz Sampaio, editada em Lisboa. Assim me mantive até meados de 1922.
Epitácio Pessoa, sobrinho do Barão de Lucena, fora recebido com sérias restrições pelos positivistas ao ascender à Presidência da República, visto acharem que era um saudosista da monarquia, sendo disto indubitável indício haver restabelecido as ordens honoríficas prescritas pela nossa Constituição de 1891, a qual mantivera, sob este aspecto, as tradições da Revolução Francesa. Contra ele tomou posição veemente Reis Carvalho, e, em represália, Epitácio o transferiu do seu posto da Alfândega do Rio para a de Manaus. Era esta uma cidade inóspita, e, vindo a adoecer, Reis Carvalho pediu uma licença a fim de tratar-se no Rio. Para embarcar, exigiram-lhe, porém, de acordo com recentes determinações do Governo Federal, atestado de vacina. Insurgindo-se, contra esta última, velho cavalo de batalha de seus correligionários da primeira geração, Reis Carvalho requereu um habeas-corpus ao Supremo Tribunal Federal, através do Dr. Bagueira Leal e do Dr. Otávio Murgel de Rezende. Meu pai que adquirira, em seu convívio com João Pinheiro, simpatias pelo Positivismo, lhe deferiu o pedido em longo voto exarado na sessão de 19 de abril de 1922, o que levou o Dr. Bagueira Leal a oferecer-lhe várias publicações do Apostolado Positivista do Brasil, entre as quais o Esboço biográfico de Benjamin Constant, da lavra de Teixeira Mendes.
Concluindo eu então os meus preparatórios, devia nesse ano prestar exame de História do Brasil. Em meados de abril, tendo de faltar algumas aulas, o professor dessa matéria, Roberto Seidl, determinou lhe apresentassem os seus alunos, por escrito, nos primeiros dias de maio, os seguintes trabalhos: "Qual o papel de Benjamin Constant na fundação da República?" "Merecem aplausos as intervenções do Brasil no Prata?" "Foi benéfica ao Brasil a influência do Marquês de Pombal?"
Os compêndios de História do Brasil apenas consignavam, nesse tempo, a propósito da fundação da República, que o tenente-coronel Benjamin Constant também participou do movimento revolucionário, coadjuvando Deodoro. Procurei, pois, meu pai e disse-lhe que, tendo acompanhado, como estudante em São Paulo, os antecedentes da República, talvez pudesse fornecer-me dados para o ponto pedido a propósito da atuação de Benjamin Constant. Deu-me ele então o Esboço biográfico de Benjamim Constant por Teixeira Mendes, que dias antes recebera do Dr. Bagueira Leal, e me declarou: "Muito mais do que qualquer esclarecimento de minha parte sobre Benjamin Constant e a fundação da República, vai valer-lhe o livro de um dos nossos homens mais notáveis. É o chefe dos positivistas ortodoxos do Brasil e alia, a enorme saber, insuperável correção moral. Ainda há poucos dias li um artigo em que se dizia ser este volume de Teixeira Mendes, pela independência e honestidade, um dos mais sérios de nossa bibliografia histórica."
Observava Bossuet ser a "conversão uma iluminação súbita". Foi o que ocorreu comigo ao ler o livro de Teixeira Mendes, embora, literariamente, devo confessar, deixe muito a desejar, não sendo de leitura fácil. Muitos anos depois cheguei a almejar a perda de minha memória para lê-lo, como o fiz pela primeira vez, isto é, com o deslumbramento que, nessa quadra, se apossou de mim. Foi o momento mais decisivo de minha formação, desvendando-me um mundo moral, social e cultural inteiramente novo, para o qual estava amadurecidamente preparado. Por pouco se repetiu em minha leitura do Esboço biográfico o episódio daquele abade do século XVIII que, pretendendo assinalar os trechos mais belos da Ilíada, ao concluir-lhe a leitura viu ter marcado o poema inteiro. Mais tarde pude verificar, diante do que havia acontecido comigo, a procedência da observação de Pierre Laffitte, segundo a qual o positivista nasce e não se faz. Eu já era positivista sem o saber, e, por isto, devorei o volume de Teixeira Mendes com um encantamento que nunca mais encontrei em outro livro. Adotei-lhe todas as teses, inclusive as relativas à Guerra com o Paraguai, que Roquette-Pinto, frequentador assíduo das conferências de Teixeira Mendes no Templo da Humanidade, admiravelmente resumiu no discurso com que, em 3 de março de 1928, sucedeu a Osório Duque-Estrada na Academia Brasileira de Letras.
O professor Roberto Seidl gostou de tal modo de minhas composições sobre os pontos por ele dados para a dissertação de seus alunos que me aconselhou a guardá-las, o que fiz. Relendo-as, para escrever estas memórias, vejo que assim concluí a propósito do papel de Benjamin Constant na proclamação da República.
"Se não fosse Benjamin Constant, o levante de 15 de novembro não teria passado de simples movimento de quartéis, uma banal mudança de ministérios.
A César o que é de César. A Benjamin Constant, pois, a glória da fundação da República! Para que alguém se compenetre da magnitude do papel de Benjamin Constant, é preciso que leia o maior mestre sobre o assunto - Teixeira Mendes, em sua obra gigantesca, monumental: Esboço biográfico de Benjamin Constant."
O TEMPLO DA HUMANIDADE
Através do livro de Teixeira Mendes estava feita a minha adesão ao Positivismo, do qual, até então, nada conhecia, somente sabendo, de modo vago, pelo que ouvia em minha família, ter sido João Pinheiro seu adepto. Não contente com a leitura de tudo que meu pai possuía em torno de Augusto Comte e de sua doutrina, fui com ele, num domingo de maio de 1922, ao Templo da Humanidade erigido por Miguel Lemos e Teixeira Mendes no Rio de Janeiro. Íamos ouvir uma exposição da doutrina de Comte a ser feita, ao meio-dia, pelo Dr. Bagueira Leal.
O corpo do templo é formado por vasta nave retangular e um recinto em semicírculo, onde se acha o altar da Humanidade, constituído por grande quadro em cujo entablamento, acompanhando-lhe a curvatura superior, se lê, gravado em caracteres verdes, o verso de Dante:
"Vergine madre, figlia del tuo figlio."
Sobre uma coluna destaca-se, ao pé do quadro, o busto de Augusto Comte cercado por outro verso da Divina Comédia:
"Tu duca, tu signore e tu maestro!"
Na frente do busto está a tribuna de forma poligonal, ostentando no alto, em letras verdes, ainda um verso do florentino:
"Vien dietro a me, e lascia dir le genti."
Num dos lados do semicírculo se vê um quadro com Dante e Beatriz, e, ao longo da nave, abertos simetricamente nas paredes, quatorze nichos abrigam bustos policromos. Destes, treze evocam os principais promotores do progresso humano, que dão os seus nomes aos meses do Calendário Histórico instituído por Augusto Comte. Do lado direito, Moisés recorda a teocracia inicial; em seguida, Homero personifica os primórdios da poesia; depois Aristóteles - a filosofia dos antigos; Arquimedes a sua ciência; César a civilização militar; São Paulo o Catolicismo e, finalmente, Carlos Magno a civilização feudal. No lado esquerdo é glorificado o evolver da Humanidade nos tempos modernos, e o primeiro a aparecer é Dante encarnando a poesia épica; depois Gutenberg - a indústria; Shakespeare o drama; Descartes a filosofia; Frederico II a política; Bichat a ciência, e, por fim, no décimo quarto nicho, Heloísa relembra a mulher santificada pelo amor.
O oficiante iniciou a cerimônia com a saudação de São Bernardo à Virgem no derradeiro canto do Paraíso. E, assim, em meu primeiro contato com o Templo da Humanidade, deparei com Dante nada menos de sete vezes. Em seguida, aprofundando o estudo do Positivismo e tomando conhecimento do sistema de leituras aconselhado por Comte, saltou a meus olhos a Divina Comédia - "a incomparável epopeia em que até aqui reside o melhor título da arte humana", nas palavras do filósofo.
Envergando, com apuro, um paletó preto, colarinho duro e gravata preta, com a barba bem escanhoada, era o Dr. Bagueira Leal uma figura que se impunha pela dignidade e finura do trato. Era, além disto, um bom conferencista. Sem arroubos oratórios, a sua exposição prendia o auditório pelo seu espírito sintético e pela clareza com que apresentava os conceitos científicos, filosóficos, sociais e morais do Positivismo. Passei a ouvi-lo religiosamente aos domingos, muitas vezes acompanhado de meu pai, e nas chamadas festas sociolátricas instituídas pela Igreja Positivista. As suas preleções apresentavam um começo, um meio e um desfecho sempre harmoniosamente dosados, sendo grande a sua capacidade didática.
Considerando, desde então, o Positivismo um elemento primacial de minha felicidade, pondo fim à dúvida, à descrença e ao pessimismo, em que me deixara a perda do Catolicismo, julguei-me no dever moral de propagá-lo tanto quanto estivesse em mim, porque assim poderia beneficiar outros que passassem pela dolorosa crise moral e intelectual do que acabara de sair.
Pus-me, então, a ler os seis volumes do Curso de Filosofia Positiva e todas as obras de Comte e de seus discípulos biógrafos e comentadores, sem me deixar impressionar com as dissensões que os afastassem, num ou noutro ponto, da doutrina de seu Mestre. E li também com a sofreguidão de quem, atormentado pela sede do deserto, encontra água pura num oásis, as quatro seções da Biblioteca planejada por Comte: Poesia ou Literatura, Ciência, História e Síntese ou Filosofia.
Tem a seleção de obras organizada pelo filósofo o objetivo de sugerir e não o de excluir leituras. Partindo do princípio cartesiano de ser a leitura uma conversação com os autores, tomou, como norma, escolher, em cada gênero, os maiores escritores e as suas obras unanimemente consideradas mais perfeitas. É assim que a parte literária de sua seleção começa com Homero, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Píndaro e Teócrito entre os gregos antigos, seguidos de Plauto, Terêncio, Virgílio, Horácio, Lucano, Ovídio, Tibulo e Juvenal, entre os romanos.
Como amostra típica da Idade Média, indicou os Fabliaux recolhidos, no século XVIII, por Legrand d'Aussi, seguidos de Dante, Petrarca, Ariosto, Tasso, Metastásio, Alfieri e Manzoni. Além do teatro espanhol escolhido, abrangendo as melhores peças de Lope de Vega, Calderón de La Barca, Tirso de Molina e demais dramaturgos castelhanos, incluiu o Dom Quixote e as Novelas exemplares de Cervantes, seguido de Corneille, Molière, Racine, Voltaire, La Fontaine, Le Sage e Chateaubriand. Dos ingleses, figuram Shakespeare, Milton, De Foe, Goldsmith, Fielding, Walter Scott e Byron, completados por Goethe como representante da Alemanha, e as Mil e uma noites, os populares contos árabes.
As obras do setor científico constituíam um roteiro provisório, porque a ciência está sempre em desenvolvimento, e incluíam o que então havia de melhor sobre as ciências básicas - matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral. Na parte da História, estão arrolados os mais importantes autores do gênero desde Heródoto, Tucídides, Plutarco, César, Tácito, D'Ávila, Commines, Colline, Gibbon, Robertson, Hallam, Hume, Bossuet, Abade Claude Fleury, Abade Barthélemy, até Voltaire, Winchkelmann, Mignet, Cook e Chardin.
Finalmente, na seção de filosofia, além da Bíblia e do Corão, encontram-se A política e a moral de Aristóteles, A cidade de Deus, As confissões e o Comentário do sermão da montanha por Santo Agostinho, o Tratado do amor de Deus de São Bernardo, a Imitação de Cristo por Tomás de Kempis, o Discurso sobre a História Universal por Bossuet, os Ensaios filosóficos de Hume, a História da Astronomia por Adam Smith, o Quadro dos progressos do espírito humano, por Condorcet, a Política extraída das Sagradas Escrituras por Bossuet, o Tratado do Papa de Joseph de Maistre, a Interpretação da natureza e a Dissertação sobre os cegos e surdos de Diderot, o Discurso do método de Descartes, o Novum organum de Bacon, as Relações do físico e do moral por Cabanis, as Cartas sobre os animais de Jorge Leroy, o Tratado sobre as funções do cérebro por Gall, os Pensamentos de Cícero, Epicteto, Marco Aurélio, Pascal e Vauvenargues, as Considerações sobre os costumes por Duclos, entre muitos outros livros de igual valia, que constituem as mais altas manifestações do espírito humano na poesia, na ciência, na história e na filosofia.
Consagrando-me, com entusiasmo, à leitura, desde menino, a biblioteca aconselhada por Augusto Comte, por mim avidamente procurada e adquirida nos sebos, principalmente do velho José Matos e do meu querido Carlos Ribeiro, foi para mim um maná do céu. A fim de aproveitá-la devidamente muito contribuiu a cultura humanística que adquirira ao ler os clássicos romanos nas aulas com meu pai, que também me orientara no trato do que apresentavam de mais característico os escritores do Brasil, Portugal, Espanha, França, Itália e Inglaterra.
Na Igreja Positivista frequentei, além das conferências dominicais do Dr. Bagueira Leal, um esplêndido curso de Filosofia Primeira, ministrado por Sílvio Vieira Souto, e uns comentários à Síntese subjetiva por Luis Bueno Horta Barbosa, antigo catedrático por concurso do Ginásio de Campinas.
Travei então conhecimento com Teixeira Mendes e com vários jovens positivistas, dos quais me tornei amigo: Paulo e Trajano de Berredo Carneiro, Rodolfo Paula Lopes, filho do catedrático de Biologia do Colégio Pedro II, Rubem Descartes de Garcia Paula, Benjamin Barradas, Alberto Pizarro Jacobina, Jair Porto, Henrique Baptista da Silva Oliveira, Vinicius de Berredo, Carlos Palhano de Jesus e Luís Hildebrando Horta Barbosa.
Em 1924 Paulo Carneiro nos deu, no pavimento térreo da residência do Professor Rodolfo Paula Lopes, na Rua Silveira Martins, um excelente curso de química sob a orientação positivista, ao qual assistimos os dois Paula Lopes, pai e filho, João Francisco de Sousa, Rubens Lopes e José de Albuquerque, todos três estudantes de medicina, Alberto Pizarro Jacobina, Benjamin Floriano Barradas, Francisco Baiardo Horta Barbosa, Luis Hildebrando Horta Barbosa e eu.
Manifestação típica do meu estado de espírito, nessa quadra, é o discurso que, em 24 de novembro de 1925, proferi na Sala Daniel Encontre do Templo da Humanidade, ao encerrar-se o curso de Filosofia Primeira ali ministrado por Sílvio Vieira Souto a um grupo de moças e rapazes positivistas. Desse discurso extraio alguns tópicos característicos:
- A Religião da Humanidade é a síntese suprema em que se resume o labor das gerações que nos precederam, termo radioso alcançado por nossa espécie, depois de haver passado pelo Fetichismo, pelo Politeísmo e pelo Monoteísmo. Em cada uma dessas fases, que formam a evolução social preparatória, foi feita a cultura progressiva dos três atributos de nossa natureza: o sentimento, a inteligência e a atividade. A soma de esforços representada por essas três fases é imensa. Os seus obreiros, escalados através dos séculos, estão unidos pelo desejo comum de melhorar nossa espécie. Reconheçamo-lhes os serviços, venerando-lhes a memória e inspirando-nos em seu exemplo para levar a cabo a evolução social definitiva. O que eles prepararam e buscaram, com tamanho afã, pode tornar-se uma realidade graças ao Positivismo. A felicidade humana, que se idealizara de tantos modos nas utopias celestes e terrestres, construídas por numerosas almas nobres, há de ser obtida através dessa doutrina tão bela quanto verdadeira. Ela renova, melhorando-o, o exercício do sentimento, do pensamento e da atividade. Ao antigo egoísmo das razões teológicas substitui motivos sociais inteiramente desinteressados. Em vez do regime arbitrário e confuso das vontades sobrenaturais, introduz a exatidão das leis demonstráveis na explicação da Ordem Universal. Na política substitui o dever ao direito, a indústria à guerra e estabelece, entre os sentimentos, as ideias e os atos uma convergência jamais sonhada. É, portanto, a mais profunda revolução e a mais universal a que jamais haja aspirado a Humanidade. Fundar a harmonia geral da espécie, ao consolidar a Família, a Pátria, e a Igreja, elementos eternos da existência social, é alicerçar suas relações necessárias em bases mais seguras. Aperfeiçoando, por toda parte, a Ordem Universal, sobretudo humana, a Religião Final não concorre menos para o progresso: desenvolve, em todos os sentidos, a natureza do homem e dirige todos os seus esforços para a conquista dos tesouros espirituais: o belo, o bom e o verdadeiro. Libertando, em nome da ciência e da moral, de degradante miséria a imensa classe daqueles que concorrem para produzir toda a riqueza, oferece aos proletários as bases de uma família condigna. Respeitando a ordem, assegura a liberdade e separa os dois grandes poderes, teórico e prático. Reconstituindo o poder espiritual, o eleva à sua completa generalidade, tornando-o suscetível de estender-se à espécie inteira.
E, mais adiante, prosseguia eu: "Congreguemo-nos, pois, meus amigos, para apressarmos o advento dessa era em que por toda parte o homem, cidadão da Terra, estenderá ao homem a mão fraterna, a fim de enriquecer a Pátria comum, fecundando e abençoando essa mesma Terra de que depende a existência geral, melhorando-a e embelezando-a para transformá-la enfim no Éden sonhado nos primórdios da Humanidade. Para tal é imprescindível que a ação dos positivistas sobre os seus contemporâneos se exerça através do exemplo de um procedimento ilibado. Persuasão, demonstração, devotamento, eis os meios que devemos empregar para o prevalecimento da religião universal. Desprendamo-nos dos interesses pessoais que nos aferram ao presente e nos dirijamos com firmeza rumo ao futuro. Vivamos, em espírito, com os nossos descendentes para fazê-los felizes. Que o amor da Humanidade inflame as nossas almas e guie os nossos passos."
Como se vê dos extratos aqui transcritos, o encerramento do curso de Filosofia Primeira, em novembro de 1925, proficientemente ministrado por Sílvio Vieira Souto na Igreja Positivista, propiciou-me calorosa profissão de fé. Ao lê-la cinquenta anos mais tarde, penso que os jovens de hoje podem considerá-la ingênua e utópica. Hão de concordar, porém, que, sem entusiasmo, nada se consegue de grande e de nobre no mundo. Se as duas guerras mundiais de nosso século exacerbaram o egotismo de nossa espécie, levando os homens, embrutecidos pelo terror do amanhã, a se degradarem em gozos fáceis e desordenados, se romperam o pequeno verniz de moralidade da civilização dominante na Belle Époque, não deixa de ser verdadeiro que grande parte da humanidade continua em busca de um ideal que a eleve e lhe restitua a consciência de sua própria dignidade.
(Fragmento de Memórias, Revista Brasileira, fase VI, nº 3, 1977.)