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Leia aqui o discurso completo do ex-presidente Jose Sarney

 

Senhor Presidente Merval Pereira, senhores membros da mesa, meus confrades e amigos, aqui presentes, meus senhores e minhas senhoras.

Venho, mais uma vez, decano da casa, marcado pela circunstância de ser um sobrevivente, vivendo na saudade de todos os que me elegeram em 1980, há 45 anos, mas também de muitos outros confrades e amigos de eleição mais recente que a minha ou de outras gerações a quem aprendi a admirar e querer bem.

Venho lembrar hoje a comemoração com todos dos nossos 128 anos de fundação da nossa Academia Brasileira de Letras, depositária da glória que fica, eleva, honra e consola.

Agradeço a amizade e a consideração do nosso presidente Merval Pereira, admirado e reconhecido por todos nós, pela administração exemplar e pela competência com que tem conduzido nossa Casa.

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, em 1955, aos 25 anos, suplente de deputado federal, tendo a oportunidade de exercer o cargo, tive dois amigos que me acolheram no convívio intelectual da capital. Um, Josué Montello, que acabava de ser eleito para a cadeira número 29, de Martins Pena, seu patrono, e Arthur Azevedo, seu fundador. O outro, Odilo Costa Filho, ainda viria a ser eleito.

Em casa de Odilo, o maior dos amigos da minha vida, que foi, de certa maneira, minha casa, convivi com muitos acadêmicos. O primeiro deles, por todos os títulos, foi o poeta Manoel Bandeira.

Raimundo Magalhães Júnior. Anos antes, Magalhães Júnior escreveu que o jantar do dia 13, criado por Ribeiro Couto no começo dos anos 40, tinha a vocação de gerar acadêmicos, a começar pelo próprio Couto.

Além dele, Bandeira, Peregrino Júnior, Múcio Leão, Francisco de Assis Barbosa, Afonso Arinos, Odilo e Magalhães Júnior, omitiam a própria vontade com que logo depois concorreram a esta casa.

Ali conheci Gilberto Amado, com quem fiz grande amizade. Mais ainda, com a convivência que tivemos na Conferência das Nações Unidas de 1960, quando tive a oportunidade de com ele ali estar.

Ele, na parte relativa à Corte de Haya, e eu, membro da Comissão de Política Especial, onde nós discutimos o problema dos refugiados árabes da Palestina, que eram assim denominados aqueles que foram desalojados na área da Palestina, e também a questão do Alto Adge da Itália.

Mais amigo eu fui do seu primo, Jorge Amado, e de nossa querida Zélia.

E acrescento Raquel de Queiroz, Alceu de Amoroso Lima, Aurélio Buarque de Holanda, Austregésilo de Athayde, Américo Jacobina Lacombe, Carlos Chagas Filho, João Cabral de Melo Neto, Eduardo Portela, José Guilherme Merquior, Otto Lara Resende, Carlos Castelo Branco e meu antecessor na cadeira 38, José Américo de Almeida.

Marcos Vinícius Vilaça e Mauro Mota eu já conhecera em Recife, onde Mauro Mota chefiava o suplemento de letras do jornal de Pernambuco, o mais antigo jornal do país, e também nós iniciávamos o movimento chamado de o Neomodernismo Brasileiro, de 1945, que iniciava-se naquele instante, na qual ele tinha as revistas que, nacionalmente, eram editadas no Rio Grande do Sul, o Quixote, por Faoro, e no Paraná, a Joaquim.

Aqui no Rio de Janeiro, por Lêdo Ivo, a revista Branca. E nós também podemos citar a revista Região, que era de Pernambuco, com Mauro Mota e com Edson Regis. No Ceará, a Clã, que também tinha o grupo de Girão Barroso e todos aqueles que...E eu, no Maranhão, com Bandeira Tribuse e Ferreira Gullar.

Temos outros nomes que me vêm à memória, me atropelam a enxurrada da saudade que lavam nossas próprias lágrimas.

São 70 anos de minha vida que aí estão.

Hoje, como decano, devo enfatizar duas diretrizes básicas que nos guiam, deveres fundamentais pelos quais devemos zelar: a amizade e a tradição.

Agora, aí, no discurso lido de Machado de Assis pelo nosso presidente, ele diz que é o nosso primeiro voto aqui nesta Casa, a tradição. E Joaquim Nabuco depois fala da amizade, porque foi ela que conseguiu constituir o primeiro grupo que, na Revista Brasileira, germinou a nossa Academia.

Quando esta Casa foi fundada, o próprio princípio que norteou os jovens que se reuniram em torno de suas duas glórias eram os que haviam traçado a amizade.

Os dois, já consagrados, já haviam escrito Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Estadista do Império, que o meu pai sempre me dizia que era o melhor livro escrito ainda no século XIX e no princípio do século XX.

Um discurso brevíssimo de Machado e um mais longo de Nabuco.

Há um só tempo, a pedra fundamental e a pedra de toque da nossa Casa, nelas está o que somos e o que nós devemos ser.

A Academia nasceu na Revista Brasileira.

Naquele tempo, a revista era dirigida por José Veríssimo, em sua sede na Rua do Ovidor.

Os frequentadores de toda tarde, além de Veríssimo e Machado, eram Nabuco, Lúcio de Mendonça, Graça Aranha, Paula Ney, Domício da Gama, Alberto de Oliveira, Rodrigo Octávio, Silva Ramos e Filinto de Almeida.

Entre eles, surgiu naturalmente Medeiros de Albuquerque, que depois viria a ser presidente desta Casa e que fez uma brilhante administração aqui.

Nabuco era um aristocrata formado na Faculdade de Direito de São Paulo e de Olinda.

O outro, Machado, não tinha frequentado escola.

Milagre extraordinário de um homem que se educou sozinho.

Não estamos falando de aprender a ler, porque seu pai e sua mãe também sabiam ler.

Ia escrever em português, mas ele passou a escrever em francês e inglês.

Guardamos nesta Casa as páginas preciosas em que ele nos últimos anos estudava a vida; ele estudava no fim da vida alemão e grego.

As Memórias Póstumas de Brás Cubas marcam uma reviravolta na obra de Machado, e rompe a inocência da literatura brasileira.

Era a véspera de uma mudança em seu destino.

Cheio de amigos, amigo dos amigos, havia um vazio que, às tardes, nas reuniões literárias, os musicais que ele costumava frequentar, não cobria o da vida sentimental.

Surge, então, Carolina, com a disciplina de sua vida, numa família de praticantes das letras, ela lhe dará o fôlego para a transformação.

Mas lembremos que as Memórias Póstumas são um passo de gigante. Há um espaço até o Quincas Borba, dez anos depois, e outro espaço de oito anos até Dom Casmurro.

Vazios? Não. Cheios de páginas admiráveis, de obras-primas como O Alienista, Noite de Almirante, Teoria do Medalhão, A Causa Secreta.

Eu poderia me alongar sobre os contos exemplares e cada um de nós podia enumerar muitos deles e sempre ficava na memória o conto seguinte que nós também lembramos.

E não esqueçamos as crônicas, e não esqueçamos as suas poesias completas.

Esaú e Jacó e Memorial de Aires são dominados pela figura do conselheiro, que no último livro se evidencia como um autorretrato.

No último livro de suave leitura do mundo, As figuras de Aires e de Dom Carmo fazem o contraste da bondade com o descompasso do mundo.

O desabafo nas páginas finais, escritas quando as forças faziam, quando as doenças faziam o cerco final à sua vida, quando ele diz, estou só, totalmente só.

Nabuco se destaca entre os amigos e seu gesto de dedicar a Machado um galho de carvalho, de taço, no convento de Santo Onofre, no Janículo é, além do mesmo simbolismo de ligar o grande épico italiano ao grande romancista brasileiro, uma declaração de amizade, na linha da declaração de Montaigne à La Boétie.

Porque era ele, porque sou eu.

Longe de casa, Nabuco morreria pouco mais de um ano depois. Ambas as mortes foram choques para o Brasil.

Sr. Presidente, senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, temos a tradição de nos aniversários da Academia, agora, hoje, que estamos lembrando os seus 128 anos, marcar a comemoração com sua presença no universo dos escritores que ainda não estão entregando-lhes prêmio.

Esta tradição não vem dos primeiros dias.

É verdade que a tradição dos prêmios é antiga.

O primeiro prêmio surgiu pouco depois de morto o Machado, em 1909.

Foi o prêmio municipal.

Em 10 e 11, surgiram novos prêmios, mas, cortada a subvenção da academia em 1913, todos foram suspensos, só sendo retomados em 1917, quando a herança de Francisco Alves nos deu uma certa bonança financeira.

Em 1940, houve uma única edição do Grande Prêmio da Academia Brasileira.

Ganha, em escrutínio secreto, por Túnica Inconsútil, obra admirável de Jorge de Lima, escolhido entre 50 candidatos.

Ribeiro Couto, em fim de 1941, propõe uma reestruturação dos nossos prêmios literários, incluindo um sem candidatura, o Machado de Assis, pelo conjunto de obras.

Em 1933, uma academia Machado de Assis havia criado um prêmio com seu nome, mas eu pesquisei e não encontrei nada mais do que isso.

Em 1934, foi a vez de a Companhia Editora Nacional, em coordenação com a ABL, lançar o grande prêmio do romance Machado de Assis.

O ganharam em 1935, o único em que foi dado livros de grandes escritores, como Música ao Longe, de Érico Veríssimo, que, aliás, ganharia o nosso prêmio Machado de Assis, em 1953.

No centenário do nascimento de Machado, em 1939, portanto, por encomenda de Gustavo Capanema, Peregrino Junior preparou as regras de um plano Machado de Assis, acertado pelo Ministério da Educação e Saúde, no valor de dez contos de réis, destinados à obra inédita em diversos gêneros. Não consta que jamais tenha sido dado.

O Instituto Nacional do Livro, suprindo o vazio do Ministério da Educação, concede o prêmio Machado de Assis de Romance, que foi dado em 57 a grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, que já tinha ganhado também um prêmio de poesia magna, quer dizer, que foi publicado depois da sua morte, depois da morte de Guimarães Rosa, que eu também conheci em casa de Odilo Costa Filho.

E o nosso prêmio Machado de Assis, em 1963.

A tradição de dar os prêmios na festa de aniversário da Academia é bem mais recente.

Ela surgiu quando, em 67, depois de entregues os prêmios de 29 de junho, na véspera de tomar posse José de Almeida, o prêmio Machado de Assis foi outorgado a Adelino de Magalhães. Deixou para ser entregue na festa da Casa, celebrada em 12 de julho.

É natural que o nosso prêmio principal leve o nome de Machado de Assis e se destine à consagração de um escritor, em vez de ser um prêmio de estímulo.

As razões de darmos prêmios são muitas. A maior delas é que contém aquela mensagem de Alencar, de lhe entregar a proteção de Castro Alves. Ele era a generosidade em pessoa.

Raros foram os grandes nomes da literatura nas últimas décadas do século XIX e dos primeiros do século XX, que não lhe deram ao menos uma palavra destino.

Em geral, muito mais, desde oportunidades na vida até comemorações literárias.

Tudo discretamente Machado fazia, sem parecer que estava ajudando aqueles jovens escritores.

Senhor presidente, senhoras e senhores, alonguei um pouco a história desses prêmios para que a gente tenha noção - e o nosso ministro Ricupero tenha a noção também da importância e da grandeza da grande manifestação de apoio, de apreço que a Academia lhe faz nessa noite.

Sr. Presidente, senhoras e senhores, falei de Nabuco, o grande diplomata.

É hora de falar do grande e brilhante diplomata.

Já contei mais de uma vez o drama que vivi em 1985.

Quando, me preparando para cumprir o papel cerimonial de vice-presidente da República, tive que assumir o governo e, pior, acompanhar com profunda angústia a via cruicis de Tancredo Neves, a pessoa que o Brasil e a história haviam preparado para aquela transição.

Para conduzir a transição para a democracia, que graças a Deus, e eu tenho um pouco de orgulho de um pouco ter contribuído para isso, há 40 anos temos a democracia restabelecida em nosso país e os ventos da liberdade varrendo a nossa pátria.

O final da agonia, em 21 de abril, relacionava o seu sacrifício com o sacrifício de Tiradentes.

Mas ainda, como disse Afonso Arinos, muitos deram a vida pelo Brasil. Tancredo Neves deu a sua morte.

Eu estava longe de todas as providências de governo. Conhecia sua equipe. Uns mais, outros menos. Mas os fios da teia que Tancredo traçara para o governo desapareceram com ele.

Na equipe da presidência havia um grupo que eu acompanhava nos últimos tempos, fazendo com ele o roteiro de visitas aos governos amigos e construindo as primeiras pontes para a redemocratização e o necessário apoio internacional.

Nesse grupo estava o nosso premiado de hoje, embaixador Rubens Ricupero.

Passado o choque da morte de Tancredo Neves, Ricupero me procurou, desejando voltar ao Itamaraty.

Onde Olavo de Souza Setúbal lhe destinava um papel muito importante, partindo do pressuposto, em tese concreto, de que eu precisaria dos cargos para formar a equipe de minha confiança.

Eu é que não tinha nenhum interesse em perder o apoio desses homens altamente qualificados, que conheciam, se não os segredos de Tancredo, que eu os tinha escolhido, mas pelo menos as linhas gerais do que eu pretendia e os detalhes do que havia sido feito até aí.

Era o caso do embaixador Ricupero. Naquele momento, eu precisava muito dele e eu pedi que ele ficasse e ele ficou.

Foi uma das mais acertadas decisões que eu tomei.

O embaixador era, como é, um homem de extraordinária competência, com conhecimento que ia muito além das grandes exigências da carreira da diplomacia.

Dele e de alguns outros companheiros seus do Itamaraty, como Paulo Tarso, Seixas Corrêa e outros, me servi para iniciar a aproximação com a Argentina e Uruguai e para definir a política externa que privilegiava nossas relações com a América Latina.

Num texto primoroso, Diário de Bordo, escrito por Ricupero, todos podem conhecer hoje a essência do que constituíram seus conselhos, seu trabalho de assessoria, em cuja chefia, algum tempo depois, ele substituiu seu velho companheiro, meu velho companheiro Célio Borja.

Em seu dito livro, depois de primorosa análise global, Ricupero conta os encontros com o Papa, o governo e o governo italiano, com o Mitterrand na França, de quem depois também me tomei uma relação bem estreita.

Com Mário Soares e Ramalho Eanes em Portugal, com o rei Juan Carlos e Felipe González na Espanha, com Reagan nos Estados Unidos.

E aí a adversência de George Sootes sobre a visão do FMI sobre nossa dívida externa.

Com o Miguel de La Madrid, no México, com Alfonsín na Argentina. Os dois se tornaram também estreitos amigos meus. Muitos anos vivemos juntos depois que deixei a presidência.

De muitos desses homens, graças a esses passos iniciais dados por Tancredo e sua equipe, pude me aproximar e me tornar amigo.

Mas, sobretudo, pudemos alterar profundamente, para melhor, nossas relações diplomáticas.

Não se trata como pode parecer numa visão desatenta de um simples relatório.

O texto de Ricupero inclui como inicia seu trabalho ao meu lado, sua já então elaborada análise de coisas de nossas relações internacionais, com referência a fatos históricos e insights contemporâneos.

Em 1987, estávamos com os trabalhos da Constituinte iniciados e concentrados no detalhe de um assunto secundário, mas que dificultou o trabalho do governo - a redução do meu mandato.

Eu não tinha nenhuma ambição, mas tinha o dever de viabilizar a transição democrática e tinha a noção de que os perigos que nós correríamos se não tivéssemos cumprido aquele ritual constitucional que iniciamos da minha posse e dos governos futuros do Brasil.

A realização de eleições não poderia, por óbvio, ser antes de uma Constituição estar pronta.

E assim também a campanha para reduzir o meu mandato tinha muitos, muitos candidatos que tinham a presidência da República ali localizado naquela comissão que era uma comissão de sistematização da Constituição.

Quando se propôs o parlamentarismo, eu aceitei.

Resolveram que ele devia valer imediatamente.

Isso, para mim, trazia uma lembrança ruim.

O período em que fora imposto o parlamentarismo para aceitar a posse do João Goulart, em razão da renúncia de Jânio Quadros.

Parlamentarista, já naquela ocasião, eu votara. Fazia uma declaração de voto contra a proposta, pois não podia admitir uma cassação parcial do mandato presidencial.

E as consequências, quem provara em primeiro lugar, fora Tancredo Neves, primeiro-ministro esvaziado em sua capacidade de governar.

Ele e Santiago Dantas eram altamente qualificados para a função, mas Jango não podia deixar de lutar contra o cápside minúcio de sua responsabilidade.

Ricupero fala sobre Santiago Dantas e a recusa do Congresso.

Eu quero lembrar nesta Casa que eu e Bilac e Pinto fomos os dois da UDN que votamos a favor do Santiago Dantas.

Votei juntamente com o Bilac para aprovar a sua nomeação de primeiro-ministro naquela Casa.

E no seu livro, o senhor detalhadamente faz uma análise sobre o que foi uma coisa incompreensível, a declaração, a recusa de um homem como Santiago Dantas para primeiro-ministro.

Felizmente, pudemos superar aqueles dias.

Ulisses me procurou durante a votação da Constituição e me disse um dia, não vamos conseguir ter Constituição.

Nós estamos em um impasse e há 30 dias a Assembleia Constituinte está parada e venho pedir a sua ajuda para resolvermos esse problema.

Então disse a ele, Ulisses, vamos resolver o problema.

Não podemos ter transição sem Constituição.

Isso, aliás, é uma coisa que é notada em todas as transições democráticas daquele tempo.

É que o Brasil foi o único país que fez a transição democrática entregando uma Constituição.

Constituição esta que hoje assegura e que é chamada Constituição Cidadã, que para ela Ulisses deu essa denominação.

E assim foi possível que fizéssemos a Constituição e aprovássemos essa Constituição que até hoje já está vivendo, por 40 anos.

E quero dizer também que o brasileirista americano, um grande historiador, que foi Ronald Schneider,  diz no seu livro sobre transições democráticas que a nossa foi a melhor transição feita no mundo naquela época.

E por quê?

Porque nós não deixamos hipotecas militares.

Fizemos uma Constituição e, ao mesmo tempo, ela já dura há 40 anos e nós criamos uma sociedade de massa, uma sociedade democrática em que o povo brasileiro tem o domínio de sua cidadania em todos os pontos.

Felizmente, pudemos superar aqueles dias.

Mas estou me desviando do assunto, e o assunto é o Ricupero.

Em 1987, Ricupero pediu-me outra vez para sair do governo e voltar para o Itamaraty.

Ele tinha um argumento que era inarredável, que diz sua carreira naquela casa.

Foi então para um posto aparentemente modesto, certamente difícil.

O GATE onde sucedeu a um grande diplomata foi Paulo Nogueira Batista.

Já então, conta Ricupero. Aliás, se eu puder experimentar como presidente, os homens que governam os Estados Unidos, por mais qualificados que eles sejam, são alheios àquela regra básica da democracia, que consiste em saber se colocar no lugar do interlocutor e em compreender que numa negociação é necessário um equilíbrio de interesses, e não estou me referindo ao presidente atual com seus barbarismos na chefia do governo americano.

Outra coisa que eles não sabem é realmente que não se pode propor ao interlocutor aquilo que ele não pode aceitar e os americanos têm essa essa dificuldade em negociar, porque eles colocam justamente aquilo que ele não pode aceitar, que o interlocutor não pode aceitar.

De Genebra, Ricupero foi substituir Marcilio Marques Moreira em Washington.

O Brasil vivia os difíceis fins do governo Collor.

Pouco tempo depois, foi chamado por Itamar a comandar o Ministério do Meio Ambiente da Amazônia Legal.

Não posso negar que conversara sobre a escolha com o president, o que me trouxera grande satisfação.

Ricupero acompanhara e mesmo fora um dos construtores do sucesso da Rio 92, cuja convocação eu sugerida e lutara para que fosse no Rio de Janeiro que foi, creio, a mais bem sucedida de todas as reuniões sobre meio ambiente.

Ricupero conta, mais uma vez, as dificuldades que é o trabalho nessa área essencial para o futuro da humanidade.

Fernando Henrique fora chamado por Itamar para fazer o plano Real, montar a equipe. Começado o trabalho, afastara-se para a tentação da candidatura presidencial.

O homem à mão com todas as qualidades necessárias, mesmo que ele conte se sentir despreparado naquele momento, no que, por sua vez, discordo dele para concluir o trabalho era Rubens Ricupero. Ele assumiu o Ministério da Fazenda.

O esforço que fez foi imenso.

Sem desmerecer a equipe, o sucesso do plano Real seria impossível se não tivesse à frente do grupo o equilíbrio, a inteligência, a capacidade de decidir do embaixador Ricupero.

Nos anos seguintes, Ricupero começou nova carreira internacional que realizou com o brilho de sempre.

O de chefe da UNCTAD -  seu livro conta tudo isso numa escrita agradável e de leitura fácil.

Mas para mim, o ponto mais alto, sublime de sua carreira e de sua vida, porque toca no que ele é, é, no que são ele e Marisa.

Criatura extraordinária, casal cuja união é exemplar. Como pessoa, uma inteligência completa. Uma percepção abrangente de vida, uma sensibilidade que vem do coração e da mente. E o ponto mais importante, de recuperar as suas memórias e a narrativa de suas raízes, de sua família com que ele abre no livro. É delicioso ouvir aquele primeiro capítulo sobre a história da chegada dos seus amigos, dos seus pais, dos seus parentes e de todos aqueles que constituíam a colônia no bairro do Brás.

Esses imigrantes que nos fazem compreender que são o próprio sangue da humanidade, cujo fluxo da vida ao que será e que liga o presente ao passado, presente e o futuro, para usar um pouco das palavras de Hélio, e que faz com que cada um de nós seja um pouco de todos que somos.

Vazos comunicantes que se são interrompidos secam e marcham.

Eu ouvi de Helmut Schmidt, numa das nossas reuniões do Interaction Council, que duas coisas a humanidade viria a provar, e agora ele foi profético.

As migrações massivas que a Europa está sentindo, e também ele dizia que depois dessas imigrações massivas nós teríamos a oportunidade de assistir a conflitos localizados mundiais e não guerra total da humanidade.

Isso está acontecendo e estamos vendo que é tão doloroso quanto uma luta total da humanidade, uma guerra geral.

A obra de Ricupero, especialmente o seu último livro de memórias, é uma lição de vida, uma lição que traz, subjacente, essencial a ele, que é o homem de grande fé, a mensagem de Cristo. Amar, exercer o amor, viver o amor em toda a sua infinita e eterna dimensão.

O nosso premiado Rubens Ricupero recebe a homenagem e a consagração maior da Academia Brasileira de Letras por ser um dos maiores escritores contemporâneos de nosso país.


Já escreveu 48 livros, publicados em quatro idiomas.

Todos eles tratando de problemas internacionais, memórias, história, com sua análise da globalização, da guerra fria, da geopolítica, em que se destaca o Brasil em mudança, um livro seu, e a outra inserção internacional do Brasil. Outro livro, a abertura dos portos, outro, e muitos outros títulos que revelam a sua cultura, o seu talento, o escritor sem concessões ao barroco e, claro, sem adjetivos que não sejam convidados no seu texto.

Simples e erudito, ao mesmo tempo, como é o que caracteriza seu livro de memória, cujo sucesso de crítica é consagrador.

Assim, este prêmio tem sido dado ao longo de sua história aos maiores escritores brasileiros, e a ele se junta agora o pensador, notável escritor, Rubens Ricupero

Parabéns pela consagração da Academia Brasileira de Letras.

Muito obrigado, Ricupero, por ser quem é.

E ouvimos os dois discursos inaugurais da nossa casa.

E eu agora quero, da eternidade, convidar Machado de Assis e Joaquim Nabuco para que, junto a todos nós, recebamos o premiado de hoje e comemoremos os 128 anos da nossa casa.

Muito obrigado a todos. Muito obrigado a todos pela paciência com que me ouviram.

Muito obrigado.
 

28/07/2025