As terças-feiras da Academia Brasileira de Letras (ABL) começaram a transformar-se em julho de 2023, quando Heloísa Teixeira (1939-2025) tornou-se a décima mulher a ocupar uma cadeira na instituição. Isso porque a imortal, como são chamados os membros da ABL, decidiu que não entraria no prédio sozinha. Ela levou consigo a Universidade das Quebradas para seu novo endereço de trabalho.
Projeto de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade das Quebradas está em sua 16ª edição e foi criada por Heloísa para promover um espaço de trocas de saberes entre a academia e quem produz cultura fora do campus. Participam desde estudantes já matriculados no ensino superior até pessoas que não possuem vivência no ensino formal, mas que produzem literatura à sua maneira ou, quando ainda não são iniciados, querem aprender técnicas de escrita literária.
“Criamos a Quebradas para quebrar mesmo o muro das universidades. Heloísa dizia assim: ʻEu nem estou preocupada com as periferias, elas estão inteiras e criativas. Eu estou preocupada com o fechamento da universidade. Eu quero que ela abra e se volte para o mundo’”, recorda Numa Ciro, professora que participou da criação do projeto com Heloísa, sua amiga e orientadora no doutorado.
Mesmo após o falecimento de Heloísa, a Universidade das Quebradas prossegue, agora sem a sua imortal. A crítica literária, pesquisadora, professora e ensaísta, chamada carinhosamente de Helô, faleceu aos 86 anos, no dia 28 de março de 2025, em um momento de reinvenção contínua. Isso é o que a mantinha atualizada e, ao mesmo tempo, vanguardista.
“Ela era uma intelectual que não tinha medo de se deslocar, de sair da zona de conforto para descobrir outros lugares de produção de conhecimento. Sempre me dizia: ʻLilia, o conhecimento está nas quebradas, está em outro lugar, e a gente tem que se deslocar para esses lugares’”, conta a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, amiga de longa data de Heloísa.
Poéticas em transe
Heloísa Teixeira nasceu no interior do estado de São Paulo, em Ribeirão Preto, mas se mudou para o Rio de Janeiro aos quatro anos de idade. Era filha de um médico e professor baiano e de uma dona de casa mineira. Influenciada pelo pai, que era professor universitário, formou-se em letras clássicas e vernáculas na Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em 1961. Especializou-se em teoria da literatura com o crítico literário Afrânio Coutinho (1911-2000), que também seria seu orientador de mestrado. Em 1979, tornou-se doutora em literatura brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, em 1984, mudou-se para os Estados Unidos, onde fez o pós-doutorado na Universidade de Columbia, na cidade de Nova York.
Os títulos acadêmicos de Heloísa, no entanto, não revelam por si só a efervescência cultural e política que marcou a trajetória da professora emérita de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ. Nos anos 1960 e 1970, sua residência era ponto de encontro de artistas e intelectuais da época. No documentário Helô (2023), o cineasta Luiz Buarque de Hollanda Filho, conhecido como Lula Buarque, e filho mais velho de Heloísa, convida a intelectual a revisitar a própria trajetória, a partir dos vários endereços onde a família viveu, todos sempre repletos de gente, entre visitas rotineiras e hóspedes de longa estadia.
Um exemplo é a casa que tinha com o primeiro marido, o advogado e galerista Luiz Buarque de Hollanda (1939-1999), uma residência modernista projetada pelo arquiteto Zanine Caldas (1919-2001), na região do alto do Jardim Botânico, na capital fluminense. O local foi palco de uma festa de Réveillon, de 1967 para 1968, eternizada no livro 1968: o ano que não terminou (1988), escrito por Zuenir Ventura, amigo de Helô, que retrata a festa como um momento alegórico do Brasil da época.
“Eu acho que o documentário conseguiu captar esse espírito dela, meio beatnik, meio contracultura, que se manteve até o fim”, explica Lula Buarque. “Ela era capaz de captar várias linhas de pensamentos e de pensadores. Pegar um pouco de um, um pouco do outro, para construir aquele pensamento que é um pouco caótico, meio anárquico, mas na verdade, no final das contas, você pode dizer que é um pensamento poético até”, complementa.
Entre as veredas intelectuais de Heloísa, algo que se destaca é sua dedicação à poesia marginal, sendo uma das primeiras pesquisadoras sobre o tema. Em meio à turbulência política dos anos de chumbo da ditadura, Helô identificou uma nova geração de artistas que não pediam licença para declamar poemas em locais públicos e sem compromisso com escolas literárias tradicionais, ao mesmo tempo em que imprimiam, de forma artesanal, suas obras em folhetins ou papéis baratos: era a geração mimeógrafo dos anos 1970.
Como resultado da sua pesquisa, organizou uma antologia poética, intitulada 26 poetas hoje (1976). A obra traz trabalhos de artistas até então desconhecidos, e que hoje são celebrados pela crítica literária, como Ana Cristina Cesar (1952-1983), Torquato Neto (1944-1972) e Leila Míccolis. “Foi uma poesia que surgiu com perfil despretensioso e, aparentemente, superficial, mas que colocava em pauta uma questão tão grave quanto relevante: o ethos de uma geração traumatizada pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão e pelo crivo violento da censura e da repressão militar”, escreveu Heloísa no ensaio “A poesia marginal”, presente na antologia.
Leila Míccolis já tinha uma relação estreita com a poesia desde a adolescência, mas atuou por dez anos como advogada trabalhista, enquanto não deixava de publicar seus poemas no circuito literário independente. Em meados dos anos 1970, quando passou a se dedicar exclusivamente à literatura, a poeta foi apresentada a Heloísa por um amigo. Juntas, iniciaram uma parceria longeva, em que Helô prefaciou alguns dos livros da escritora e a convidou para refletir sobre as transformações literárias que ambas testemunharam.
“Em um dos meus livros, Sangue cenográfico (1997), ela constrói um polo Leila-Ana Cristina, em que conta como a poesia da Ana é meio sonsa, feminina, e a minha é mais intelectual”, recorda Míccolis. “Antes da minha poesia, não tinha essa forma agressiva de escrever. Foi um verdadeiro escândalo na época. Tínhamos que escutar da crítica especializada que isso não era poesia”, recorda.
No ensaio “Democratização da cultura: Heloísa Buarque de Hollanda e a crítica brasileira nos anos 1970”, os pesquisadores André Botelho e Caroline Tresoldi, especialistas na crítica literária de Heloísa, destacam o pioneirismo da autora ao retratar a democratização da cultura no país, a partir da sua própria tese de doutorado: Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960/1970). Publicada como livro em 1980, a tese retrata os movimentos culturais que Helô testemunhou.
“Ela foi pioneira na valorização dos indícios simbólicos de que uma parte considerável das mudanças produzidas pelos movimentos são transformações que ocorrem nos próprios movimentos e com seus participantes. Ideologias, regras, instituições, formas de organização etc. retroagem sobre seus membros e estruturas, modificando o ambiente das ações e as características dos atores, suas motivações, atitudes, ideologias e outros fatores”, descreveram os autores.
Outras revoluções
Já consagrada como professora e pesquisadora, Heloísa não deixou de acompanhar novos processos de mudança nem de fazer parte deles. Com a internet e a popularização de debates feministas de diversas correntes, quis compreender a genealogia dos movimentos no país, iniciando processos editoriais que buscavam reunir os principais nomes de diferentes vertentes. Foi quando publicou o livro Explosão feminista (2018), pela editora Companhia das Letras, antologia que reúne textos de diversas autoras. Além disso, coordenou a série Pensamento feminista (2019), pela editora Bazar do Tempo.
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz acompanhou o processo de edição da Explosão feminista. Para ela, a maior riqueza dessa obra é a diversidade de perspectivas. “Ao invés de abafar as discussões, Helô incluía o conflito nas produções coletivas que ela realizava, criando um gênero único de edição, a partir do lugar dela, como uma pessoa de recepção e de tentativa de inclusão”, observa.
A poetisa recifense Luna Vitrolira conheceu Heloísa em 2016, durante um festival literário. Estabeleceram uma amizade na qual Luna se referia à mentora como “vozinha literária”. Escritora desde a adolescência e hoje mestra em teoria da literatura, ela foi uma das novas autoras da coletânea 29 poetas hoje uma releitura da coletânea de 1976, mas dessa vez, somente de autoras mulheres. A obra foi organizada por Heloísa e publicada pela Companhia das Letras, em 2021.
Para Vitrolira, a principal contribuição de Heloísa, para além de romper com os estereótipos sobre a escrita feminina, foi usar as novas vozes como uma denúncia dos vieses patriarcais na crítica e no mercado editorial. “Eu acho que ela até se distanciou bastante da ideia de definir ‘o que é uma escrita feminina’. Ela prefere dizer que existe um contexto social, político, econômico e artístico, portanto é preciso que a gente olhe para uma demanda que atravessa todas essas camadas, que é urgente e não é vista. Porque existe uma coisa chamada patriarcado e uma coisa chamada machismo, sistemas opressores que estão silenciando as vozes dessas produtoras de arte, cultura e literatura”, explica.
Voltar a nascer
Os novos feminismos também permitiram a Heloísa Teixeira rever as estruturas que a perseguiram. Casou-se cedo com o primeiro marido, Luiz Buarque de Hollanda, mas o casamento não sobreviveu ao final dos anos 1960. Mesmo após o segundo matrimônio, com o fotógrafo João Carlos Horta, que durou mais de cinquenta anos, até a morte dele, em 2020, assinava como Heloísa Buarque de Hollanda.
Até que, depois dos 80 anos, ela busca fazer um movimento de conectar-se à mãe e às mulheres da família, uma “mátria linear”, conforme definiu no documentário O nascimento de H. Teixeira (2024), que acompanha esse processo desde seu início. A diretora Roberta Canuto conta que, a princípio, o filme tinha como objetivo resgatar a crítica literária de Heloísa sobre a poesia marginal. Mas após a protagonista compartilhar seu desejo por um novo sobrenome, outra ideia ganhou força ao ser abordada no filme, que se tornou um meio de registro e afirmação. “Eu entendi aquilo como uma mudança muito coerente de uma mulher que sempre teve uma trajetória feminista, lutando por tantas questões de gênero. Foi um registro que se tornou um rebatismo”, conclui Canuta.
Foi como Heloísa Teixeira que a intelectual assumiu a cadeira na ABL, lugar que ocupou, consciente dos seus desafios. Em seu discurso, apontou, por exemplo, para a desigualdade de gênero na instituição. Reconhecia, porém, a importância da Academia para a defesa e difusão do potencial da língua portuguesa, um compromisso que ela considerava como geopolítico.
Ao incluir a Universidade das Quebradas dentro da ABL, Heloísa trouxe outras formas de pensar a literatura e a escrita, outras formas de pensar que estão mais próximas daquilo que representa populações ainda marginalizadas pela instituição. Assim pensa a escritora e pesquisadora Clátia Vieira, mestra em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-Rio). “A Heloísa busca desconstruir, propõe que a gente traga para cá a nossa escrita como ela é. As pessoas falam da falta de oralidade, mas isso sempre houve. Só que a gente falava para o outro escrever sobre a gente. E agora, a gente é que está escrevendo. E aí, quando a gente escreve, a gente escreve com muito mais propriedade sobre as nossas dores e realidades”, reflete Vieira.
Para Lula Buarque, sua mãe também convidava as pessoas ao processo de escuta como forma de desafiar a indiferença. “A relação dela com o projeto Universidade das Quebradas mostra como ela era uma pessoa sempre inquieta para querer ouvir. Ela falava muito sobre a nossa dificuldade de ouvir as pessoas. Para mim, essa é uma grande lição que fica”, compartilha.
Letras em múltiplas dimensões
Sesc São Paulo promove acesso à literatura e aproxima escritores de público em atividades nas suas unidades e nas plataformas digitais
De forma permanente em sua programação, o Sesc São Paulo expande as reflexões e acessos aos livros e à literatura. Em palestras, cursos, encontros e outras ações, o público pode conhecer autores, trocar experiências literárias com outros leitores e até aprender e aperfeiçoar a própria escrita.
A literatura está presente também nas plataformas digitais, expandindo a experiência do Sesc para além dos espaços físicos de suas unidades. Entre os destaques de setembro, por exemplo, o SescTV exibe o documentário A escrita delas (Vanessa de Araújo Souza, 2023), que investiga se há uma escrita feminina, a partir do depoimento de autoras de diferentes épocas, como Heloísa Teixeira, Nélida Piñon (1934-2022), Conceição Evaristo e outras.
As Bibliotecas e os Espaços de Leitura das unidades do Sesc também fomentam o acesso ao livro e à leitura, além da formação de leitores. Nesses locais com um acervo de mais de 80 mil títulos, é possível emprestar e consultar periódicos e obras da literatura brasileira e estrangeira, de diferentes gêneros e temas – juvenil, infantil, artes, quadrinhos, história, filosofia, educação, entre outros.
Confira os destaques:
14 BIS
Clube do Livro: Canção para Ninar Menino Grande
Bate-papo e leitura da obra da escritora Conceição Evaristo, com mediação de Maria Carolina Casati.
Dia 30/9. Terça, das 19h30 às 21h.
AVENIDA PAULISTA
Sarau Neomarginais
Apresentação poético-musical que combina poesia, música e manifesto.
Dia 19/9. Sexta, das 19h30 às 20h30.
BELENZINHO
Contos de Meninas e Mulheres Negras para Encantar Palavras
Cia. Caruru
Nesta mediação de leitura, entre cantigas, brincadeiras e narrativas protagonizadas por meninas e mulheres negras, as palavras ganham corpo e criam um espaço onde a infância encontra espelho, afeto e imaginação.
Até 14/9. Sábados e domingos, sessões das 13h às 17h.
SESCTV
A escrita delas (2023)
Dir. Vanessa de A. Souza
Documentário discute a diversidade presente na escrita feminina, com participação de Heloísa Teixeira, Nélida Piñon (1934-2022) e Conceição Evaristo.
Dia 19/9, às 22h.
Também disponível em sesctv.org.br/aescritadelas
Reprodução
Heloísa Teixeira é uma das escritoras que ajudam a investigar a literatura feminina no documentário A escrita delas (Vanessa de A. Souza, 2023), do SescTV
Matéria na íntegra: https://www.sescsp.org.br/editorial/quebradeira-das-tradicoes/
02/09/2025