Cacá Diegues, que morreu nesta sexta-feira, 14, no Rio de Janeiro, aos 84 anos, nem sempre foi um cineasta fácil de entender.
Parte do grupo de fundadores do cinema novo, ele começou fazendo um dos episódios de "5 Vezes Favela", de 1962, produzido pelo Centro de Cultura Popular da UNE. Pouco depois, lançou-se como autor único do longa-metragem "Ganga Zumba", de 1963, que celebrava o herói do levante de escravos e, ao mesmo tempo, pensava em um levante nacionalista, como fazia a esquerda brasileira na época.
"Ganga Zumba" também inaugurou a parte antirracista do cinema de Diegues, que está longe de ser desimportante. Mais do que isso, no entanto, ali já se encontra plantada a ideia de um cinema como espetáculo popular, que se desenvolveria no futuro.
Talvez "A Grande Cidade", de 1965, marque um recuo nessa intenção. Ali Anecy Rocha comprovou ser uma das grandes atrizes de seu tempo no Brasil, no papel da moça nordestina que chega ao Rio em busca do noivo. Ali a ambiguidade do olhar de Diegues se afirma. Existe no filme uma crônica afetuosa do Rio de Janeiro, mas, ao mesmo tempo, a incursão a uma cidade grande extremamente cruel com as pessoas pobres e frágeis.
"Os Herdeiros", em 1969, marcou outra transformação no cinema de Cacá. Em torno de um jornalista, mais tarde político oportunista, ele constrói a alegoria de um país que nasce no oportunismo dos anos 1930 --característica que levará à construção de Brasília e ao golpe de 1964.
O filme é o que se pode chamar de ambíguo. O AI-5 estava em vigor há pouco tempo, e com ele uma repressão violenta. A presença de um ator estrangeiro com o peso de Jean-Pierre Leaud significava um apoio internacional importante à luta pela democracia.
Ao mesmo tempo, o longa continha uma crítica feroz ao populismo que se desenvolvera no Brasil desde 1930 —e, com ele, seus herdeiros haviam aderido ao movimento de 1964. Pelo seu tema e pela mise-en-scène grandiloquente, "Os Herdeiros" fez muitos cinéfilos e críticos verem Diegues como um quase imitador de Glauber Rocha.
Por fim, o filme estava longe dos ideais fundadores do cinema novo: a produção não obedecia à máxima de "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", o que para muitos foi sentido como uma traição aos ideais daquele movimento e à luta contra a repressão. Mas "Os Herdeiros" dava forma à ideia do cinema como grande espetáculo popular que buscava pensar o Brasil.
Na mesma linha está "Joana, a Francesa", de 1972, protagonizado pela estrela internacional Jeanne Moreau. O filme volta ao mundo de 1930, e Joana é a dona de um bordel que cai nas graças de um fazendeiro alagoano —como Diegues e sua família, diga-se de passagem—, que a leva para o Nordeste. Ela acaba herdeira do feudo e retrógrada como ele.
Seu filme seguinte, "Quando o Carnaval Chegar", lançado no mesmo ano, marcou uma reviravolta em seu cinema, seguido por "Xica da Silva", em 1976, e "Bye Bye Brazil", três anos depois. Cacá parecia buscar uma visão de longo prazo sobre o país, sua cultura e seu destino, como se fosse preciso abandonar os velhos prejulgamentos e as crenças neles embutidas para deter o olhar no país, suas origens, sua música, sua paisagem.
De diferentes maneiras, esses três filmes, assim como "Joana, a Francesa", tornavam mais sólida a ideia de um cinema que fosse espetáculo popular e reflexão sobre o Brasil.
É nesse momento que Diegues introduz a expressão que o tornou célebre: as "patrulhas ideológicas". Referia-se a uma oposição ao regime vigente que via em seus trabalhos um viés escapista.
Talvez não fosse. Talvez esses filmes buscassem algo essencial nos brasileiros, que estivesse além das questões imediatas. Era o lado carioca que aflorava, às vezes em luta com a herança nordestina. Era a necessidade de olhar com certa alegria para as catástrofes sociais circundantes.
Isso o levou, não raro, a fazer filmes que pareciam até ofensivos desde o título. Onde já se viu chamar um filme de "Dias Melhores Virão", em 1989, com o Brasil diante de uma crise inflacionária aparentemente sem retorno? É verdade que o argumento se referia a uma dubladora de filmes hollywoodianos que, em seus devaneios, mistura ficção e realidade. De certa maneira, o filme pensava nessa parcela cada vez maior de artistas brasileiros para quem o sucesso nos Estados Unidos era uma aspiração e, sobretudo, um fantasma. A referência a Carmen Miranda é, evidentemente, forte.
Se Cacá não se deixou abater durante a ditadura e da difícil reentrada na democracia, não havia de ser na era do plano real que o faria. Mas nem por isso abandonaria a ideia de um espetáculo popular. Tanto em "Tieta do Agreste", de 1996, como em "Orfeu", de 1999, ele parece buscar uma estética que se aproxima daquilo que se pode ter como expressão maior do espetáculo popular: o destile das escolas de samba do Rio.
Isso já estava presente em vários de seus filmes anteriores, inclusive "Quilombo", mas o caminho de Diegues sempre foi sinuoso. Nos trepidantes anos 1990, marcados pelo fim da Embrafilme, convulsões do governo Collor, controle da inflação e retomada do cinema brasileiro, acentuou-se a tendência do diretor de estar próximo da cultura popular.
"Tieta" já tinha sido uma novela de sucesso na TV, além de um romance de Jorge Amado. Dessa vez Cacá trazia de volta ao cinema brasileiro a, digamos, "nova Carmen Miranda", pois Sônia Braga foi uma brasileira de sucesso nos EUA. No filme, ele a trazia como ex-prostituta, como a Joana francesa, de certo modo, que voltava à sua terra.
"Orfeu" retomava o célebre filme de Marcel Camus, Palma de Ouro em Cannes e vencedor do Oscar de melhor filme internacional pela França, baseado numa peça de Vinicius de Moraes, que realocava a tragédia de Orfeu e Eurídice na favela carioca. Era a situação perfeita para o remake de Cacá. Não mais a visão romântica do francês Camus, mas a mistura de desejo de festa e espetáculo, ou seja, desfile de Carnaval, convivendo com a violência urbana desenfreada.
Talvez o último grande esforço de Diegues no sentido do espetáculo popular coincidindo com a busca de uma compreensão do país tenha sido "Deus É Brasileiro", uma espécie de Caravana Rolidei comandada por um Deus já cansado da humanidade e seus descaminhos.
No século 21, mais do que tudo, foi como produtor da Globofilmes que ele desenvolveu um trabalho significativo, e o lugar na Academia Brasileira de Letras foi, quem sabe, um repouso que, ao mesmo tempo, indica que o cinema, apesar de todos os problemas, começou a ter um lugar na cultura brasileira. Isso ocorreu, em grande medida, graças à geração do cinema novo, de que Carlos, dito Cacá, foi um expoente.
Matéria na íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/02/caca-diegues-fez-do-cinema-um-grande-espetaculo-popular-para-pensar-o-brasil.shtml
17/02/2025