Acabo de chegar do velório do cineasta Cacá Diegues. Estou diante do meu oratório-computador e o cineasta arrebatado deste nosso Brasil, que para ele foi obsessão, jaz, coberto de flores, num solene salão da Academia Brasileira de Letras que cuida dos seus membros mortos.
Chegamos cedo ao velório e lá falei sobre o morto. Era um homem sagaz, mas doce e amável. Tinha posicionamento definido, mas não deixava de enxergar outras dimensões. Sempre me impressionou seu senso de realidade e sua obra focaliza com criatividade inúmeros paradoxos nacionais. Talvez tivesse puxado ao pai, o sociólogo igualmente sereno e devotado ao entendimento do Brasil, Manuel Diégues Jr., um homem com esse dom de aplacar sem vender a alma.
Ao pai do Cacá, devo meu curso de aperfeiçoamento em Teoria e Pesquisa em Antropologia Social, criado nos anos 60, por Roberto Cardoso de Oliveira, no Museu Nacional. Curso que teve como patrocinador o Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, dirigido por Manuel Diégues Jr. Ali firmei convicções profissionais auxiliado por uma bolsa de estudos. Mas meu laço com os Diegues continuou com Madalena, irmã do Cacá, que fez o mestrado nesse programa e teve como examinador esse cronista.
Nos anos 70, esse mesmo Manuel Diégues Jr., então diretor do Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura, contribuiu para minha pesquisa sobre o carnaval brasileiro lido não como festa, mas como um rito orgiástico de reversão político-social. Todas essas expandidas memórias e a obra cinematográfica de Carlos Diegues cimentavam nossas relações. Elos que a morte corta, mas o que pode a morte diante da criatividade da vida senão complementá-la, abrindo caminho para a história, a mudança ao lado de uma saudade inspiradora e das lágrimas que remetem à nossa própria finitude?
Escrevo, pois, com a lembrança viva de minha relação com Cacá e sua mulher, Renata, com quem convivi num documentário na Amazônia e em encontros no Brasil e na Universidade de Notre Dame, onde discutimos o filme Orfeu com alunos e colegas.
Carlos Diegues amava sua profissão e se permitia discutir cinema comigo, lembrando cenas que nos falaram à mente e ao coração. Numa dessas conversas, lembramos cenas dos musicais mais marcantes. Cacá dizia que a cena de Fred Astaire dançando a música Dancing in the Dark, com Cyd Charisse no filme The Band Wagon (A Roda da Fortuna), era singular na sua harmonia e delicadeza. Para mim, seria uma sequência de sapateado de Cantando na Chuva. Mas acabo de assistir à cena preferida do Cacá que molhou meus olhos. O cineasta e não cinéfilo tem razão. Aliás, ele estava aqui do meu lado se deliciando com a sequência que, como algumas cenas dos seus filmes, ajudam a permanecer realizando a única coisa que a vida demanda: vivê-la.
Matéria na íntegra: https://www.estadao.com.br/cultura/roberto-damatta/me-despeco-de-caca-diegues-revejo-sua-cena-preferida-e-meus-olhos-se-enchem-de-lagrimas/
19/02/2025