Sem titubear, há cinco anos, em entrevista ao Correio, o pensador brasileiro Cacá Diegues apontou o espólio do Cinema Novo: "(Sobrou) o cinema brasileiro. Tiramos o cinema do estúdio, da câmera parada". À época, o hoje robusto cinema nacional (com três indicações para o Oscar) agonizava, mas Cacá tratou de professar a eternidade de sua perpetuação. Morto por complicações cardíacas, durante uma operação no Rio de Janeiro, aos 84 anos, Cacá terá o corpo velado hoje, no Palácio Petit Trianon (local da Academia Brasileira de Letras), e será cremado, na sequência.
Homem de debates refinados, o alagoano tinha na simplicidade o domínio da sabedoria, com tiradas como "Perco meu direito de falar, quando proíbo a fala do outro", e definia parâmeros claros para conceitos como Cinema Novo ("Foi o primeiro movimento com alcance internacional vindo do que era chamado de Terceiro Mundo") e Brasília ("A cidade foi um símbolo, uma síntese da cultura que preconizávamos (...) Temos que cultivar Brasília, nesse sentido").
Cacá, que substitui o amigo Nelson Pereira dos Santos, ocupando a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, se fez tão refratário à elitização e tão próximo ao espectador brasileiro, que praticamente só atendia pelo apelido (raras vezes era Carlos). Inovador e dono de um cinema musical, Cacá deu espaço a concreto manifestar do som, desde o título de Veja esta canção (1994), passando à euforia sonora de títulos como Quando o carnaval chegar (1972), Tieta do Agreste (1996), Orfeu (1999) e O grande circo místico (2018).
Em nota de pesar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva expressou a emoção de muitos, e estendeu os "sentimentos a familiares, colegas e fãs do grande Cacá Diegues". Lula pontuou: "Ganga Zumba, Xica da Silva, Bye, bye Brasil, e, mais recentemente, Deus é Brasileiro, mostram muito bem nossa história, nosso jeito de ser, nossa criatividade. E representam a luta de nosso cinema, que sempre se reergueu quando tentaram derrubá-lo".
Em frentes de discussões, Cacá trazia a visão múltipla: foi ativista, produtor (em filmes como Terra em transe e Bacurau) e roteirista (Luzia Homem, de 1988, e A estrela sobe, 1974), além de professor, habilidade herdada diretamente do amigo (e mestre, o criador do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro) Paulo Emílio Sales Gomes, que, pela ótica de Cacá, teve a relevância de Glauber Rocha. "Ele apoiava e ensinava coisas para os cineastas de maneira fantástica. Paulo Emílio formou todos nós: foi um grande pai do cinema brasileiro do qual até hoje falamos", comentou, em 2019. Na dimensão de docente, ampliou horizontes para jovens da Cufa (Central Única das Favelas) para os quais ministrou curso de cinema na Cidade de Deus, alguns com futuro profissional e mobilizados no filme Cinco x Favela, agora por nós mesmos (2010).
Com alcance internacional — teve até entrevista no anos de 1970 para a referencial Cahiers du Cinéma —, Cacá trabalhou com gênios internacionais como Jean-Pierre Léaud (Os herdeiros, de 1969) e Jeanne Moreau (Joanna Francesa, de 1973). No Festival de Cannes, compareceu competindo com três filmes: Bye Bye Brasil (1980), Quilombo (1984) e Um trem para as estrelas (1987). Precursor na parceria entre tevê e cinema (junto à TV Cultura, e depois à Rede Globo), Cacá, na filmografia, aprofundou temas atuais como etarismo e racismo, em fitas como Chuvas de verão (1978) e Xica da Silva (1976), consagrado no Festival de Brasília de 1976. Numa trajetória harmônica, alternou esperança e pessimismo, esbanjou felicidade e adentrou alegorias, com tons soturnos e ramificações que alcançaram a religiosidade; tudo embalado em títulos elegantes como Um trem para as estrelas (1987), Dias melhores virão (1989), Deus é brasileiro (2003) e O maior amor do mundo (2006). Ocaso e celebração sempre convieram em sua obra.
O que eles disseram ao Correio
"Bye bye Cacá, bye bye a um Brasil complexo e poético. Bye bye à reflexão com afeto, bye bye a um artista maior cuja criatividade foi sempre livre de qualquer cartilha ideológica. Sem dúvida um dos grandes da cultura brasileira" Bruno Barreto, cineasta
"Morreu Cacá Diegues. Muitas outras coisas morreram junto. Morreu toda uma ideia de Brasil. Se excluirmos os dois primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos, Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, obras inaugurais do cinema novo ainda muito próximas do neorrealismo italiano, o autor de A grande cidade (1966) afirma-se como um dos grandes do cinema brasileiro quando se consolida a singularidade da estética cinemanovista. E quando é isso? Mais ou menos depois de Vidas secas (1963), de Nelson, e de Deus e o Diabo na Terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Na mesma época, Cacá faz Ganga Zumba (1964), filme que inicia a preocupação do realizador com a questão do negro brasileiro. Quilombo (1984) e Orfeu (1999) são outros dois exemplos. Mas antes há Xica da Silva (1976), seu enorme sucesso comercial, obra generosa de ode e celebração à raça negra. As matrizes de seu pensamento são Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, etc etc" Sérgio Moriconi, crítico e professor de cinema.
"Cacá participou com protagonismo do impulso estético e histórico inicial do Cinema Novo, no início dos anos de 1960. Cinco vezes favela, filme prismático, composto por cinco curtas de realizadores diferentes, atestava o interesse da geração de cineastas pela cultura dos morros cariocas, pela musicalidade popular, pela experiência urbana cindida e difícil que se cristalizara de forma visível no Rio de Janeiro. Cacá participou da empreitada com seu Escola de samba, alegria de viver. Eram tempos de Centro Popular de Cultura da UNE, importante agente político-cultural ligado à juventude. Em movimento de cinema, no bojo dos modernismos iniciados nos anos 1930, foi o de produzir imagens que pulsassem e explicassem a ação, suas engrenagens, formas, ritmos e rostos". André Manfrim, pesquisador de cinema
"Cacá deixa um exemplo de militância pelo cinema brasileiro, seus filmes e seus ensinamentos. Cacá jamais deixou de acreditar que o Brasil tem potencial para construir uma forte indústria de cinema e sempre fez filmes que buscavam o público. Isso me marcou desde sempre”. Nilson Rodrigues, produtor cultural
"Cacá sempre acreditou muito na nossa arte. Foi o pioneiro em olhar a gente, e valorizar o nosso olhar — o dos diretores oriundos das favelas. Se estabeleceu assim a criação da narrativa de falar sobre as favelas — dentro para fora. Estou consciente de que ele deixou o legado: através do olhar, através das palavras, ele deixou claro que ele estava passando bastão. Foi o cara que teve um amor incondicional pelo cinema. Ele estabeleceu que cinema brasileiro é redescobrir o Brasil e repensar o Brasil, num cinema feito do povo e para o povo". Luciano Vidigal, cineasta
"É muito triste a morte do Cacá, um grande cineasta autor de obras que ficarão muito para sempre, como Bye bye Brasil, Chuvas de verão, meu preferido; Joanna Francesa, ótimo; muitos bons filmes e um pensador com uma visão de Brasil muito corajosa no momento das patrulhas ideológicas. Cacá foi pioneiro nessa percepção assim de qualquer Estado autoritário é ruim, não importa de que lado se esteja. Acho que a principal característica dele é a gentileza. Convivi com ele na GloboFilmes, fizemos muitas reuniões de conselho, estivemos em festivais. Ele era uma pessoa querida por todos. Podia discordar ou concordar contigo, mas ele era gentil e cordato, um cara antigo, das antigas. É uma grande perda para o cinema e cultura, mas o trabalho dele permanece". Jorge Furtado, diretor.
"Cacá definia o movimento do cinema novo como o de um grupo de cineastas que, com seus filmes, “só queriam” mudar o mundo. Cacá realizou o primeiro filme com elenco e temática negra, Ganga Zumba, seu primeiro longa-metragem. Voltou a visitá-la em trabalhos mais recentes. Cacá Diegues foi um pensador agudo e não fugia das polêmicas, basta lembrar da criação das 'patrulhas ideológicas' a quem acusava de quererem reduzir o escopo da arte a um discurso ideológico. Ficam os seus grandes filmes". Roberto Gervitz, cineasta
"Cacá se fez o grande defensor juramentado do cinema novo; escreveu a biografia dele para defender o movimento, já que não aceitava que o trabalho dos cinemanovistas (feito nos anos de 1960) não fosse reconhecido. Lutou muito para defender tudo que viveu com a geração deles. Foi um botafoguense apaixonado pelo time, embora alagoano, cresceu desde 6 anos no bairro de Botafogo, e deve ter convivido muito com os grandes ídolos Garrincha e Nilton Santos. Nas superproduções, ele tem um papel importante também, com Xica da Silva projetando Zezé Motta. Ele deixa inédita uma nova revisita ao personagem Deus interpretado pelo Antônio Fagundes, em Deus é Brasileiro, que foi um sucesso. Cacá teve a contribuição de se dividir entre o autoral e o cinema mais espetáculo, os títulos embrafílmicos dos anos 70 em diante. A biografia dele traz um grande testemunho do amor que dispensou ao cinema brasileiro". Maria do Rosário Caetano, pesquisadora de cinema
"Cacá foi um mestre do cinema, criador de obras que resistem ao tempo, mas foi também um humanista de rara sensibilidade. Era um ouvinte atento, de curiosidade infinita e generosidade imensurável. Ele tinha uma inteligência afetuosa e seu entusiasmo pelo futuro do cinema nacional. Lembro com gratidão do dia em que aceitou meu convite para presidir o júri do 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, evento que ajudou a criar junto com Paulo Emílio Salles Gomes e Nelson Pereira dos Santos. Recordo também de sua reação ao assistir ao longa Pureza (à época em finalização), no acender das luzes, sacou o telefone e ligou para um amigo em Cannes sugerindo que visse o filme. Seu legado viverá para sempre entre nós". Marcus Ligocki Jr., produtor e cineasta
"Conheci o Cacá em algumas ocasiões, sempre amistoso e lúcido para tratar desde questões tanto técnicas até as artísticas. Foi responsável por uma grande troca entre a música popular brasileira e o cinema. Troca porque tanto as músicas dos artistas enriqueciam os filmes quanto os filmes também enriqueciam as músicas. Alguns exemplos do trânsito estão nas parceiras com Chico Buarque, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor". Patrick de Jongh, produtor, instrumentista e autor de trilhas.
Matéria na íntegra: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2025/02/7061120-caca-diegues-o-homem-que-amava-o-cinema.html
17/02/2025