Sempre que precisa lidar com seus anseios, com as angústias de um mundo que parece escapar ao controle, o escritor Milton Hatoum, novo imortal da Academia Brasileira de Letras, levanta suas próprias armas. No seu caso, uma caneta. Como já repetiu em diversas entrevistas – um gesto que continua a intrigar em tempos tão digitalizados –, seus primeiros escritos nascem sempre de punho e papel. “Eu escrevi também como uma forma de vingança. A literatura como vingança. Você se vinga de muitas coisas, exorciza seus fantasmas, na medida do possível. E, de certa forma, se vinga de uma injustiça."
E há muitas injustiças em seu passado. Especialmente quando recorda os tempos do regime militar, do qual foi vítima; quando foi preso e, depois, obrigado a deixar o país por alguns anos. Hatoum segue como observador atento dos movimentos do mundo e, sobretudo, com um olhar inquieto para o Brasil, suas desigualdades e sua violência. Sua literatura, portanto, não é refúgio nem diário autobiográfico. Talvez algo situado entre ambos — um espaço em que se permite divagar, imaginar intimidades familiares, sentimentos conhecidos e outros nem tanto, todos atravessados por um contexto do qual não se pode desviar o olhar. E ele escolhe não fazê-lo.
O ano tem sido particularmente importante para o autor manauara. Com sua entrada na ABL, passa a ocupar a cadeira número 6, que pertenceu por último ao jornalista Cícero Sandroni, que morreu em junho. Foi eleito com 33 votos (de um total de 34). Às vésperas do anúncio do Prêmio Nobel de Literatura, seu nome chegou a circular entre as previsões da Academia Sueca. Ficou surpreso, mas sem ilusões.
O que de fato o animou foi o lançamento de seu livro mais recente, Dança de Enganos, pela Companhia das Letras — obra que encerra a trilogia iniciada por A Noite da Espera (2017) e seguida por O Lugar Mais Sombrio (2019). A narrativa acompanha Lina, que decide escrever sobre o passado e sobre a distância que a separa do filho. Ao reconstruir suas lembranças, ela revisita afetos, ausências e contradições que atravessam sua trajetória.
Foram dezoito anos desde que começou a planejar uma grande obra, que em seguida se desdobraria em uma trilogia. A conclusão chegou como quem tira um grande peso dos ombros, acompanhada da sensação de missão cumprida. Mas, como sempre, vieram também suas tradicionais andanças por bibliotecas, escolas e presídios, para conversar sobre literatura com leitores e entusiastas de sua obra. Para ele, esse é o verdadeiro lugar do escritor: um espaço de trocas, livre de vaidades. Nessas ocasiões, Milton também se coloca no lugar de quem escuta, atento às formas como suas palavras ecoam em outros corpos.
Recentemente, ele recebeu uma homenagem especial no 5º Festival Literário Internacional de Itabira — Flitabira, em Minas Gerais. Ao seu lado, estavam autores que tanto admira: Conceição Evaristo, Ignácio de Loyola Brandão e Ana Maria Machado.
À Bravo!, Milton falou sobre sua entrada na Academia Brasileira de Letras, suas reflexões a respeito do Prêmio Nobel e os sentimentos que o acompanham com a chegada de seu novo livro.
Após as operações policiais nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, que resultaram na morte de 121 pessoas, a reportagem contatou o autor, conhecido por não se furtar a comentar assuntos espinhosos. Sobre o episódio, afirmou: “Numa democracia, o Estado de Direito deve sempre prevalecer sobre chacinas e execuções sumárias, que são atos típicos da barbárie.”
Bravo: Eu estava lendo que você anda bastante apreensivo, ansioso pelo discurso de posse na Academia (ABL). Queria começar perguntando: o que está te deixando tão apreensivo nesse momento?
Milton Hatoum: Na verdade, é a falta de tempo. Estou lançando o romance Dança de Enganos e vou fazer várias viagens desde novembro e também em dezembro. Então, não vou ter muito tempo pra pensar no discurso. Um discurso decente, digamos assim. É só por isso mesmo. Eu preferia adiar para o ano que vem, talvez pra março, e vou conversar com o presidente da Academia sobre uma nova data. Mas também não é bom adiar muito, né?
Bravo: Sim. E tem uma coisa interessante: por muito tempo parecia que a ABL e você habitavam universos um pouco distintos. O que mudou na instituição ou em você pra que esse encontro finalmente acontecesse?
MH: A ABL, na década de 1970, era uma instituição muito conservadora. Nos últimos 10 ou 15 anos, porém, entraram acadêmicos, músicos, poetas, historiadores… enfim, houve uma renovação. Essa conversa sobre a minha candidatura vem de mais de dez anos atrás, quando a Ana Maria Machado me sondou. Naquele momento, eu estava totalmente imerso na trilogia, então não era o momento.
Agora, com essa renovação, fiquei mais animado, me candidatei. Acho que a ABL tem feito coisas muito boas, inclusive uma programação de conferências com acadêmicos e uma aproximação com leitores, inclusive da periferia. Essa relação da instituição com a sociedade está mais estreita, o que é importante. A Academia já não é mais aquela instituição fechada e cristalizada, ela tem estabelecido um diálogo com a sociedade.
Bravo: Isso é algo muito bacana no seu perfil como escritor: esse contato com os mais diversos públicos, em penitenciárias, bibliotecas. Você não tem aquela imagem tradicional do escritor enclausurado. Você foge muito disso. Você tem alguma expectativa de que a ABL também siga mais por esse caminho, se tornando mais acessível, mais próxima?
MH: Acho que ela tem feito essa ponte com a sociedade. E eu vou continuar dando palestras em festivais de literatura, em escolas — não só particulares, mas públicas também — e em universidades pública. Vou continuar indo a presídios. Acho que vou manter esse trabalho e levar o nome da Academia a esses lugares.
É importante que a Academia também esteja presente em todos os setores da sociedade, além do trabalho de produção de conhecimento. Porque esse é um dos objetivos da instituição: produzir conhecimento, ensaios, ficção, poesia, e promover debates. Inclusive, políticos. Essa renovação tem um lado muito positivo, e eu fiquei surpreso com a repercussão da minha eleição.
Bravo: E como está esse momento de lançamento do livro? Como têm sido as suas andanças agora?
MH: Fiz dois lançamentos em São Paulo: um na Livraria da Tarde e outro na Biblioteca Mário de Andrade. No primeiro, conversei com o meu editor, Emílio Fraia, que também é escritor. No segundo, com o jornalista Manuel da Costa Pinto. Foi muito legal. Falei um pouco sobre a trilogia e sobre o projeto.
O livro demorou 18 anos para ser concluído. E agora vou fazer uma viagem por Minas — vou a Belo Horizonte, Itabira e Ouro Preto. Ouro Preto é um dos lugares simbólicos de Dança de Enganos. Devo muito a Minas e à literatura mineira, e esse foi um modo de homenagear, ou de pagar em parte essa dívida.
Bravo: E como foi esse processo, especialmente em Ouro Preto? Foi necessária alguma imersão nesse lugar?
MH: Sim. Tenho lembranças de Ouro Preto dos anos 1970, quando eu ainda era mochileiro e estudante. Eu ia ao Festival de Inverno, que era muito famoso. Isso foi decisivo para eleger a cidade como um dos espaços centrais do romance.
Revisitei Ouro Preto várias vezes, fiquei um tempo lá, conversei muito com as pessoas, reencontrei amigos. Eles me ajudaram, me mandaram muita documentação. Eu selecionei materiais — jornais, teses, ensaios — e conversei com muita gente. Fui umas três ou quatro vezes à cidade.
Também tinha minhas leituras dos poetas mineiros. Afinal, nossa literatura começou em Minas, com os poetas da Arcádia e da Inconfidência. E Minas é o lugar de grandes poetas e narradores, alguns dos maiores do país. Sempre fui leitor e admirador desses mineiros, e eles voltaram com mais força nesse momento.
Bravo: Você falou que era mochileiro na juventude — e eu tenho a suspeita de que continua sendo. Queria que contasse um pouco dessas experiências, e o quanto isso influenciou sua literatura e seu desejo de escrita.
MH: Ah, eu andei muito. Morei em sete cidades. Saí de Manaus muito jovem, morei em Brasília, em São Paulo por uma década, e também em Santos nos anos 1970 — passei um ano lá. Daí vem essa escolha de Santos como um dos lugares da trilogia.
Morei também na Europa, em várias cidades, e nos Estados Unidos. Andei bastante. Essa experiência de andanças, essa vida um pouco nômade, foi importante para escrever meus livros; romances, contos e crônicas.
Toda a minha obra segue de muito perto a minha vida. Há traços de autobiografia, mas, no fundo, quando um lance autobiográfico entra na ficção, já não é mais a sua vida, já é ficção. Passa pela memória, pela imaginação, e a biografia se dissolve nessa nova linguagem literária.
Percebi que podia contar essa história como um romance de formação, que acabou virando uma trilogia. Na verdade, era um romance de mais de 800 páginas, mas, por prudência editorial — e pela minha própria saúde mental — decidi dividir em três partes. Senão, seria um tijolaço (risos), pesado demais.
Fiquei de 2008 a 2017 nesse processo. Revisei muito. A cada volume, reescrevia trechos, retomava materiais antigos. Isso foi demorando. Entre A Noite da Espera e Pontos de Fuga, houve um intervalo de dois anos; e entre Pontos de Fuga e Dança de Enganos, um intervalo maior: quase cinco anos, quatro anos e meio. Foi tudo muito pensado.
Mas também houve perturbações: a pandemia e o governo anterior, que foi bastante caótico. Isso repercutiu na escrita e na revisão do último volume.
Bravo: E emocionalmente? Como isso afetou o seu processo de escrita, especialmente nesse período?
MH: Em Pontos de Fuga há a fala de um personagem nortista desses pesadelos que voltam, pesadelos políticos que se repetem, cíclicos, no Brasil e na América Latina.
Em Dança de Enganos, há também uma personagem salvadorenha que diz não querer vir para o Brasil com o companheiro. Ela fala: “Não quero viver clandestina mais uma vez.” Ele responde: “Mas a ditadura está terminando.” E ela diz: “Esses monstros agonizam, mas não morrem.” Eles voltam com força.
Então, repensei algumas coisas ao reescrever Dança de Enganos. Do ponto de vista da organização do romance, foi importante. Tive que acrescentar alguns trechos. Não muitos, mas o pouco que se acrescenta já mexe na estrutura, e é preciso rever muita coisa.
Bravo: Essa frase que você citou me despertou curiosidade: era um sentimento que você teve durante a ditadura? Essa questão do exílio, da clandestinidade, do autoritarismo que não morre?
MH: Sim. Tudo isso. Esse horror pelo qual passamos nos quatro anos do governo anterior e na tentativa de golpe, tem a ver com uma falta de acerto de contas do ponto de vista jurídico. Porque, em 1979, a anistia geral simplesmente não contemplou a violência, nem os crimes dos torturadores, generais e coronéis que participaram do golpe e do longo período da ditadura.
A anistia foi um presente, uma espécie de continuidade dessa possibilidade de retorno do autoritarismo. Ninguém foi punido. Os carrascos, os algozes saíram totalmente ilesos. O esquadrão da morte só mudou de nome. Depois, vieram tantos massacres. E até hoje, nas periferias, a polícia militar mata à vontade. Houve o massacre do Carandiru, tantos outros massacres no Pará, nas áreas rurais, com trabalhadores assassinados.
Há pouco tempo, no [Terra Indígena] Vale do Javari, o Dom e o Bruno, os dois jornalistas assassinados. Todo dia há violência no Brasil. Isso nunca parou, e não parou porque nunca houve punição exemplar. A violência é uma presença constante na sociedade brasileira.
Eu escrevi também como uma forma de vingança. A literatura como vingança. Você se vinga de muitas coisas, exorciza seus fantasmas, na medida do possível. E, de certa forma, se vinga de uma injustiça.
Bravo: Acho que você acaba respondendo a outra pergunta que eu faria: sua literatura sempre dialogou com questões políticas e sociais. Mas a ficção exige uma certa distância, uma entrega ao imaginário. Minha dúvida é sobre essa tensão entre o mundo em chamas — literalmente — e o exercício de fantasiar, de se permitir imaginar. Como isso funciona no seu processo diário de escrita?
MH: No fundo, nenhum desses romances, e muito menos o primeiro, é estritamente político. São dramas familiares, conflitos íntimos relacionados ao quadro político, social e histórico. Esse sempre foi o meu projeto: trabalhar com o núcleo familiar e expandi-lo para a cidade e para questões mais amplas.
No meu primeiro romance isso ainda aparece de forma muito tênue. É um livro mais lírico, mais voltado às vozes da memória. O quadro político não está colocado.
Mas, a partir de Dois Irmãos, Cinzas do Norte, Órfãos do Eldorado, e a trilogia, todos têm essa relação entre o familiar e o político, o social. Esse era o meu projeto desde o início. E, à medida que você vai escrevendo, vai tentando aprofundar essas questões.
Bravo: E quando começou, com o primeiro livro, você já sabia onde queria chegar, quais desdobramentos seriam possíveis? Ou isso foi se construindo ao longo do caminho?
MH: Eu tinha uma fixação no drama familiar. Depois, com a experiência de vida e de leitura, essa expansão foi sendo construída, de romance em romance.
Alguns de forma mais clara. Por exemplo, Cinzas do Norte é um romance que me deu muito trabalho, mas é, digamos, primo da trilogia. Já a trilogia foi mais difícil porque eu sabia que seria um projeto ambicioso. Não pretensioso, mas ambicioso pelo volume, pela quantidade de situações e pelo tempo que eu queria dar.
Demorou muito. Dezoito anos. Não sei se é muito tempo, mas é o meu tempo.
E também há o fato de ter saído de Manaus, do Amazonas, e acompanhar um pouco a minha vida, como diz a epígrafe de Cinzas do Norte, citando Guimarães Rosa: “Eu sou de onde nasci, mas sou de outros lugares.” Ninguém é obrigado a escrever o tempo todo sobre o próprio lugar.
Bravo: E como você lida com essas mudanças, abandonos de ideias? É algo sofrido ou não?
MH: Não, não é sofrido. O mais complicado, como dizia o Graciliano Ramos, é escrever. Ele já falava isso em Caetés: quem tenta escrever sobre os caetés acaba contando outra história.
O mais difícil é transformar ideias em palavras. [Émile] Zola e [Guy de] Maupassant disseram praticamente a mesma coisa: a gente tem ideias, mas o difícil é passá-las para o papel. Às vezes, demora muito.
Você precisa encontrar o tom do narrador, eleger as vozes, estruturar tudo, dar coerência ao conjunto. Elaborar personagens consistentes. Esse é o desafio do romance.
Bravo: E como é o seu processo de escrita? Você tem algum método, uma rotina?
MH: Não tenho ritual. Escrevo todos os dias. Às vezes, quando empaco — quando “não baixa o santo” — eu leio. Leio muito mais do que escrevo. Meu tempo de leitura é bem maior do que o de escrita. Mas planejo muito. Faço esboços. Sou meio maníaco com a pré-figuração, com essa configuração inicial daquilo que vou fazer.
É uma mania, digamos assim. Esse é o meu método. Cada escritor ou escritora tem o seu ritmo, o seu processo. No meu caso, antes de começar a escrever, eu escrevo sobre o que vou escrever. É uma forma de compreender o que quero dizer, porque, sinceramente, eu não sei escrever simplesmente sentando e começando. Nunca consegui. Há quem faça isso, de modo quase improvisado, e acho bonito, mas não é o meu caso.
Ainda assim, o imprevisível sempre conta. Por mais que eu planeje e faça esboços e croquis, o romance se constrói mesmo é no ato da escrita, no calor do texto. Mas sem esse estudo preliminar — o que os arquitetos chamam de projeto de estudo —, eu não consigo entrar num livro. Talvez seja uma limitação, não sei. Mas é o meu jeito. E, no fim, todos temos as nossas limitações.
Bravo: Às vezes é justamente isso que dá potência, né?
MH: Pode ser.
Bravo: E o que você tem lido ultimamente? Quais autores ou autoras têm te inspirado?
MH: O [William] Faulkner dizia que, depois dos 50 anos, só se deve ler os clássicos. Eu, infelizmente, não tenho acompanhado muita coisa nova. Por causa da idade, do trabalho. Eu nunca vivi só dos meus romances — dou cursos, palestras, escrevia crônicas no Estadão, até sair de lá para ter mais tempo para os livros. Então, acabo lendo menos novidades.
Mas ainda leio bastante. Recentemente, li o “Sátántangó”, do prêmio Nobel [László Krasznahorkai], e também outra obra dele, O Último Lobo, em tradução francesa. Tenho acompanhado alguns autores brasileiros, na medida do possível. É impossível acompanhar tudo. Se alguém diz que lê tudo, está mentindo (risos). Recebo livros de autores acreanos, paraenses, amazonenses, nordestinos… é uma avalanche.
Li recentemente um romance muito bonito do Carlos Marcelo, O Escutador, e também uma novela do Raimundo Carrero “Colégio de Freiras”. E quero ler o novo livro do Itamar Vieira Júnior. São autores que admiro, mas é humanamente impossível dar conta de tudo.
Bravo: Prometo que estamos quase no fim, mas não tem como não perguntar. Você já falou muito sobre o Nobel, e sempre pareceu lidar com isso de forma muito serena. Queria saber como foi, para você, ver o seu nome naquela lista.
MH: Fiquei surpreso e contente, claro, de ver meu nome lá. Mesmo com apenas 5% de chance, segundo as apostas. Mas eu não tinha ilusões. Foi bacana, principalmente porque ganhei novos leitores, tanto no Brasil quanto no exterior.
Alguns livros meus começaram a ser traduzidos para idiomas em que ainda não tinham saído. Na República Tcheca, por exemplo. Talvez tenha relação com essa visibilidade, talvez não. Meus romances já circulam por muitos países, então é difícil saber. Mas não fiquei eufórico, nem um pouco. A essa altura da vida, a vaidade está em outro patamar.
O que realmente importa é o trabalho: manter a concentração, ler, escrever, conversar com leitores e estudantes. Ser honesto com o que faço. Claro que um prêmio é sempre bem-vindo, mas o verdadeiro reconhecimento vem dos leitores.
E essa indicação nem partiu do Brasil. Veio de alguma instituição ou universidade no exterior. Talvez pela circulação dos livros na Europa e nos Estados Unidos. Para mim, é um mistério.
Mas, sinceramente, a literatura brasileira já deveria ter sido premiada há muito tempo. Há poetas e prosadores de enorme estatura; Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, comparáveis a qualquer grande nome da literatura mundial. Quantos escritores ganharam o Nobel com a força literária de um Rosa ou de uma Clarice?
A verdade é que a Academia Sueca nunca olhou de fato para o Brasil. E mesmo dentro da América Hispânica, muitos gigantes foram ignorados: [Jorge Luis] Borges, Alejo Carpentier, [José] Lezama Lima, [Juan Carlos] Onetti, [Júlio] Cortázar.
Deram o prêmio ao [Pablo] Neruda, à Gabriela Mistral, ao [Gabriel] García Márquez. Todos grandes, sem dúvida, mas há outros de valor imenso que nunca foram reconhecidos. O Borges foi um poeta, ensaísta e contista magnífico. O Rosa escreveu talvez o maior romance da nossa língua contemporânea. O João Cabral [de Melo Neto], o Murilo Mendes, o Manuel Bandeira. Nenhum deles foi premiado.
Então, acho que quem um dia ganhar o Nobel representando o Brasil deveria dizer isso claramente: como explicar tantos anos de silêncio diante de uma literatura tão poderosa?
Bom, o Machado de Assis publicou Memórias Póstumas de Brás Cubas em 1880, e morreu em 1909. O Nobel foi criado em 1901. Então, claro, provavelmente ainda não havia traduções para o inglês ou para o francês — não tenho certeza —, mas o fato é que ele já era o maior escritor da segunda metade do século XIX, o maior da América Latina.
De vez em quando, a Academia faz uma concessão para a África, para a Ásia… mas, enfim, não devemos nos preocupar com isso. Eu não tenho ilusões. O que me importa mesmo é o leitor brasileiro. Sobretudo o jovem leitor. Essa é, digamos, a minha obsessão: a formação do leitor.
Aquilo que o Antônio Cândido dizia, o “direito à literatura”, sempre me guiou muito. O direito de todos — jovens, crianças, de todas as classes sociais — de terem acesso à literatura.
Bravo: Excelente. E, de tudo que conversamos, há algo que você gostaria de acrescentar?
MH: Acho que não. Falamos de muita coisa. Espero apenas que os leitores leiam Dança de Enganos com prazer. Acho que é o meu livro mais refletido, mais maduro, de certo modo. E essa trilogia, para mim, foi um dos grandes projetos da minha vida.
Matéria na íntegra: https://bravo.abril.com.br/literatura/milton-hatoum-encerra-um-ciclo-e-comeca-muitos-outros/
10/11/2025