Quem quiser tentar entender o que se passa com a democracia brasileira tem um bom guia no livro “Por que a democracia brasileira não morreu?”, dos cientistas políticos Carlos Pereira, da FGV do Rio, e Marcos Melo, da Universidade Federal de Pernambuco, lançado hoje na Academia Brasileira de Letras. Os autores se reunirão com a acadêmica Lilia Schwarcz e com o também cientista político Jairo Nicolau, do CPDOC da FGV, para um debate, com participação do público.
O livro faz um balanço da política brasileira das manifestações de 2013 até hoje e, embora credite às instituições brasileiras a sobrevivência da democracia diante dos avanços autoritários do governo Bolsonaro, faz ressalvas importantes sobre seu funcionamento. Essas ressalvas criam o que chamam de “segredo ineficiente” de nosso sistema político-partidário, que funciona apesar de suas deficiências, em contraposição ao “segredo eficiente” do sistema político inglês identificado pelo jurista, jornalista e pai intelectual da revista The Economist Walter Bagehot há 160 anos.
Bagehot via uma “fusão quase completa dos poderes Executivo e Legislativo” como consequência do sistema parlamentarista inglês — ao contrário do presidencialismo, que divide os Poderes e pode antagonizá-los. Para os autores Pereira e Mendes, as instituições políticas no país, mesmo marcadas por grandes imperfeições e disfuncionalidades, cumpriram papel decisivo na sobrevivência da democracia, embora o sistema brasileiro de presidencialismo de coalizão tenha muitos pontos de veto.
Eles destacam elementos institucionais da resistência do Brasil ao autoritarismo, incluindo o Judiciário, os órgãos de controle (a exemplo do Tribunal de Contas da União, TCU), as Forças Armadas e os fortes governadores criados pelo federalismo brasileiro. Como as coalizões brasileiras não se baseiam em acordos programáticos, dão margem a um sistema orientado para a captura de rendas e de baixíssima clareza de responsabilidade. Não é totalmente paralisante nem vertical, mas é marcado por altos custos de transação e movimentos contraditórios. De um lado, há imobilismo pelo excesso de barganhas oportunistas e comportamento rentista. De outro, há um voluntarismo majoritarista que se manifesta nas iniciativas curto-prazistas voltadas para a blindagem de políticas, estruturas burocráticas e indivíduos, criando rigidez e ineficiências crônicas.
A atual coalizão de sustentação do governo Lula 3 poderia ser definida como um “Frankenstein”, dizem os autores, embora isso captasse apenas sua heterogeneidade e falta de coesão. Não se trata de uma “geringonça” brasileira; na portuguesa, os integrantes ocupavam posições contíguas no espaço ideológico. Tampouco é frente ampla ou governo de salvação nacional, que se caracteriza por acordos pré-eleitorais, não pós-eleitorais, que não incluem o núcleo duro que sustentava o regime anterior.
“Coalizão monstro” é o termo adequado para os autores para referir-se a algo inédito nas democracias: uma coalizão assombrosa de mais de uma dezena de partidos, aquela com o maior número de partidos e ideologicamente mais heterogênea da história do presidencialismo multipartidário brasileiro, ressaltam. Como é sabido, lembram os autores, quanto mais parceiros e mais heterogênea for a coalizão, maiores serão as dificuldades de coordenação, mais altos serão os custos de sua gerência e menos sucesso legislativo ela alcançará.
Nosso dilema institucional é garantir que nosso modelo híbrido não degenere nas patologias majoritárias e consociativas, melhorando a inteligibilidade do funcionamento do sistema para a sociedade. Isso requer o fortalecimento das instituições de controle, o aumento da transparência do sistema e a eliminação das anomalias na arbitragem das relações Executivo-Legislativo. A cooptação generalizada produz cinismo cívico, que foi fundamental para a ascensão de Bolsonaro, advertem os autores.
Livro ‘Por que a democracia brasileira não morreu?’ sustenta que nosso sistema político-partidário funciona apesar de suas deficiências.