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O drama da doença mental

 

Ferreira Gullar, de quem sou amigo há muito tempo, é um grande poeta, e um grande ser humano, uma pessoa de vida difícil e sofrida. Perseguido pela ditadura, passou longo tempo no exílio, e, como se isso não bastasse, tem um filho esquizofrênico vivendo num sítio em Pernambuco; um outro filho, igualmente esquizofrênico, morreu de cirrose. Baseado em sua dolorosa experiência, Gullar escreveu em sua coluna da Folha de S. Paulo três artigos protestando contra a falta de vagas hospitalares para doentes mentais. “Ninguém aguenta uma pessoa delirante ou agressiva dentro de casa”, desabafou. A repercussão foi extraordinária, com centenas de leitores manifestando-se, e muitas entrevistas, incluindo matéria de capa na revista Época do último fim de semana. Ferreira Gullar trouxe à tona um problema real, candente e polêmico.


A raiz da polêmica está na palavra manicômio. Uma instituição que nasce com a modernidade. Na Idade Média, o louquinho da aldeia era tolerado e pessoas que ouviam vozes poderiam ser consideradas santas. Mas numa sociedade baseada na produção e na competição o maluco é um mau exemplo: não trabalha. Surgem então os manicômios. Estabelecimentos sombrios, em que os doentes eram tratados como animais e inclusive acorrentados, coisa que na França só terminou com a Revolução de 1789, graças à iniciativa do médico e membro do comitê revolucionário Philippe Pinel. Sem ir muito longe: o nosso São Pedro chegou a ter quase 6 mil doentes internados, cinco em cada leito. Em meados do século 20 uma nova e importante mudança ocorreu, em parte como resultado da luta pelos direitos humanos a partir da II Guerra, mas também por causa do extraordinário progresso médico, com advento de novos e potentes medicamentos para a doença mental, e a valorização do tratamento ambulatorial e comunitário.


No Brasil o processo de mudança foi conduzido pelo Movimento Antimanicomial, baseado na experiência italiana de Franco Basaglia, e que aqui teve como líderes o sociólogo Paulo Delgado (depois deputado) e o psiquiatra Paulo Amarante, autor de uma história da reforma psiquiátrica. A reforma, no Brasil e em outros países, foi grande, manifestando-se sobretudo na redução dos leitos psiquiátricos.


Em Massachusetts, onde fiz um estágio de saúde pública nos anos 80, o número tinha baixado de 8 mil leitos para cerca de 400.

No Brasil, a diretriz da reforma, dentro do SUS, resultou da Lei 10.216 de 2001 (Lei Paulo Delgado) que transfere o foco do tratamento do hospital, para uma rede ambulatorial e comunitária de atenção psicossocial. Entre os anos de 2003 e 2005 foram desativados 6.227 leitos. A maior parte deles estava em hospitais privados, credenciados pelo Ministério da Saúde, o que gerava uma despesa não pequena (e lucros idem para os proprietários de hospital) .


E aí voltamos aos Estados Unidos. Lá verificou-se que a diminuição dos leitos (o déficit hoje é de cerca de 100 mil vagas hospitalares) não resolveu o problema. Muitos pacientes não tinham para onde ir e viraram “homeless”, pessoas que vagueiam pelas ruas, onde são assaltados e maltratados, isto sem falar nos casos graves e urgentes que, como menciona Ferreira Gullar, exigem tratamento hospitalar.

Um problema que tem chamado a atenção de, entre outros, Germano Bonow, veterano sanitarista, ex-secretário da Saúde do RS e deputado federal. A pergunta que emerge é: terá o pêndulo oscilado para o lado oposto?

Não há dúvida de que a reforma psiquiátrica era urgente e necessária no Brasil, além de representar uma medida de justiça social; agora, porém, precisamos completar de forma digna e racional o que foi começado, e para isso o alerta de Ferreira Gullar representa uma significativa contribuição. A propósito, ele faz uma observação que vem apoiar a campanha anti-crack da RBS.

“A doença de meus filhos foi precipitada pela droga” diz ele. Por causa da droga, e como muitos pais, Ferreira Gullar não valorizou o comportamento anormal dos filhos adolescentes. Uma triste lição que, como o problema da doença mental, precisa ser levada em conta.


Zero Hora  (RS), 2/6/2009