O centenário do falecimento de Machado de Assis está sendo lembrado com numerosos eventos e publicações e muito especialmente por iniciativas promovidas pela Academia Brasileira de Letras, da qual foi fundador e presidente. As celebrações, no seu pluralismo e diversidade, reiteram a consagração de Machado como o paradigma do nosso autor clássico. Clássico na acepção do autor de uma obra literária de reconhecida excelência; que se projeta no tempo da vida cultural; ocupa um lugar de inequívoca primazia no cânone da nossa língua e que, transpondo a barreira da tradução, vem sendo crescentemente acolhido no plano internacional, no rol dos grandes escritores da literatura ocidental.
São vários os fatores que fazem de Machado o nosso clássico. No âmbito do sistema literário brasileiro, culturalmente configurado pela interligação de autores, obras e públicos, Machado de Assis representa, na linha de Antonio Candido, o ponto de maturidade da formação do sistema que provém do adensamento de referências mútuas. Neste adensamento a qualidade da sua obra inaugura, nas nossas letras, a efetiva instigação criativa da angústia da influência de que fala Harold Bloom.
Outro fator identificador da sua qualidade de clássico provém das características de sua obra como uma chave reveladora da época em que viveu. Com efeito, dada a relação entre literatura e sociedade, tal como esteticamente internalizada na sua obra, Machado de Assis nos dá um acesso privilegiado ao entendimento do Brasil, como realçaram Roberto Schwarz e Raymundo Faoro.
Machado de Assis tem outro e mais significativo atributo de um clássico: o da atualidade da sua obra de grande escritor, que contém vários níveis de significado e instiga múltiplas leituras. É por esta razão que cada geração sente a necessidade de reinterpretá-lo. Daí sua fortuna crítica que se adensa, no correr dos anos, pelo incessante esforço dos estudiosos, dedicados a decifrar o enigma do seu olhar, para evocar a formulação de Alfredo Bosi. A fortuna de Machado não se circunscreve a seus devotados intérpretes. Alcança sucessivas gerações de leitores que, na sua obra, encontram distintas ressonâncias que estão em sintonia com suas próprias necessidades de expressão. Daí a presença de seus livros junto ao público leitor, o que é outro significativo componente que fez de Machado um clássico.
Miguel Reale observou que a Machado de Assis se deve o fermento crítico injetado no cerne da nossa cultura. A raiz da originalidade desse fermento se baseia no estilo do “tom machadiano” que, com a discórdia concordante do humor e da ironia, ao mesmo tempo encobre e descobre (dois verbos parentes, como está dito a propósito da diplomacia em Esaú e Jacó) as ambigüidades do que se contém nos subterrâneos da sociedade e dos seres humanos. É na perspectiva de leitor que mencionarei facetas de alguns dos seus contos que são exemplares deste fermento crítico. Relembro que Lúcia Miguel Pereira realçou que Machado foi um mestre no gênero, sem exemplos na nossa língua, e nem talvez nas estrangeiras, uma vez que, na literatura comparada, como aponta John Gledson, o conto estava, na sua época, conquistando uma nova dignidade com escritores mais jovens como Tchekov e Maupassant.
Um dos temas recorrentes de Machado de Assis é o descompasso entre a ambição da “mosca azul” da criação e as limitações da vocação e da competência. Este é o enredo de Um Homem Célebre, a narrativa do permanente desconforto de Pestana, um bem-sucedido compositor de polcas que almeja criar uma peça da qualidade erudita que admira em Beethoven e Mozart. Para tanto, apesar do seu dedicado empenho e estudo, falta-lhe o dom da inspiração, que só alcança o patamar da polca. Este é, também, o tema de Cantigas de Esponsais. Mestre Romão é um bom músico. Se pudesse, seria um grande compositor, mas viveu e morreu com o dilema “entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens”.
Outro tema recorrente de Machado é o da identidade, dada pela interação das duas almas do ser humano: a “que olha de dentro para fora” e a que “olha de fora para dentro”, articulada em O Espelho. O conto é a narrativa de um jovem alferes que vai passar uns dias na fazenda da tia e, vendo-se só no local, apenas se enxerga no espelho como uma sombra. Reencontra seu rosto e equilíbrio quando enverga a farda e, graças a essa alma exterior, supera o abismo do “cochilo do nada” e identifica no espelho a sua figura integral.
Um dos componentes da arte de Machado é a maestria com que compõe a relação entre o fato real e o imaginado. É o que se pode apreciar em Uns Braços, cujo enredo é o forte desejo do jovem adolescente Inácio, instigado pela visão dos braços de dona Severina, uma senhora casada em cuja casa estava morando e que por ele acaba se sentindo atraída ao perceber o impacto avassalador que nele causa. O desejo não se consuma, mas a força do sonho - parte do real, parte do imaginado - perdura mais forte na sensibilidade de Inácio do que o dos amores mais efetivos e longos que se sucederam. Missa do Galo é outro admirável conto desta natureza.
Pai contra Mãe mostra como a sociedade brasileira se viu envenenada pela escravidão, que criou o ofício de pegar escravos fugidios. Candido Neves, sem maiores vocações para o trabalho, dedica-se a esse ofício. Impelido pela necessidade de sustentar seu filho recém-nascido, que corria o risco de ir para a roda dos enjeitados, logra capturar a mulata fujona Arminda, grávida, que implora para ser solta. Ele não vacila. Recebe os 100 mil réis de gratificação ao entregar Arminda, que, de medo e dor, aborta no chão da casa do seu dono. Conclui o duro “mors tua vita mea” (morte tua, vida minha) da luta pela sobrevivência com “nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”.
O Estado de S. Paulo (SP) 16/11/2008