No fantástico filme de Ettore Scola O Baile, quase meio século da ainda recente história européia é reproduzida no mais improvável dos cenários, um salão de danças em Paris, freqüentado por solteirões e solteironas que dançam, flertam, brigam, reconciliam-se, mas sempre saem sozinhos. Os anos vão passando: os anos da ascensão dos partidos de esquerda, os anos da ocupação nazista, a Libertação, maio de 1968... Detalhe: nenhum dos magníficos atores e atrizes diz sequer uma palavra.
O filme é completamente mudo, governado inteiramente pela música e pelos gestos dos personagens. Terminamos de vê-lo, maravilhados, e concluímos: o baile é a vida. E isto explica o papel que os bailes e as reuniões dançantes desempenharam em nossa própria existência.
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E por que o baile é a vida? Porque ela é uma ritualizada e aceita forma de aproximação entre os sexos. O baile é a música e a dança, duas coisas que permitem a liberação de nossas emoções, mas de uma forma que, ao menos no baile clássico – estou pensando no bailes da Reitoria, que, animados pela orquestra Norberto Baldauf, eram parte da tradição porto-alegrense – foram responsáveis por dezenas de casamentos em Porto Alegre. O mesmo se pode dizer dos bailes do Leopoldina Juvenil, e da Sogipa, e do Petrópole, e do Clube do Comércio, e do Círculo Social Israelita, e os bailes de debutantes... A lista é imensa, e vocês podem aumentá-la à vontade e suspirando bastante.
O baile, sempre aos sábados, e sempre começando por volta das 23h, era aguardado com a maior ansiedade por moças e rapazes. A ansiedade não impedia, contudo, que rígidas convenções fossem seguidas. O “carnet du bal”, na qual as moças francesas anotavam os nomes dos candidatos a uma dança, com o tempo foi extinto, mas outras regras eram seguidas. O rapaz podia tirar a moça para dançar, mas isso não garantiria que ela se tornasse seu par a noite inteira; aliás isso seria visto como conduta imoral. E havia coisas ainda mais alarmantes, tais como colar o rosto. Deus, colar o rosto, aquilo era pior que uma relação sexual aberta! Mas, para o felizardo que o conseguia, equivalia a um troféu. Lembro um amigo, dizendo radiante depois de ter dançado um bolero de rosto colado com uma garota: “Bota a mão aqui na minha bochecha, vê como ainda está quente”. A bochecha era a zona erógena mais importante da época.
Esses atrevimentos explicavam a constante presença das mães das meninas, sempre vigilantes, e dos pais que, coitados, lutavam por não adormecer.
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A tradição resistiu ao tempo, como o mostram os bailes da terceira idade, dominados naturalmente pelas mulheres, que sobrevivem melhor aos agravos da vida; muitas vezes, e dada a carência de homens, elas têm de dançar entre si. O que em nada prejudica a animação. O baile mobiliza o que temos de mais vital em nós. E o baile nos ensina uma lição: dançar é muito bom, dançar é uma coisa vital. Ettore Scola tinha razão: a história da humanidade poderia ser retratada num gigantesco baile, de preferência à fantasia, inagurado por Adão e Eva. Aliás um baile no Jardim do Éden bem poderia ter evitado o pecado original. Desde que Adão não tentasse, claro, colar o rosto na bela face de Eva.
Zero Hora (RS) 16/11/2008