A criação dos cursos jurídicos no Brasil - um em Olinda e outro em São Paulo - pela lei de 11 de agosto de 1827 foi um evento inaugural. Trouxe desdobramentos político-culturais que cabe relembrar e que vou discutir com foco no curso de São Paulo, que hoje integra a USP.
A Faculdade de São Paulo iniciou as suas atividades em 1º de março de 1828. Implantou-se numa parte do Convento de São Francisco e, no mesmo local, no centro da cidade, permaneceu. Teve, assim, em contraste com outras instituições de ensino superior - inclusive o curso de Olinda, que depois se transferiu para o Recife - uma continuidade de localização física. Esta continuidade é excepcional na vida das instituições brasileiras e quase única numa cidade em mudança constante como São Paulo. São Paulo era, em 1827, uma pequena vila provinciana a que a Academia e os estudantes deram vida. Na década de 1870, beneficiada pelas rendas do café, passou por uma transformação urbanística que teve a conduzi-la o professor da Faculdade João Theodoro, que governou a então Província de São Paulo de 1872 a 1874. Sucessivas mudanças trazidas pela industrialização e pela imigração fizeram de São Paulo a imensa metrópole de hoje. Por isso a estabilidade da permanência da Faculdade, numa cidade em que tudo se refaz, tem uma singularidade que cabe destacar.
A continuidade da localização física contribuiu para conferir às Arcadas e ao pátio da Faculdade - herança arquitetônica do velho convento - uma aura própria. Esta aura é a tradição concebida como um fio condutor que vincula o passado ao presente e se abre para o futuro. Desta tradição existe memória - a sede da alma, como dizia Santo Agostinho. Esta memória é oral, mas está lastreada na memória escrita de um sem-número de relatos de ex-alunos. Para esta memória muito contribuíram, entre outros, os nove volumes de Tradições e Reminiscências, de Almeida Nogueira (São Paulo, 1907-1911), e o livro de Spencer Vampré sobre a Faculdade, publicado em 1924. Estes dois eminentes professores da Faculdade redigiram seus livros com o objetivo de estimular a mocidade acadêmica e dar continuidade ao papel da Academia de São Paulo na vida brasileira.
Este papel, na sua origem, estava ligado ao significado do convívio acadêmico no Brasil-Império, como realçou o educador e professor das Arcadas Almeida Jr., num artigo de 1952 publicado na revista da Faculdade. As Arcadas ofereceram aos moços inteligentes de então, esparsos pelo território nacional, a oportunidade de se reunirem; de forjarem uma rede de amizades; de se libertarem das amarras paternas; de testarem o potencial de seus talentos de futuros advogados, políticos, poetas, jornalistas, escritores; e de formarem, em conjunto e em interação com professores como José Bonifácio, o Moço, um patrimônio comum de idéias e sensibilidades. Daí uma vinculação afetiva e intelectual. Esta foi decisiva na conformação das elites dirigentes do País e da maior relevância na manutenção da unidade nacional.
Esta vinculação se prolongou na República Velha. Explica o mistério e a força política que cercou a Bucha, a sociedade secreta de apoio mútuo criada por Julio Frank, professor do curso preparatório à Faculdade no Império. Esta vinculação se manteve vigente, no correr dos tempos, ainda que de forma mais amainada no seu impacto, com a crescente complexidade e diversificação do Brasil contemporâneo.
A memória do papel da convivência acadêmica é uma memória viva, como podem testemunhar os que passaram pela Faculdade, que a cultivam na periodicidade das comemorações dos seus aniversários de formatura e no dinamismo participativo das atividades da associação dos ex-alunos.
A especificidade e a força da atração, até hoje, do convívio acadêmico na Faculdade do Largo de São Francisco se explicam, pois no correr da sua história gerações e gerações de jovens estudantes, ao ingressarem na Faculdade, sentem que integram uma comunidade à qual pertenceram na sua juventude tantas figuras de grande destaque na vida cultural, política e jurídica do País. Daí o natural compromisso de fidelidade que, com a generosidade dos moços, eles tendem a assumir em relação aos melhores ideais que seus antecessores, na juventude, proclamaram no pátio da Faculdade e tantos filhos das Arcadas subseqüentemente levaram adiante nas suas múltiplas e diversificadas trajetórias de vida.
A noção de autoridade - mais do que um conselho e menos do que um comando, como dizia o grande romanista Mommsen - ajuda a entender este compromisso de fidelidade. A palavra autoridade vem do latim augere, aumentar. O que sucessivas gerações de alunos, em função da tradição, instintivamente desejam fazer é sustentar a autoridade da Faculdade, acrescentando algo de relevante ao ato de sua fundação e ao amplo repertório de suas realizações. Neste contexto se insere o significado de uma tradição de resistência ao arbítrio. Como disse em 1949 Oswald de Andrade - que foi orador do Centro Acadêmico XI de Agosto em seu tempo de estudante -, por detrás da estátua de Rui Barbosa, aluno da Faculdade e paraninfo da turma de 1920, está a árvore da liberdade, marca da insubmissão aos interesses. Por isso a tradição das Arcadas se renova. Combina, em todos os campos, o novo e o velho, o a favor e o contra, a ordem e a desordem.
Concluo observando que a celebração dos 180 anos confirma que a Faculdade de São Paulo tem a característica de um local de memória, para recorrer à formulação de Pierre Nora. Locais de memória nascem e vivem de um sentimento de relevância dos fatos passados com os do presente e da sua importância para o futuro. Num país como o nosso, no qual a tradição é fraca, a memória é pouca e as instituições são frágeis, cabe comemorar o alcance da Faculdade como um local de memória da vida nacional.
O Estado de S. Paulo (SP) 19/8/2007