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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Medeiros e Albuquerque

RESPOSTA DO SR. MEDEIROS E ALBUQUERQUE

Meu ilustre confrade,

Fazeis a todos nós, fazeis, sobretudo, a vós mesmo uma injustiça bem grave, quando dizeis que vos escolhemos para que fôsseis aqui o contraste vivo com o patrono de vossa cadeira e o que primeiro a ocupou.

Certo, não sois como eles um humorista. Mas a vossa obra sadia e forte, por isso mesmo que é sadia e forte, é também de um sereno otimismo.
Por toda parte, nos vossos versos há a apologia da vida, do trabalho, do amor. Por toda parte, há neles a virilidade calma dos que não pedem às crenças enganadoras a força, que só dentro de nós devemos procurar. Nada disso é de um triste, de um epitáfio vivo de alheias alegrias, como, com tanta sem-razão, vos pintastes.
Basta, para vos desmentir, ler os vossos versos.
Passando diante das chamas, rubros ao clarão do fogo, as figuras dos ferreiros vos fazem dizer:

O vultos varonis, resplandecentes
ao rutilar fecundo do trabalho...
...essas chispas ardentes que desata
vossa bigorna, orvalho são de brasas
para a flor luminosa do porvir...

Vendo que em vão, apesar da dor, como um polvo, nos sugar todas as alegrias, novas alegrias nascem incessantemente, vós nos pintastes o que ocorre na natureza: também o sol haure em cada um dos seus raios gotas de água do mar. Mas para o mar correm os rios e o mar nunca se esgota! Por isso, do mesmo modo, proclamais com toda a razão que o homem sempre há de achar em si mesmo fontes de novos júbilos:

Polvo da eterna dor, debalde apertas
em teus fortes tentáculos sedentos
a humana essência, contra a qual desperta,
em teu furor os vários elementos.

Por mais que o gozo em rudes sofrimentos,
por mais que em cardos os rosais convertas,
hão de ao homem jorrar novos alentos
da consciência as termas sempre abertas.

Assim ao mar, que canta, estua, e brame
há séculos o sol – polvo de chama –
em cada raio suga-lhe uma gota.

Mas a seus pés, batidos noite e dia,
os continentes bradam à porfia:
“Rios ao mar!” – e o mar nunca se esgota.

E fostes vós que dissestes:

Na orgia dos sons, das cores
ficou minh’alma pagã;
bebendo o aroma das flores,
bebeu a luz da manhã....

E fostes vós que escrevestes esta risonha profissão de fé:

Mistério! Á vida eu a sinto
como um fluido incandescente
nas veias; porém, não minto,
dizendo que a acho excelente!

Certo, há também na vossa obra versos tristes, versos pessimistas. Mas o que nela domina é a crença num vago e harmonioso panteísmo:

Há uma só lei da Existência,
sob a esfera luminosa:
partilham da mesma essência
homem, ave, estrela e rosa...

E que o homem possa talvez ouvir ainda as vozes das coisas, de que ele, por uma lenta evolução, conseguiu ascender, vós o pro¬clamastes num belo soneto:

Um dia, interrogando o níveo seio
de uma concha voltada contra o ouvido,
um longínquo rumor, como um gemido,
ouvi plangente, e de saudades cheio,

Esse rumor tristíssimo, escutei-o:
– é a música das ondas, é o bramido,
que ela guarda por tempo indefinido
das solidões marinhas de onde veio.

Homem, – concha exilada, – igual lamento
em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento
aos recessos do espírito volveres.

E de saudade esse lamento humano,
de uma vida anterior, pátrio oceano
da unidade concêntrica dos seres...

Vosso exemplo demonstra que um engano o dos que pensam que os descrentes em velhos mitos obsoletos têm de ser forçosamente tristes. Bem ao contrário! Esses são os que não se agarram covardemente a ilusões que já tão pouco iludem. Esses, por isso mesmo que sabem que os pobres, os fracos, os infelizes, só aqui podem achar lenitivo para suas mágoas, descem até eles para os consolar; descem até eles para afirmar a solidariedade humana; descem até eles para lhes dizer as palavras, feitas de toques de clarins, que há em vossos versos:

Da antiga divindade o grande assento
ruiu de há muito às lúcidas procelas.
Não procures mais Deus no firmamento:
– o firmamento só contém estrelas!

Quem percorre os vossos dois livros de poesias nota como são poucas neles as composições de amor.
Ainda aí eu acredito que tendes razão. Eu sou dos que pensam que a poesia – isto é, a forma metrificada de expressão – tende a desaparecer. Acontecerá – é mesmo evidente que já vai acontecendo – com a civilização no seu conjunto o que acontece com os indivíduos: os poetas velhos são casos raros. A regra é que os escritores comecem pela poesia e passem à prosa.
Não se conhece mesmo nenhum grande poeta moderno que não tenha sido também um prosador. O contrário, porém, é freqüente: não faltam os prosadores que jamais tivessem sido poetas. Por fim, há uma afirmação absoluta, que se pode fazer sem medo de errar: há numerosos exemplos de bons poetas que passaram a bons prosadores; não há nenhum, mas nenhum, absolutamente nenhum, de um grande prosador que, no fim da sua carreira, se tenha convertido em poeta!

Com a humanidade sucederá o mesmo. A forma metrificada é uma forma transitória e inferior. Ela passará.
Vós mesmo, que começastes como poeta, há quinze anos que nos destes o vosso último livro de versos.

Depois, tendes escrito numerosos outros trabalhos, mas em prosa.
O que se pode dizer da forma métrica de expressão – também se pode, creio eu, dizer de certos assuntos. Penso que a muitos ouvidos soará como um paradoxo falar na hipótese de uma literatura de que o Amor seja excluído. A mim. entretanto, me parece evidente que um dia virá em que o Amor deixe de ser assunto eminentemente artístico – em que, pelo menos, deixe de constituir, como hoje, uma espécie de obsessão.

Dir-me-ão talvez que não é possível compreender a perpetuação da nossa espécie sem o Amor. E dirão a verdade. Mas nem tudo o que é essencial para a espécie é essencial para a arte. Essenciais para todos os seres são principalmente estas duas funções: comer e amar. Uma atende à conservação do indivíduo, outra à da espécie.
A poesia primitiva tratava, se assim se pode dizer, do que era mais urgente: de comer e de defender-se.

Quando se fala em poesia primitiva, é claro que não devemos evocar Homero, nem os autores das grandes epopéias da Índia. É preciso ir para trás, muito para trás. É necessário procurar as mais atrasadas tribos. Um canto de botocudos – poesia! muito boa poesia, que eles repetiam com grande entusiasmo, – dizia: “Hoje a caça foi boa, nós matamos um animal; temos o que comer; a carne é boa...” Que fortes, que deliciosas emoções eles sentiam ouvindo isto!

Da Austrália nós temos canção análoga:

O canguru corria depressa,
mas eu corria mais depressa ainda.
O canguru era gordo:
eu o comi! eu o comi!
Canguru! Canguru!

E seria possível citar várias outras.
A nós isto se afigura grosseiro, brutal, sem espírito algum. Mas para esses povos inferiores, cuja alimentação não se achava nunca assegurada, esses versos eram belíssimos. O que eles nunca compreenderiam era que se experimentasse qualquer emoção em recitar, por exemplo, os versos do “Corvo”, de Edgard Poe, tão maravilhosamente traduzido por Machado de Assis, poesia cujo estribilho nos dá um calafrio de pavor: “Nunca mais! Nunca mais!”. Infinitamente melhor lhes parecia aquele outro estribilho: “Canguru! Canguru!”. Fosse algum Bilac precoce, nascido oitenta séculos antes de tempo, lhes falar na hipótese de algum ser “capaz de ouvir e de entender estrelas” e era a ele que os selvagens da sua tribo deixariam sem ouvintes para atender a quem lhes cantasse: “Canguru! Canguru!”

A necessidade da alimentação individual ainda não passou para ninguém. No entanto, a comida deixou de ser um assunto poético. Só por gracejo um ou outro rimador desocupado fala de qualquer coisa comestível. E, se Charles Monselet fez um soneto célebre ao porco, celebrando-lhe as glórias culinárias, não foi senão por troça... É preciso um esforço mental quase impossível para nos representarmos um tempo em que cantar comezainas selvagens fosse matéria de arte. Mas o fato é incontestável. Depois o outro assunto que se impunha, antes ainda do amor, era a guerra: guerra contra os animais: a caça, e guerra contra os outros homens. Tratava-se da defesa pessoal, que criou essa qualidade altamente prezada: a bravura física.

Canções de caça, canções belicosas – achá-las-eis nos graus mais inferiores da civilização, quando ainda pouco se fala de amor.
Ele chega em terceiro lugar.

Mas o homem conseguiu afinal assegurar a sua alimentação. Desde logo, ela deixou de ser matéria de arte. Perdeu o mistério, perdeu o encanto. É certo, positivo. Cangurus, se nós os quisermos comprar, podemos fazê-lo até por telegrama: um telegrama à grande firma holandesa que centralizou o comércio de animais exóticos do mundo inteiro, basta para isso.
Mas a segurança individual, a segurança dos povos, continuou a ser problemática. Por isso a guerra, com toda a sua barbaria, continuou a ser cantada. Por isso, exatamente, os povos cuja vida estava mais freqüentemente ameaçada, mais cantaram a bravura, até mesmo a ferocidade, como uma virtude.

Felizmente, isso vai declinando. As guerras já não são assunto poético, senão muito secundariamente. Tomai ao acaso os cem últimos volumes de versos publicados, e vede quantos se ocupam de sonhos guerreiros. Já não faltam os que os amaldiçoam.
Leconte de Lisle, de quem Teófilo Dias traduziu Os versos, dizia:

Ó glória de matar, cruel, brutal, ferina!
De sangue, ó sede atroz, que não há lei que dorme!
Sede malditas vós, das vítimas em nome,
Ante o estúpido horror desta carnificina!

E que se canta hoje mais do que tudo? Canta-se o amor... Mas o amor já não basta. Vede como os grandes problemas sociais e filosóficos os atraem. Comparai duas datas próximas, 1830 e 1907, e observai que diferença!
Não é mesmo a vós, autor das Contemporâneas e dos Símbolos, que eu preciso fazer sentir isto: os vossos livros estão cheios de altas cogitações.

Dia virá em que os costumes e as leis modifiquem a posição da Mulher na sociedade; dia, em que ela possa estar em igualdade de situação diante do homem e em que, portanto, as relações entre os dois sexos não sejam, como freqüentemente são, essa luta de faceirice e graça, mas também, de parte a parte, luta de traição, de insídias, de embustes – únicos meios pelos quais a mulher pode às vezes reagir contra a iniqüidade das leis atuais que lhe atribuem uma posição inferior, quando ela devia ficar a nosso lado, com iguais deveres, com iguais direitos.
O Amor será sempre para a Espécie uma necessidade tão imperiosa como a alimentação para o Indivíduo; mas deixará, quando se regular, clara, simples, francamente, – deixará de ser o assunto poético: exclusiva preocupação, como já foi...

Em vez do egoísmo a dois, em vez desse delírio de posse recíproca de duas criaturas, em vez do que têm asseverado os poetas, garantindo que o amor justifica tudo, mesmo os piores crimes que, desde que se chamam passionais, aparecem como perdoáveis, lembrar-nos-emos que é preciso estender o círculo da solidariedade humana, mais, mais, cada vez mais.
Se os fatos se desenrolarem assim, como eu penso, nada haverá que não seja a norma corrente: a evolução das emoções cantadas pela arte acompanhará a evolução das emoções individuais.

Vede o que interessa ao recém-nascido, ao menino, ao adolescente, ao adulto. O primeiro só tem uma preocupação: alimentar-se. O segundo quer o alimento e o brinquedo. E todo brinquedo é jogo, e todo jogo é luta. O terceiro só pensa no amor. E o adulto? O adulto, que continua a alimentar-se, a lutar e a amar, já não põe normalmente o fim exclusivo da sua vida, se ela é nobre, se ela é digna de ser vivida, naquele sentimento. A humanidade seguirá a mesma marcha. A Arte de amanhã será bem diversa da de hoje.

Certo, meu ilustre confrade, eu não vos quero fazer responsável por todas estas afirmações, talvez um pouco aventurosas. Mas o incontestável é que os vossos versos zombam um pouco do amor sentimental e romântico, e tendem para um mais largo ideal de solidariedade:

Eu nunca desfolhei as verdes esperanças
sobre o lago letal do negro ceticismo,
nem nunca derramei nos álbuns de lembranças
as lágrimas fatais do velho romantismo.

Ó noites ideais dos tristes trovadores,
ó noites de luar dos trágicos Romeus,
nunca me deslumbrei nos vossos esplendores,
nunca vos descantei nos pobres versos meus.

Esse mórbido lume, algente, cor de prata,
que derramais a flux das límpidas alturas,
é um veneno sutil e pérfido, que mata
o singelo candor das betas almas puras.

Por isso eu vos prefiro, a vós, a luz candente
do intemerato sol, possante e abrasador,
entornando no mundo a ubérrima semente,
que dá vida à Matéria e aos homens dá valor.

Sim! gosto de o fitar, quando, como uma bênção,
se derrama na fronte augusta do Trabalho,
enquanto na bigorna os metais se condensam
ao pesado ribombo esplêndido do malho!

...E, pois, o Amor que canto, a sacrossanta chama,
que veste o coração de inextinguíveis galas,
não tem, nem o final triste de um melodrama,
nem o fino perfume exótico das salas.

Não é o amor ideal tecido de quimeras,
o amor que se traduz nas doces cavatinas,
e vive de cantar somente as primaveras
e de sugar o mel do cálix das boninas...

O amor franzino e meigo, o amor da Decadência,
que anda nos camarins dos teatros de luneta
cheio de pó-de-arroz e a recender a essência
dos extratos sutis da fina violeta...

...Eu canto o grande Amor, a eterna lei dinâmica
que imprime movimento às fibras da matéria
e como Maomé, na velha tenda islâmica,
os seres arrebata à imensidade etérea.

...Sim! eu canto esse Amor multiforme e complexo,
espalhado pela alma universal dos mundos,
que num íris eterno e num eterno amplexo,
liga o azul da amplidão aos báratros profundos.

...Sacrossanto, profundo, imaculado, eterno,
ora é como os heróis, robusto, estóico, enorme,
ora, meigo e singelo, é como o olhar materno,
fitando o doce berço onde a criança dorme.

É o Amor que sorri, que se expande, que lida
de dia e à noite vela e solícito vem
a correr fibra a fibra o organismo da Vida,
deixando em cada uma o tônico do Bem.

...Aí tendes o amor do século pujante,
a portentosa lei que há de reger o mundo,
quando o sol, que hoje rompe apenas no levante,
atingir no zênite o páramo fecundo.

É forçoso que após a morte desastrosa
das divindades vãs, fantásticas de outrora,
se eleve como um astro a crença luminosa
e de uma igreja maior, mais forte e duradoura.

Seja, pois, o Universo a grandiosa igreja
onde o novo ritual, em pompas de Tabor,
se celebre, e cada um o sacerdote seja
e cada peito o altar da religião do Amor.

Círculos concêntricos... Primeiro o homem cantou a sua necessidade imediata: a de matar a fome. Era o círculo menor. Depois estendeu o braço em sua própria defesa: cantou a caça, cantou a guerra. Era o segundo círculo. Mais tarde estendeu um pouco adiante a sua inspiração. Quis uma companheira: cantou o amor. Amanhã, já esse amor não lhe bastara: quererá um círculo mais largo, que vá até os mais remotos horizontes, em que caiba tudo o que é humano...
É nesse círculo que já vão entrando os poetas da vossa estatura, que cantam o amor cheio de uma beleza extraordinária, dentro do qual cabe tudo o que é grande, tudo o que é nobre e digno.

Não quer isso, entretanto, dizer que também não tenhais cantado o que se pode chamar o amor amoroso, o amor simples e ingênuo, que em certa época da vida faz com que descubramos sempre um vulto feminino, que é o mais belo de quantos jamais existiram. Ninguém ignora que ao mesmo tempo cada um dos rapazes de certa idade está apaixonado pela mulher a mais formosa do mundo. Devia, portanto, ser uma só. No entanto não é... Cada um está convencido de que achou a única, a superior a todas... Eu vos pintaria como um ser anormal se não mostrasse que em vossos versos há também vestígios dessa fase:

Nesse instante brotou em minha mente
como um ideal à flor da fantasia:
a tua imagem cândida, ridente,
coroada das rosas da alegria.

Então no peito, ó virgem dos meus sonhos,
a ti que o Belo universal resumes,
ergui castelos rútilos, risonhos,
feitos de luz, de sons e de perfumes...

E mais adiante – à mesma ou já a outra? Quem sabe lá! – dizeis ainda:

Ah! quando de ti junto e comovido
sinto pulsar teu coração e o escuto,
como um suave pêndulo movido
no relógio do Amor, casto, impoluto,

minh’alma aspira o oxigenado clima
de um país ideal feito de auroras,
onde o porvir tranqüilo se aproxima
ao sonoroso tintinar das horas...

E mais:

Não sei de que pais de fadas é
o filtro com que encantas os caminhos:
apenas vais ao longe, onde teu pé
pousaste, vem pousar os passarinhos...

...Minh’alma é tua sombra, ó peregrina
filha do sol, amiga do luar;
em te seguir minh’alma tem a sina,
porque ela tem a sina de te amar.

Onde, em todos estes versos, aquele lúgubre e sinistro personagem que anunciastes em vosso discurso? Era evidentemente um ser de fantasia... Vê-se bem que vos deveis sentir à vontade na cadeira que honrais, tanto como a honrou o vosso antecessor.
Nem importa como um contraste que sejais um jurista, quando ele foi um militar. Vós mesmo lembrastes bem que ele próprio apregoou a excelência da paz, a iniqüidade das guerras. Raramente o veríeis fardado. Durante anos que o conheci, não tenho idéia de jamais o ter encontrado com o seu uniforme. Era antes de tudo um professor, um escritor, um intelectual.
Certo, as duas coisas nada têm de incompatíveis. Nós temos na nossa companhia quem seja capaz de manejar pena e espada, ambas com destreza.

Mas eu sou dos que crêem, como Urbano Duarte, militar e pensador, eu sou dos que crêem, como Benjamim Constant, militar e pensador, que um momento chegará em Que as guerras acabem .

Acabarão! Dia virá em que a associação da palavra virtudes ao adjetivo guerreiras – virtudes guerreiras – soará tão monstruosamente, tão contraditoriamente como a expressão que falasse em esferas triangulares, cubos redondos, alvuras negras ou qualquer outro absurdo dessa natureza.

Pouco importam os céticos, que nos mostram um passado de milhares e milhares de séculos, cheios do fragor das lutas incessantes, e dizem que, se sempre foi assim, sempre continuará a ser. Pouco importa que eles nos mostrem as guerras alternando com os congressos de paz.
O que se depreende da argumentação é que uma instituição tantas vezes milenar não pode desaparecer bruscamente. Foi, de fato, o século XIX que começou a. fazer o que se pode chamar a “organização da paz”. E o que admira não é que não tenha conseguido tudo: é que tenha conseguido tanto.

O mundo civilizado teve durante muitos decênios do século que passou, períodos de inteira paz. E isso é absolutamente novo. Tomai qualquer período igual da história, até o século XVIII, e desafiai a alguém que vos possa dizer: “Durante este intervalo não havia em curso alguma guerra.” Havia! Quando cessava num ponto começava em outro. Era a luta por toda a parte. Onde não era a luta, era a sua iminência. Dominava aquele bárbaro conselho que ainda hoje às vezes se lê: Si vis pacem, para bellum!

Se queres a paz, prepara a guerra? Não! Se queres a alegria, prepara a tristeza? Se queres o amor, prepara o ódio? Não! A única divisa inteligente é a desse congresso, de onde agora mesmo nós saímos,  congresso que ainda não conseguiu tudo, mas que adiantou alguma coisa. A única divisa é a que aconselha: “Se queres a paz, prepara a paz.” Prepara-a pelas alianças, pelos tratados internacionais, pela prática da justiça, da solidariedade, do acordo entre as nações...

Um objeto material, uma instituição, uma qualidade qualquer, que se encontra sempre nos estádios mais baixos da civilização, nas tribos mais atrasadas, só por isso, sem mais exame, se pode desde logo declarar que não é superior aos objetos, às instituições, às virtudes e até às aspirações, que já começaram a aparecer nos estádios mais altos da civilização humana. Desçamos quanto quisermos; acharemos sempre a bravura física. Para achar o heroísmo calmo do homem de ciência, do pensador, do filósofo, é preciso subir.

Um de nossos consócios, no seu soberbo livro sobre o Militarismo, o Sr. Guglielmo Ferrero, achou uma fórmula admirável, dizendo “Solo chi crea è felice.” Só quem produz, quem faz nascer valores novos, quem aumenta a soma de bem-estar moral e material da humanidade é que representa as tendências do futuro.
E, porque eu penso assim, ouvi com alegria a evocação que fizestes das crenças pacifistas do nosso desaparecido companheiro.

Não importa que haja quem diga que essa aspiração para a paz é apenas um belo sonho. Não é. Mas, mesmo que fosse, há sonhos que valem mais do que realidades. Nenhum sonho excederia a este em beleza. Os sonhos muito puros, muito nobres, muito altos – resistem a tudo.
Nos lugares em que cal neve, a neve que cai em flocos alvíssimos ao longo dos caminhos, basta um raio de sol para a fundir, basta um passo de viajante para a transformar em lama. É o destino, é a imagem dos sonhas rasteiros, que facilmente passam de arminho branquíssimo a lodo imundo.

Mas a neve que se fixa no alto dos montes inacessíveis permanece imaculada. Em vão a asa dos ventos se fatiga a açoitá-la; em vão o sol tenta derretê-la.
É como os grandes ideais – longe da terra, longe do chão, longe do passo dos homens, perto apenas do céu, onde outrora moravam deuses e onde hoje mora só o giro majestoso dos astros... Nada macula e dissolve neve tão alta, sonhos tão altos...
Se essa aspiração para a paz fosse apenas uma aspiração, ainda assim valeria mais do que as realidades grosseiras que se lhe contrapõem...

Não sei, entretanto, se algum malicioso não se lembrará de ir reler a conferência que fizestes em Belo Horizonte glorificando a preguiça. Lá dissestes que “a paz universal não é outra coisa senão a preguiça das nações.”

Mas mesmo aí essa designação era elogiosa, porquanto toda a vossa conferência, graciosa e paradoxal, visava a provar que a preguiça era uma virtude. Devia ser, pelo menos aos olhos dos que acreditam que o trabalho foi imposto ao homem como um castigo. Se o trabalho veio como um mal, para privar o homem das delícias de um estado anterior, o que havia nesse estado anterior devia ser um bem, ser uma virtude. O que havia era a preguiça...

Vós lembrastes que o mito cosmogônico mais corrente entre nós põe a preguiça no extremo cume da escala de perfeição: Deus fez a terra, as plantas, os animais. o homem, a mulher (e o fato de ter criado a mulher depois do homem é uma presunção de superioridade para ela) e, por fim, não tendo mais o que criar, pôs remate à sua obra, criando a preguiça: ao sétimo dia descansou...

Todos sabem, entretanto, meu ilustre confrade, que ninguém menos próprio do que vós para tratar desse sentimento que não conheceis. Ninguém menos contemplativo. A poesia não vos impediu de serdes juiz, de serdes professor, de serdes funcionário, de serdes político militante.
Nos países novos, em que é preciso fazer com brevidade uma obra colossal e em que, por isso mesmo, os homens escasseiam; nesses países, em que não há ainda uma nítida e rígida diferenciação de profissões, esses casos são mais freqüentes que nos países velhos, em que cada um disputa com afinco um pequeno domínio, no qual se procura manter.

Ainda por este outro motivo ficais bem aqui, porque esta Academia é caracteristicamente uma Academia da nossa jovem América: não há aqui um só acadêmico que viva exclusivamente das letras e para as letras.

É uma inferioridade? – Não sei... Não sei; e me parece real-mente discutível.
Toda a vida humana pode ser representada por uma fórmula mais ou menos complexa, em que deve entrar a ação, em que deve entrar o sonho... Não basta a primeira; não basta o segundo... Só com a ação se fazem as vidas grosseiras, dos que se limitam a agir para a satisfação de gozos imediatos. Só com o sonho se fazem as vidas egoístas, dos que se perdem na contemplação e não descem à luta.

O ideal bucólico dos poetas virgilianos, que cantavam as belezas dos campos, a tranqüilidade dos que vivem longe das cidades; ideal que já foi moda, hoje passou... Nós o acolhemos, sorrindo. Nem versos de Camões o podem salvar:

Ó lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento
como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara da água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento...

...Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou.

E nos sabemos, no entanto, que Camões dizia isso por pura imitação; guerreiro, cortesão, namorador, ele nunca aspirou deveras ir viver entre mansas ovelhinhas.
E o nosso Gonzaga não era mais sincero com todo o seu bucolismo convencional:

Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro leite
e mais as finas lãs de que me visto.

Graças, Marília bela!
Graças à minha estrela!

E nós sabemos, no entanto, que este homem se fez conspirador e acabou desterrado...
E, se já no tempo de Camões e de Gonzaga faltava convicção aos que empreendiam a apologia das delícias campesinas, hoje esse ideal nos parece quase cômico... A idéia de que o homem de letras e especialmente o poeta se deve isolar do bulício do mundo, para poder produzir, é uma extravagância... O que tiver em si a seiva, o estro criador, há de poder revelá-lo tanto naqueles bucólicos retiros como em pleno bulício das cidades.

Vai um rio a passar... Nas suas águas tudo se reflete. Faz-se azul sob um céu azul; sombrio, quando a tempestade enche o espaço de nuvens negras... Azul ou sombrio, vai passando... Retrata as árvores e flores que se lhe debruçam às margens; reflete o casario das cidades, as grandes usinas, as altas chaminés das fábricas. Retrata e passa... Crianças se inclinam para vê-lo? As águas lhes reproduzem as feições mimosas, como reproduzem as feições trágicas do miserável que, absorto em mágoas íntimas, fita, com os olhos que não vêem, o curso incerto... Reproduz, reflete, retrata mil coisas – e vai passando. Nenhuma imagem lhe altera o sabor... Se era um rio de águas claras e límpidas, se ninguém as turvou, que importa indagar as imagens que no seu espelho se formaram? Continua límpido e claro.

É o que sucede aos grandes artistas. Não lhes é preciso o isolamento para produção. O fragor das cidades, em que são forçados a ver mil coisas, a refletir a vida intensa de nossos dias, não os impede de guardar a limpidez e a frescura da sua inspiração.
O que desorienta alguns dos que não compreendem a vida que os artistas levam, mormente em nossos dias, é que não acharam no passado a mesma proporção de mistura entre vida social e vida artística. Depois, os artistas têm em geral a convicção de que, se tivéssemos tempo bastante, poderíamos produzir uma obra-prima – a obra-prima com que todos nós sonhamos.
Mas na maior parte dos casos essa convicção, embora pro¬funda, seria apenas uma ilusão...

Se lhes fosse dado se isolarem do resto do mundo, nem teriam os gozos que este pode dar, nem deixa¬riam o monumento glorioso com que sonham. Seriam vidas estéreis.
Há uma certa beleza neste turbilhão infernal em que vós, meu ilustre confrade, e em que todos nós vamos envolvidos, lutando e trabalhando, fazendo obra de cidadãos e obra de artistas, mal descansados da tribuna, do jornal, da cadeira do professor, da curul do juiz e quase ao mesmo tempo, febrilmente, neste tumulto, neste anseio, nesta caudal vertiginosa pugnando também pela arte, pelo ideal, pela nobreza de altas concepções Há uma certa beleza... Sentimo-nos viver fortemente; viver vidas bem vividas, em que podemos não ter feito tudo o que desejaríamos, mas de que saímos com a consciência tranqüila, porque entramos em mil batalhas – das mais nobres de todas: as que se ferem sem sangue, nem barbaria.

Dizem que Nero fazia untar de pez figuras humanas e queimava-as como archotes vivos. Vós sois dos que a si mesmos fazem o que fazia Nero: dos que se queimam voluntariamente, em um incêndio magnífico, por todos os lados ao mesmo tempo. E é decerto mais belo consumir-se assim rápida e deslumbrantemente do que ser uma frouxa, una tíbia, uma incerta luzinha, que se gasta durante muito tempo, que dura, mas dura pequena, tímida, bruxuleante... Mais vale a chama viva que ao menos um momento foi língua rubra de fogo, desfraldada na noite como uma bandeira de luz, vibrando, brilhando, queimando, erguida para o alto como uma aspiração sublime!

A vossa é das vidas assim. Poeta, professor, historiador, juiz, político militante, tendes vivido intensamente.
É possível que vos queixeis porque eu insisti, principalmente, no vosso perfil como poeta e esqueci um pouco o publicista, o historiador.

Mas o que domina em vossa obra é realmente o poeta. Com olhos de poeta é que olhais para a História, para a vida corrente e até mesmo para as materialidades mais grosseiras da vida.
Foi de poeta a bela frase que um dia proferistes acerca de Deodoro, dizendo que historicamente o Marechal Deodoro da Fonseca é o Alferes José Joaquim da Silva Xavier, promovido depois de um século por feitos de bravura cívica.
É de poeta a vossa concepção econômica da vida, concepção de que deixastes um maravilhoso espécimen, da descrição de uma visita aos trabalhos das minas de ouro:

Partindo aos estilhaços o veeiro
a dinamite à rocha dá combate,
e em compassados golpes o mineiro
a rutilante picareta bate.

Um estampido – e lasca-se o granito,
outro tiro – e o granito rola em seixos
Das máquinas de ferro, ao forte atrito,
rincham as rodas, nos candentes eixos.

¬E a rica flora mineral desata
e rompe o véu ao rútilo tesouro:
– brota o esmeril, cai fios corre a prata,
floresce a gema, abrem-se rosas de ouro...

E por fim, ao cabo de uma longa e bela evocação de todos os trabalhos, concluís:

E com a picareta e o camartelo
o homem, que tem da criação o reino,
de destruir o esplêndido castelo,
novo Átila fatal, nada detém-no.

Demole e arrasa e quebra e faz escombros,
e ei-lo de novo ascende em áurea insânia,
levando sobre os suarentos ombros
os espólios da flora subterrânea.

E toda aquela maravilha imensa,
que de espanto e de luz nas embebeda,
se apouca, se constringe e se condensa
no disco miserável da moeda!

Chamar à moeda – disco miserável – é bem uma idéia de poeta. Parece uma estranha desproporção a que há entre o formidável trabalho dos mineiros para chegar àquela pequena rodela de metal.

Os economistas achariam que exatamente aí é que está condensado todo o poder do mundo, e seria um assunto digno de tentar a vossa pena fazer a compensação daquele quadro: pintar todo o formidável esforço humano que pode nascer do que chamastes o “disco miserável da moeda”.

Um dos nossos já fez, em parte, sobre isso uma bela conferência literária. Relendo-vos ainda uma vez depois de o ter ouvido, eu me lembrei que um grande escritor francês, falando mal da Economia Política, que ele não considerava uma ciência, chamava-lhe littérature ennuyeuse, literatura insípida, enfadonha, aborrecida.

Se a Academia, cedendo à pressão dos interesses modernos, criar um dia uma seção especial encarregada de estudar as questões econômicas, vosso nome e o daquele ilustre confrade estão natural¬mente indicados para essa tarefa... E ele, reforçando esse ponto de vista, fará a apologia, não dos que sabem poupar, mas dos que sabem gastar largamente, alegremente.

Pode ser que os chefes de Estado, os ministros da Fazenda, os financeiros, arregalem os olhos espantados lendo tais doutrinas; mas não será, pode-se jurar, literatura enfadonha...
Será economia de poetas... Será ciência de fantasistas...

Certo, achando que a ação não prejudica a arte, achando que o verdadeiro artista é aquele que faz da própria vida uma obra-prima de emoção e de beleza, não há negar que ele deve ter, que ele pode, pelo menos, ter alguma dessas grandes convicções, que vão de encontro às convicções, às crenças, aos sentimentos do meio em que vive – e que nesse caso, contra tudo e contra todos, deve manter a sua orientação. Deve fazer a arte como ele a sente e não como lha impõem as conveniências de momento. Deve guardar o seu ideal acima de todos os ataques que possa sofrer. Não indagar dos aplausos ou das censuras alheias. Não transigir e não temer.
Árvore existe que é o tipo da beleza no reino vegetal. Todos os poetas, mesmo os que escreveram livros que foram depois considerados sagrados, mesmo esses a cantaram com entusiasmo.

Árvore esbelta, senhoril, tendo um tipo à parte; bela em meio do tumulto das cidades; bela nos desertos onde as outras não se atrevem a viçar – a graça e a distinção da palmeira são inexcedíveis. Onde, porém, reside o seu encanto? É que ela é o símbolo das almas que não transigem!

As outras árvores, mal o caule lhes brota do chão, estendem logo galhos acessíveis a todas as mãos. Não se furtam aos contactos.
Ela, não! Ela projeta o seu tronco para o alto, sempre para o alto, em linha reta ousada. Parece querer ir até ao céu. E é bem lá em cima, bem na altura, que abre o seu ramalhete de folhas verdes e viçosas. Rumoreja, tranqüila por cima dos desertos; tranqüila por cima das cidades, com a mesma serena indiferença.

Árvore, que Salomão cantou, que cantou Gonçalves Dias, ela nos ensina que só devemos viçar e florescer o mais alto que pudermos, o mais longe que alcançarmos subir, firmes no nosso ideal, sem procurar alheios contactos... Ela é o símbolo das almas que não transigem. Ela nos mostra que não é preciso fugir ao rumor das cidades para poder guardar inacessível o amor da arte. Ela consola aos que se vêem arrastados no turbilhão, lutando e cantando – lutando como homens de hoje, cantando como sonhadores, alheados das contingências do tempo e do meio – porque lhes dá o exemplo de crescer nas ruas das grandes cidades e aí mesmo, com igual beleza, viçar como viça nos areais do Saara, como viça sobre as ruínas melancólicas das velhas civilizações extintas... Ela diz aos artistas que, onde quer que estejam e vivam e lutem, podem fazer obra de arte desde que saibam erguer bem alto os seus ideais!

Esse exemplo de amor à arte e amor à vida dos nossos dias, vós o tendes dado tão brilhantemente que a velha praxe em virtude da qual alguém teria de vos esperar aqui à porta da entrada e vos saudar, seria bem fácil para qualquer de nós.

Vim eu...
Qualquer outro seria mais eloqüente. Mas o essencial era dar-vos as boas-vindas... Para isso, tanto era igual o sentimento de universal estima com que sois aqui recebido, que até eu – até eu pude servir.