“A garotinha do bairro do IAPI, de Porto Alegre, chegou longe. Mais do que isso: transformou seu nome numa fase memorável da música popular brasileira, fase que transformava em canções as expressões mais autênticas de nosso povo”
Este 19 de janeiro marca o 25º aniversário de falecimento de uma das grandes cantoras brasileiras, Elis Regina Carvalho Costa. A data está sendo lembrada particularmente em Porto Alegre, onde Elis nasceu, em 1945 – como se vê, a sua morte, associada ao excesso de álcool e drogas, foi muito precoce. Mas precoce foi também o começo de sua carreira de cantora; já aos 11 anos ela se apresentava em um programa infantil de rádio, o Clube do guri, da Rádio Farroupilha. Mas quem descobriu seu talento foi o jornalista Maurício Sirotsky Sobrinho, depois diretor da RBS, Rede Brasil Sul de Telecomunicações. Maurício, originariamente radialista, também tinha um programa de auditório (na Rádio Gaúcha), onde já haviam se apresentado figuras como João Gilberto e Wilson Simonal, e contratou a jovem Elis, que então começou a demonstrar seu temperamento voluntarioso: recusou-se a participar dos ensaios, dos quais o exigente Maurício fazia questão, dizendo que não precisava mais daquilo.
Acabaram brigando e Elis foi tentar a sorte no Rio de Janeiro, onde sua carreira deslanchou. De 1965 a 1981, ela fez um sucesso extraordinário, interpretando compositores que então começavam a despontar: Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco, Zé Rodrix, Aldir Blanc, Belchior. Já em 1965, vencia o Primeiro Festival da MPB, promovido pela Excelsior. Também em 1965, começou a comandar, junto com Jair Rodrigues, o programa O fino da bossa (este “bossa” aludia à bossa nova, então no auge). Em 1968, viajou para a Europa, dando início à carreira internacional igualmente bem-sucedida; foi a primeira cantora a se apresentar duas vezes, num mesmo ano, no lendário teatro Olympia, de Paris. Seu espetáculo Falso brilhante (1975) foi considerado, por muitos críticos, o melhor dos anos 1970. Êxito similar tiveram os shows Transversal do tempo (1978), Saudades do Brasil (1980) e Trem azul, o melhor show de 1981.
Tanto os shows como as músicas que interpretou tinham marcado conteúdo de crítica política. O que não é de admirar: sua carreira praticamente coincidiu com a ditadura militar, com a censura, as perseguições, as prisões. Músicos foram alvo preferencial, e muitos deles pagaram caro pelo protesto contido em suas composições. Elis não era uma intelectual, muito menos uma ideóloga. Sua contestação era mais de natureza emocional, mas nem por isso menos autêntica: dizia o que pensava, não continha seus sentimentos. Participou na campanha da anistia, da qual a composição de João Bosco e Aldir Blanc por ela interpretada, O bêbado e a equilibrista, tornou-se uma espécie de hino, falando nos exilados (“gente que partiu num rabo de foguete”). Milagrosamente escapou da prisão, talvez por causa de sua popularidade: ficaria difícil prender uma artista tão querida no Brasil.
Mas os êxitos, o engajamento, não impediram que Elis tivesse uma vida pessoal tumultuada. Tumultuada, mas vivida intensamente, como se ela tivesse o pressentimento de que não duraria muito, como se soubesse que “aqueles a quem os deuses amam morrem cedo”: consumiu-se no fogo de suas paixões. Como ela disse numa entrevista ao Jornal do Brasil, em 1976: “Quero tudo a que tenho direito, as coisas boas e ruins”. De fato, a vida lhe deu, em abundância, coisas boas e coisas ruins.
A garotinha do bairro do IAPI, de Porto Alegre (onde é lembrada com saudade), chegou longe. Mais do que isso: transformou seu nome numa fase memorável da música popular brasileira, fase que transformava em canções as expressões mais autênticas de nosso povo. Vinte e cinco anos depois de sua morte, Elis Regina continua um símbolo.
Correio Braziliense (DF) 19/1/2007