Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O defensor da democracia

O defensor da democracia

 

Na noite em que Tancredo Neves se internou em Brasília e ficou claro que não poderia tomar posse no dia seguinte como presidente da República, quem decidiu que o vice José Sarney assumiria foi o general Leônidas Pires Gonçalves, já escolhido novo ministro do Exército. Os juristas se dividiam entre Sarney e o presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães, e Leônidas desempatou. O senador Pedro Simon perguntou, indignado, a Ulysses porque ele não reagira àquela decisão:

— Não podia, meu Pontes de Miranda estava me cutucando com a espada dizendo que seria o Sarney, comparando ironicamente o ministro do Exército com o grande jurista brasileiro.

O próprio Sarney insistiu para que Ulysses assumisse, o último ditador militar do golpe de 1964, João Figueiredo se recusava a passar a faixa para o antigo presidente do PDS que rompeu com o governo para abrir uma dissidência de onde nasceria a Frente Liberal, fundamental para a vitória no Colégio Eleitoral que ainda escolheria o sucessor de Figueiredo pelo voto indireto. Mas a decisão estava tomada.

O ex-presidente José Sarney cunhou a expressão “liturgia do cargo” para definir a responsabilidade perante a população de um presidente da República no cargo que ocupa. Das palavras ditas ao comportamento pessoal, tudo tem seu peso político. Foi com esse espírito conciliador e cauteloso que, há exatos 40 anos, assumia a Presidência da República o primeiro civil após 21 anos de ditadura militar, iniciando a transição para a democracia, comemorados ontem com uma solenidade em que o presidente Lula enalteceu o papel de Sarney na garantia da democracia.

A começar pela habilidade de manter os ministros escolhidos por Tancredo num primeiro momento, e de negociar com os militares a transição. Fazê-la “com os militares”, não “contra” eles. Ele atribui a esse acordo a manutenção dos militares dentro dos limites democráticos, o que se confirmou durante a tentativa do governo de Bolsonaro de provocar um ambiente propicio a um golpe militar, que desaguou na invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.

Foi o amadurecimento democrático que permitiu que as Forças Armadas permanecessem “fiéis às instituições”. Sarney pode estar fora do poder, mas não perdeu a importância política. Continua sendo procurado por todos os líderes políticos, sejam de que tendência forem, e assume posições públicas nos momentos necessários. No ano da eleição presidencial de 2022, com o ambiente conturbado pela polarização política no rastro de um governo autoritário que pretendia se prolongar pelo voto ou pelas armas, fez um discurso histórico da tribuna do Salão Nobre do Petit Trianon, sede da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual é o decano, assumindo a posição de “Presidente que conduziu a transição para a democracia”.

Lamentou que não fosse só a cultura brasileira que precisava, naquele momento, ser defendida, mas sim a democracia. “Tenho a responsabilidade de defendê-la. Ela se consolidou pela prática continuada de eleições livres, sob a vigilância segura e firme do Tribunal Superior Eleitoral. Garantir que o Judiciário exerça em plenitude suas responsabilidades é absolutamente necessário para que a democracia prevaleça. O Brasil precisa se unir em torno deste objetivo”.

As palmas que eclodiram naquele momento demonstraram a ânsia da sociedade civil ali representada pela normalidade democrática. Sarney foi adiante, reforçando seu espírito humanista: “Coisa grande é a eternização dos sentimentos da alma de que nos fala Bergson. O patrimônio cultural da nação. Nenhum país pode ser grande potência se não for grande potência cultural. Não basta ter poder militar, político, econômico, se não for potência cultural.”

Amanhã Sarney estará no Rio, aos 94 anos, para fazer o discurso de recepção na posse do ex-presidente do Uruguai Julio Maria Sanguinetti como sócio correspondente da ABL. Mais uma vez, a democracia que ele garantiu há 40 anos estará sendo comemorada.

 

O Globo, 16/03/2025