Texto comenta trajetória pessoal e artística de Cacá Diegues, o cineasta mais popular do cinema novo. Em seus melhores filmes, ele lançou um olhar carinhoso e otimista a personagens tragados pelos impasses do Brasil.
Carlos Diegues, que morreu nesta sexta (14), aos 84, se distinguiu não apenas por ser um dos principais cineastas brasileiros. Em uma atividade artística em que tantos no país tiveram suas carreiras abreviadas por mortes precoces ou entraves de exibição e produção, Cacá, como era conhecido, foi uma notável exceção: filmou com relativa regularidade ao longo de seis décadas, conciliando como poucos o sucesso de bilheteria e a aprovação da crítica.
Dos integrantes do cinema novo, Cacá foi o diretor de obra mais popular, o que mais cultivou um modelo de espetáculo tradicional de cinema para difundir o ideário estético e político de seu grupo. E, depois de Glauber Rocha, foi o cineasta, ao menos em termos de repercussão na mídia, que mais propagou e simbolizou o movimento que colocou o cinema brasileiro no mundo.
Em suas memórias, "Vida de Cinema" (2014), Cacá diz logo no prefácio que, de tudo que viveu, "nada se compara ao cinema novo, uma enorme excitação, o imenso prazer de compartilhar a vida e o cinema com aquelas pessoas e nossas ideias".
Em entrevistas, ele costumava brincar que o projeto de sua geração era muito simples, composto de apenas três pontos: mudar a história do cinema, mudar a realidade brasileira, mudar o mundo.
A utopia romântica, que naqueles anos 1960 talvez tenha sido vivida de forma coletiva pela última vez, energizou os principais filmes de Cacá e de seus colegas cinemanovistas, mas foi também um fardo que fez muitas dessas obras naufragarem.
Cacá parecia estar ciente desse risco, assim como dos dogmas castradores decorrentes de quase todo movimento de vanguarda —e os enfrentou em debates públicos que marcaram a cena cultural brasileira.
O diretor nasceu em Maceió (AL), em 19 de maio de 1940, mas se mudou para o Rio ainda criança. A cultura nordestina, de toda forma, povoou o seu imaginário por toda a vida, como de resto foi uma força preponderante para seus colegas de geração e ofício. Na capital alagoana Cacá foi ao cinema pela primeira vez, por volta dos 6 anos.
O diretor era filho de Manuel Diégues Junior, cientista político de renome que ocupou inúmeros cargos públicos na área cultural, atuando inclusive na consolidação da Embrafilme, a estatal de fomento ao cinema criada em 1969 pela ditadura militar.
Manuel circulava no meio artístico, sendo amigo, entre outros, de Jorge de Lima, que se tornaria o poeta preferido de Cacá. Décadas depois, em 2018, o cineasta lançaria o filme "O Grande Circo Místico", inspirado em poema de Lima.
Formado nesse ambiente cultural efervescente, Cacá se tornou cedo um leitor entusiasmado, sobretudo de poesia, prazer estimulado pelo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, onde descobriu a literatura de vanguarda, de Ezra Pound a Dylan Thomas, tal como os brasileiros Augusto e Haroldo de Campos e João Cabral de Melo Neto.
Era natural que, como tantos outros garotos com ambições artísticas, Cacá logo passasse a escrever também seus próprios versos, afinal a prática, em termos materiais, não demandava mais que caneta e papel. A carreira de poeta não sobreviveu à idade adulta, mas teve seu momento de glória quando o poeta e jornalista Mário Faustino publicou no Suplemento Dominical 12 de seus poemas em uma seção dedicada a novos talentos.
O cinema já era então outra de suas paixões, mas para um adolescente brasileiro nos anos 1950 parecia bastante improvável se imaginar mais que um consumidor de filmes. Em 1956, contudo, Cacá viu dois espetáculos que mudaram suas ideias e o curso de sua vida.
Primeiro, "Rio, 40 Graus", o filme de Nelson Pereira dos Santos que inaugurou o cinema moderno no Brasil, crônica da vida de cinco garotos da favela. Depois, a estreia de "Orfeu da Conceição", peça de Vinicius de Moraes e música de Tom Jobim, que transpunha o mito grego de Orfeu e Eurídice para o morro carioca, levando atores negros para cantar e tocar samba no Teatro Municipal do Rio.
Ambos, a bem dizer, foram um terremoto no panorama cultural brasileiro. Nossa realidade, nossa cultura negra e popular explodiam na tela e no palco, em diálogo enriquecedor com o mundo (o neorrealismo italiano, a tragédia grega), sem subserviência. Da periferia, o Brasil impunha seu valor artístico.
Para o jovem Cacá, foi ainda o momento de outra dupla descoberta: Nelson mostrava que era possível fazer cinema relevante no Brasil mesmo sem grandes orçamentos, a partir do olhar sensível para a nossa realidade; e de Vinicius vinha a lição de que essa realidade pode ser apreendida via fantasia, que a fabulação podia tornar o real mais verdadeiro. Era a semente do realismo lírico que formaria o estilo do futuro cineasta.
Por esta época, o jovem Cacá começava a formar seu núcleo de amigos, tão apaixonados por filmes quanto ele. Na rua da Matriz, onde sua família morava em Botafogo, conheceu o primeiro deles, David Neves, que o apresentou à revista francesa Cahiers du Cinéma, bíblia do cinema então em seu auge, e o levou à Cinemateca do Museu de Arte Moderna, que ambos frequentavam religiosamente.
Ali, e no circuito de bares do entorno em que se davam debates acalorados sobre clássicos do cinema, conheceu o grupo de cinéfilos com quem criaria em alguns anos o cinema novo: Ruy Guerra, Paulo César Saraceni, Marcos Faria, Mário Carneiro, Leon Hirszman, Walter Lima Jr. e Glauber Rocha. Em suas memórias, Cacá diria que Glauber foi a pessoa mais interessante que conheceu no mundo do cinema.
Na ausência de escolas de cinema no país, Cacá iniciou em 1958 o curso de direito na PUC-Rio, o que lhe pareceu mais próximo de uma cultura humanista, mas sabia que jamais exerceria a profissão.
Já fisgado pelo cinema, fundou uma cinemateca na universidade e deu seus primeiros passos na prática de cinema, com curtas em 16 mm. O mais ambicioso deles foi "Domingo", sobre dois meninos da favela, feito com parceria com David Neves e Affonso Beato, futuro fotógrafo de cinema. Seus colegas de cineclubes também se aventuravam em pequenos filmes, o que fortalecia o vínculo entre eles.
Por essa época, Cacá dirigiu O Metropolitano, jornal da União Metropolitana de Estudantes, e participou do Centro Popular de Cultura (CPC), organização da UNE que, embora de breve existência em razão do golpe militar, teve forte impacto na cena cultural brasileira do começo dos anos 1960 com seu projeto de arte popular revolucionária.
O CPC produziu a primeira experiência profissional de Cacá como cineasta, o longa coletivo "Cinco Vezes Favela" (1962), composto de episódios também dirigidos por Marcos Farias, Miguel Borges, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade —o deste último, "Couro de Gato", é um dos melhores curtas brasileiros.
A história de Cacá, "Escola de Samba Alegria de Viver", trazia em estado bruto a ideia, herdeira de Nelson e Vinicius, que ele lapidaria ao longo dos anos, o embate entre fantasia e realidade, aqui simbolizado pela relação de um carnavalesco e uma sindicalista.
De modo geral, a escassez de recursos, a precariedade dos equipamentos e o amadorismo de parte da equipe prejudicaram o filme como um todo, mas o empenho dos jovens diretores em falar do Brasil, em buscar um estilo em condições tão adversas fez de "Cinco Vezes Favela" o pontapé do cinema novo.
O cinema passava então por um período de transformações no mundo, e isso reverberou forte no Brasil naquele 1962. Estreavam em longas Glauber Rocha, com "Barravento", Ruy Guerra, com "Os Cafajestes", e Paulo Cesar Saraceni, com "Porto das Caixas". Roberto Farias lançava seu clássico", "Assalto ao Trem Pagador".
Nelson Pereira dos Santos adaptava Nelson Rodrigues em "Boca de Ouro". Anselmo Duarte vencia o Festival de Cannes, o mais importante do mundo, com "O Pagador de Promessas". Contra todas as adversidades, o moderno cinema brasileiro se consolidava e se impunha ao mundo.
A explosão dessa turma ficaria consagrada em seguida, com "Vidas Secas" (1963), de Nelson, e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), de Glauber, em geral considerados os mais importantes filmes brasileiros.
"Fomos buscar nossos rumos cinematográficos nos realizadores estrangeiros que amávamos, dando forma e conteúdo novo às nossas preferências através da absorção do que chamávamos de nossa realidade e da inspiração na cultura brasileira que, para nós, era praticamente inaugurada com o modernismo. Para o cinema novo, antes e depois dos nossos primeiros filmes, Oswald de Andrade era tão importante quanto Jean-Luc Godard, nosso ideal era o da criação de um universo inédito onde os dois pudessem se encontrar. Esse encontro se deu em muitos de nossos filmes, com menor ou maior grandeza", escreveu Cacá em suas memórias.
O cineasta sairia em busca desse ideal ao lançar seu primeiro filme, "Ganga Zumba" (1964), no qual Antônio Pitanga vive o personagem título, líder do Quilombo dos Palmares no século 16.
No papel o filme seria um épico sobre a escravidão, mas, no inóspito cenário brasileiro, Cacá, então com 23 anos, valeu-se da vitalidade da juventude e do empenho da equipe, que trabalhava em sistema de cooperativa, para concluir a obra quase sem dinheiro algum, recorrendo também a vaquinhas com amigos e parentes. A maior parte da história se passa no meio do mato, para evitar reconstituir cenários de época.
"Gamba Zumba" não foi um estrondo como outros filmes do período, mas acabou exibido em uma mostra paralela do Festival de Cannes de 1964, edição em que "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" integraram a competição oficial. Era o nascimento do cinema novo para o mundo.
No trabalho seguinte, Cacá passou do meio rural para o urbano. "A Grande Cidade" (1966) refletia de certa forma a experiência de sua família, alagoanos vivendo no Rio, e, de forma mais geral, o acelerado processo de industrialização do país naquele período e os impasses resultantes disso.
Feito basicamente com câmara na mão, em locações reais e muito improviso do grande elenco (Anecy Rocha, Antonio Pitanga, Joel Barcellos, Leonardo Villar), o filme mostra evidente evolução em relação ao interior.
O fim dos anos 1960 foi o início do período mais tenebroso da ditadura militar, o que de certa forma brecou a utopia de transformação social daquela geração. A safra do cinema novo —"O Desafio" (1965), de Saraceni, "Terra em Transe" (1967), de Glauber, "O Bravo Guerreiro" (1969), de Gustavo Dahl, entre outros— refletiu a impotência e o pessimismo daqueles anos, ao que o cinema marginal, espécie de ruptura mergulhada na contracultura, somou seu "niilismo avacalhado": "O Bandido da Luz Vermelha" (1968), de Rogério Sganzerla, "Matou a Família e Foi ao Cinema" (1969), de Julio Bressane.
Nesse turbilhão, Cacá lançou "Os Herdeiros" (1969), um painel de três décadas da história brasileira, filme bastante prejudicado por uma série contingências do período. A ambição excessiva travava a fruição, e a desesperança característica daquela fase não se casava bem ao estilo mais caloroso e otimista de Cacá. Para completar, o filme foi proibido e depois retalhado pela censura.
No plano pessoal, eram também tempos duros. Com a prisão de amigos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e sentindo que o cerco da repressão se fechava, Cacá decidiu-se por um exílio voluntário. Aproveitando a ida de "Os Herdeiros" ao Festival de Veneza, partiu para a Europa em 1969 com a cantora Nara Leão, com quem se casara dois anos antes. A primeira filha do casal, Isabel, nasceu em Paris, em 1970.
Naquele mesmo ano, a Cahiers du Cinéma publicou uma longa entrevista com Cacá, que ocupou 12 páginas da revista, que trazia ainda uma foto de "Os Herdeiros" na contracapa. Tamanho espaço na bíblia do cinema de autor confirmava o prestígio internacional do diretor em particular e do cinema novo em geral.
O desejo de voltar, mesmo em condições adversas, ganhou impulso após conversa com um de seus maiores ídolos no cinema. "Volte logo que puder, a ditadura militar é uma tragédia, mas um dia acaba e o povo brasileiro vai precisar de um cinema vivo, no qual possa se reconhecer", aconselhou o cineasta francês Jean Renoir.
Era o início de um processo de maturação que levou ao melhor de sua obra. De volta ao Brasil, Cacá trocou a impotência e o desespero característicos do período pela resistência alegre. Em "Quando o Carnaval Chegar" (1972), um grupo mambembe de cantores não se rendia a um empresário autoritário, metáfora musical, via chanchada, da situação do país.
Cacá lamentou depois o roteiro pouco consistente e a produção um tanto improvisada, mas o filme vale sobretudo como registro visual de três dos maiores nomes da música brasileira, Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia, que compunham a trupe da história.
O filme seguinte, "Joana Francesa" (1973), hoje é mais lembrado por sua protagonista, a francesa Jeanne Moreau, uma das maiores atrizes do cinema, que o diretor conhecera em seu período parisiense. Moreau vivia uma dona de bordel na São Paulo dos anos 1930 que se muda com seu amante para um canavial no interior de Alagoas, onde se debate com as estruturas patriarcais.
A atriz encarou com resignação e sem estrelismos o calor alagoano e ainda cantou com brilho a canção-tema do filme, composta por Chico Buarque. Talvez por seu tom melancólico, o filme não foi o sucesso que se imaginava, mas representou um divisor de águas para Cacá, uma afirmação da autonomia da direção e do enredo.
A visão política sobre nossos problemas e a utopia de um novo país permaneciam, porém a partir dali, em seus trabalhos mais inspirados, estariam mais integradas a uma proposta de espetáculo cinematográfico.
"Foi um momento radical em direção a um cinema de montagem mais temporal, dramatúrgico, íntimo, elaborado em cima de sua própria encenação e não de ideias que a precedem", relembraria ele depois.
Os filmes seguintes foram a cristalização dessa nova fase. "Xica da Silva" (1976), cuja inspiração remonta a um desfile de Carnaval que encantou o cineasta uma década antes, fazia da história da escrava alforriada, altiva, sensual e de riso aberto, uma alegoria do processo de abertura política.
"Xica da Silva mudava o paradigma do cinema brasileiro. Depois desse filme, a impotência não podia mais justificar a falta de esperança, o prazer e a alegria não precisavam mais ficar sufocados por trás das dores de um mundo que nunca será perfeito", escreveu o diretor em suas memórias.
Zezé Motta ficou célebre no papel-título, e o filme foi o maior sucesso popular de Cacá, com quase 3,2 milhões de espectadores.
Foi também a mais controversa recepção crítica de sua carreira, que se estendeu mesmo anos após o lançamento. Intelectuais criticaram a forma pouco ortodoxa com que o filme tratava a história do Brasil; o humor e a sensualidade da história era encarada por muitos como uma banalização da escravidão.
Cacá, por sua vez, apontava o autoritarismo desses detratores, pois conceberiam a arte a serviço de uma ideologia ou de um programa político. Chamou essas cobranças de "patrulhas ideológicas", expressão que se tornou conhecida, e utilizada até hoje, após uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de bastante repercussão em 1978.
"Um negócio que também acho muito grave é esta espécie de patrulha ideológica que existe no Brasil. Uma espécie de polícia ideológica que fica te vigiando nas estradas da criação, para ver se você passou da velocidade permitida", declarou.
Em 2003, 25 anos depois, Cacá fez crítica semelhante ao governo Lula, apontando o que a seu ver seria "dirigismo cultural". Na ocasião, a política de patrocínio cultural de algumas estatais, como Eletrobras e Furnas, estipulava a exigência de contrapartidas sociais e falava em "sintonia com a política governamental". O caso ganhou repercussão na imprensa, e as regras de patrocínio foram revistas.
Após "Xica" e um delicado longa sobre o envelhecimento, "Chuvas de Verão" (1978), Cacá lançou "Bye Bye Brasil" (1980), seu melhor filme e espécie de síntese de seu cinema.
Neste road movie filmado em cinco estados do Norte e Nordeste, artistas mambembes da caravana Rolidei (José Wilker, Betty Faria, Fabio Jr.) levam seu espetáculo aos rincões do país e percebem uma série de transformações (sociais, comportamentais e culturais) em curso. O filme trafega com humor e poesia nessa via de mão dupla: o nascimento de um Brasil moderno e a agonia de uma era mais arcaica.
A ideia do filme nasceu nas filmagens de "Joanna Francesa", quando Cacá percebeu o impacto da TV numa pequena comunidade do interior de Alagoas. Exibido na competição oficial do Festival de Cannes em 1980, "Bye Bye Brasil" teve carreira exitosa, de crítica e público, no exterior e no Brasil, onde fez quase 1,5 milhão de espectadores.
"Para a crítica europeia, tratava-se de um filme triste sobre o fim de uma cultura e suas tradições populares. Mas para os latinos e norte-americanos, era um canto luminoso a um novo país em via de nascer. Essa recepção contraditória contém verdades nas duas vertentes e é mais uma virtude do próprio filme", escreveu o diretor.
Já separado de Nara, Cacá se casou em 1981 com Renata Almeida Magalhães, que depois se tornaria produtora de seus filmes. A década começou exitosa e renovadora, mas seria marcada por produções repletas de contratempos.
"Quilombo", rodado em Xerém (RJ), foi castigado por chuvas torrenciais do El Niño, consumiu dez semanas extras de filmagem e deixou dívidas que o diretor levou anos para pagar. Já "Um Trem para as Estrelas" (1987) e "Dias Melhores Virão" (1990) foram lançados em um contexto de crise econômica, alta inflação e decadência da Embrafilme, o que fez minguar o público de cinema. "Dias", por sinal, estreou na Globo, sem passar pelas salas de exibição.
Na virada dos anos 1990, no governo Collor, a cena parecia um filme de terror. Embrafilme e as leis que possibilitavam a produção de filmes foram extintas, e o cinema brasileiro estava praticamente morto. Como vários colegas de profissão, Cacá migrou para a publicidade e vídeos institucionais para pagar as contas.
Para não ficar louco, como ele diz, produziu com baixíssimo orçamento, em parceria com a TV Cultura, "Veja esta Canção" (1994), uma dos primeiros filmes do que se convencionou chamar de retomada do cinema brasileiro, já no governo Itamar Franco.
O filme era composto de quatro episódios, inspirados em canções de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Jorge Ben Jor.
Os anos seguintes foram bem mais felizes. Único diretor do cinema novo a manter produção regular, Cacá emedou três sucessos. "Tieta do Agreste" (1996), adaptação de Jorge Amado com Sonia Braga no papel-título, era uma superprodução, comparada ao filme anterior. A volta da heroína libertária a uma pequena e atrasada cidade baiana era o mote para pensar o Brasil redemocratizado, que vencia a inflação com o Plano Real e se abria economicamente ao mundo com a globalização.
"Orfeu" (1999) atava, às vésperas dos 60 anos do diretor, as pontas de sua vida: era a concretização do sonho de levar ao cinema a peça de Vinicius de Moraes que tanto o havia marcado na adolescência e moldado sua visão estética. O embate ali presente entre Carnaval/violência, lirismo/realismo já germinava sua obra desde de seu início, quase 40 anos antes, em "Cinco Vezes Favela".
"Deus É Brasileiro" (2003) foi seu último êxito de público e crítica, e seu melhor filme desde "Bye Bye Brasil". Cacá faz o Todo Poderoso (Antonio Fagundes) percorrer léguas de estradas no Brasil, à procura de um substituto, no que acaba por ser uma fábula em homenagem à imperfeição humana. O filme também refletia o clima de otimismo nacional do primeiro mandato de Lula.
Menos sorte teve outro projeto com que sonhava desde a juventude, a adaptação dos versos de seu herói Jorge de Lima ao cinema, que resultou no filme "O Grande Circo Místico", recebido sem entusiasmo por público e crítica.
No fim da vida, Cacá teve mais uma consagração como intelectual público. Foi eleito em 2018 para a Academia Brasileira de Letras, sucedendo, em outro acaso simbólico, seu amigo e mestre Nelson Pereira dos Santos. No ano seguinte, passou por uma tragédia pessoal: sua filha Flora morreu aos 32 anos, em decorrência de um câncer no cérebro.
Por coincidência ou predestinação dos deuses do cinema, Cacá encerrou sua carreira com o inédito "Deus Ainda É Brasileiro", previsto para estrear neste ano, novamente em um governo Lula.
Desta vez, o pano de fundo é o turbilhão em que o país se meteu na última década, bem longe do otimismo contagiante do filme original. Neste 2025, até Deus parece ter virado as costas ao Brasil, a popularidade de Lula desabou e o mantra "A esperança venceu o medo" é bem menos convincente.
O cineasta apontou até o fim as lentes de sua câmera para a questão que tanto afligia sua geração: o Brasil ainda vai cumprir a sonhada vocação de grande nação? Com fé religiosa ou não, teremos que seguir tentando, agora sem os filmes de Cacá.
Matéria na íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/02/caca-diegues-teve-sucesso-popular-e-prestigio-como-poucos-cineastas-no-brasil.shtml
18/02/2025