Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Alguma coisa

Alguma coisa

 

Houve um tempo em que sabíamos de tudo o que se passava no mundo graças ao cinema. Os filmes nos contavam tudo o que estava se passando em outros países, graças às produções que víamos nos cinemas de nossos bairros, cada um com uma programação que atendia nossa curiosidade nascida em notícias curtas de jornal. Só depois de assistir a esses filmes é que nos julgávamos em condição de emitir uma opinião sobre o eventual assunto que cada filme tratava.

Foi assim que tomamos conhecimento de tanta coisa, foi assim que vimos o mundo marchar para diferentes direções, até que, se não me engano Franklin Delano Roosevelt, à frente dos Estados Unidos como seu presidente eleito, inventasse a teoria dos três Fs que ia acabar com nosso raro prazer: “flag follows films” (ou “a bandeira segue os filmes”, em inglês).

Ou seja, a bandeira estava identificada com o filmes, o que significava que a bandeira americana iria aonde os filmes fossem e o que se passasse com eles seria uma projeção do que se passaria com elas. Estávamos assim condenados à simetria entre o futuro próximo do Estado americano e o que seus filmes nos mostravam.

Nem sempre o Estado americano nos dava, naqueles filmes dos anos 1950 e 1960, um exemplo de vitória sobre dúvidas entre os rumos que ia tomando a sociedade local. O que fez logo nascer uma primeira e principal consequência, resumida assim por Roosevelt e seus herdeiros: depois da Segunda Guerra, com a vitória dos americanos e a expansão deles pelo mundo afora, cada filme feito em Hollywood era uma bomba que estouraria por aí.

Era preciso evitar que estas explosões fossem tratadas como efeitos, fossem confundidas com bombas de um inimigo silenciado e sem meios para reagir. Com isso estaria resolvido o impasse guerreiro, os americanos haviam vencido, liquidado o inimigo e os haviam silenciado no limite de não ter deles mais nenhuma reação. Nem mesmo o protesto sonoro.

Hollywood só não esperava que a reação à sua estratégia fosse comandada pela própria reação dos perdedores! Os filmes podiam ser feitos em outros lugares, nos revelando outras geografias, outros rostos e outras histórias. A vida presta, como diz nossa premiada Fernanda Torres. Ela ainda vai defender o belíssimo filme de Walter Salles nesse Oscar. Ela já nos trouxe uma palma de Cannes pelo filme de Arnaldo Jabor “Eu sei que vou te amar”, nos anos 1980. Espero que Fernanda volte dessa experiência com um prêmio também. Então poderemos mostrar que temos o que revelar, filmes alheios e diferentes. Todos contando histórias que valem serem contadas e ouvidas.

Trump ainda não tomou posse, mas já fez do mundo um lugar mais perigoso. Nós ainda não respondemos a tudo, mas já fizemos de nossos filmes uma útil, necessária e delicada diversão. Vamos caprichar, vai dar para chegar mais longe ainda!

O Globo, 19/01/2025